A “bolha de carbono”: ponto de inflexão da economia financeira?

Análise

O setor financeiro também vê a crise climática como uma ameaça aos lucros especulativos futuros. Gigantes da indústria, como a BlackRock, estão pedindo o fim dos combustíveis fósseis e defendendo o movimento ambientalista.

Máquina de guindaste trabalhando ao pôr do sol

Em janeiro de 2020, os espectadores da CNBC, canal norte-americano de notícias econômicas, testemunharam uma cena insólita. Jim Cramer, guru da Bolsa de Valores, autor famoso de livros com títulos geralmente adornados pela expressão “get rich” (“enriqueça”), foi questionado pela apresentadora sobre as perspectivas para as ações de empresas do setor de óleo e gás, como Chevron ou Exxon. Surpreendentemente, respondeu que estava farto de energias fósseis, as quais já eram coisa do passado. Justificou, dizendo que os executivos do setor financeiro e os fundos de pensão estavam abandonando as energias fósseis, e que as gerações mais jovens não queriam saber desse tipo de ações. Uma afirmação dessas na boca de alguém que não se notabiliza exatamente pelo altruísmo e pelas motivações ambientais pode até ser anedótica. Mas mesmo as anedotas podem funcionar como indício. Pois Jim Cramer não está sozinho. Quase simultaneamente Larry Fink, o presidente do conselho e diretor executivo da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo (N. da T.: operando desde 2008 no Brasil), mandou uma carta aberta para executivos e executivas de empresas em que a BlackRock tem participação – o que equivale à quase totalidade das empresas cotadas em bolsa – , reivindicando nada menos do que uma “mudança estrutural nas finanças”. Disse que “risco climático é risco de investimento” e que, por essa razão, é preciso haver transparência para o acionista, mudando o rumo em direção a uma maior sustentabilidade para todos os tipos de investimento. 



Estaríamos em um ponto de inflexão na relação entre o mundo financeiro e a economia fóssil? O ‘efeito manada’ dos mercados financeiros estaria se voltando contra as energias fósseis? Seria apenas marketing verde? Ou será que o mercado financeiro pode até vir a se tornar uma alavanca essencial para deter o colapso climático? E como a política deveria comandar e acompanhar esse processo? A resposta a estas perguntas exige, em primeiro lugar, compreender os elos entre a economia financeira e as energias fósseis no século passado, ou seja, remontar os debates e as iniciativas nos diferentes setores do sistema financeiro. Nisso, duas grandes iniciativas desempenharam um papel especial. A primeira é a poderosa narrativa da “bolha de carbono”, o risco que investidores e mercados correm de perder lucros no setor de energia fóssil devido às mudanças climáticas. Essa tese influenciou principalmente os atores privados do mercado financeiro e os reguladores do mercado. Em segundo lugar, um artigo pouco observado do texto do Acordo sobre o Clima firmado em Paris, que pede a atenção dos fluxos financeiros para a proteção climática e se tornou uma importante razão, sobretudo para bancos públicos e multilaterais, de restringir os créditos para empresas do setor de carvão, gás e petróleo. 

A “bolha de carbono”, uma narrativa poderosa

Quando examinamos a história recente da ligação entre mudanças climáticas e mercados financeiros, topamos com dois nomes que se complementam em seus respectivos talentos e que, juntos, desenvolveram uma narrativa poderosa: Mark Campanale e Bill McKibben. O britânico Campanale já tinha mais de duas décadas de experiência no setor da indústria financeira e dos investimentos sustentáveis quando fundou, em 2011, a Carbon Tracker Initiative (literalmente: Iniciativa de Seguimento do Carbono). O primeiro relatório, publicado em novembro de 2011, apresentou o conceito da “bolha de carbono”, segundo o qual o valor das ações de empresas de energias fósseis se baseia em grande medida em suas reservas de combustíveis fósseis. No entanto, essas reservas consistem em grande parte de “carbono não-combustível”, ou seja, segundo esse raciocínio, 80% das reservas das cem maiores empresas de carvão, e das cem maiores empresas de óleo e gás precisam continuar em baixo da terra se a humanidade quiser respeitar o limite de acréscimo máximo de 2 graus Celsius aprovado na Conferência do Clima de Copenhague de 2009. Isso equivaleria a dizer que as empresas de combustíveis fósseis estariam maciçamente sobrevalorizadas e que existe o risco do estouro da bolha, com prejuízos consideráveis para os acionistas e para a estabilidade do sistema financeiro. 

No primeiro semestre e 2020, a Carbon Tracker Initiative atualizou mais uma vez a sua análise original. O novo relatório Decline and Fall: The Size and Vulnerability of the Fossil Fuel System [Declínio e queda. O tamanho e a vulnerabilidade do sistema de combustíveis fósseis] estabelece a tese de que, em um futuro próximo, poderá ocorrer uma disrupção fundamental do sistema de energia que desvalorizaria ativos gigantescos, atingindo 39 bilhões de dólares em reservas de carvão, óleo e gás, entre 10 e 12 bilhões de dólares em infraestrutura para o fornecimento, respectivamente a queima, de combustíveis fósseis, 18 e 8 bilhões de dólares em ações cotadas em bolsa e créditos corporativos, bem como um número quatro vezes maior de ativos financeiros não cotados em Bolsa. Se compararmos esses números com um PIB global de 142 bilhões de dólares em 2019, compreenderemos a dimensão do problema. O primeiro relatório da Carbon Tracker Initiative, de 2012, foi extraordinariamente fértil. A ele se seguiu uma série de outros estudos mais detalhados que iluminaram os riscos das mudanças climáticas com base na mesma tese. O relatório, no entanto, poderia ter permanecido como uma nota de pé de página da História, se o especialista em finanças Campanale não tivesse encontrado como parceiro o jornalista americano,  Bill McKibben. Ele escreveu o artigo “Global Warming’s Terrifying New Math” (“A terrível matemática do aquecimento global”), publicado em julho de 2020 na revista americana Rolling Stone. O texto disseminou a narrativa de Campanale mundo afora, tornando-se um dos mais lidos e mais influentes na história da luta contra as mudanças climáticas. A conta assustadora feita por McKibben é simples e se baseia em três números: dois graus Celsius é a elevação máxima da temperatura média, em relação ao nível pré-industrial, acordada pelo mundo como limite suportável. Se quisermos manter o aquecimento global médio abaixo dos dois graus, teremos que restringir as emissões de CO2  na atmosfera – naquela época, eram 565 gigatoneladas de CO2. Por outro lado, as reservas conhecidas de carvão, óleo e gás, pertencentes a conglomerados cotados em bolsa e países como Kuwait e Venezuela, que agem como empresas transnacionais, montam a 2795 gigatoneladas de CO2, o que equivale a cinco vezes mais. McKibben calculou o valor de mercado desses combustíveis fósseis em 27 trilhões de dólares. E se tivéssemos que considerar 80% disso como “excedente”, por não poderem ser queimados, os mercados financeiros teriam que arcar com um prejuízo de 20 trilhões de dólares. Comparada com isso, a bolha imobiliária nos EUA que desencadeou a crise financeira de 2007/2008 foi bem menor. Com essa conta, McKibben não apenas ofereceu uma análise econômica, como também uma explicação altamente plausível para a falta de progresso nas medidas de proteção contra a crise climática. Disse que as empresas de combustíveis fósseis têm muito a perder e, com isso, um forte motivo de assestar as baterias de seus poderosos lobbies contra a política climática. Em termos de política econômica, a equação é simples. O valor futuro – e já precificado nos mercados financeiros – da quantidade de carbono que não pode ser queimado exerce forte pressão para ser realizado por meio da extração e da venda de matérias-primas fósseis nos mercados globais e ‘compra’ a sua correspondente influência política. A nova narrativa de McKibben difere em medida considerável de outros raciocínios corriqueiros – passados e vigentes – sobre a crise climática. Em vez de dirigir o olhar para as emissões em uma miríade de lugares, aponta para as reservas fosseis armazenadas em um número mais restrito de locais e que ali precisam ficar, se quisermos limitar o aquecimento global. Em vez de incitar contra os consumidores que estimulam o aquecimento global com o seu comportamento, joga os faróis nas empresas que têm interesse em continuar com a queima de combustíveis fósseis. No lugar de processos de negociação entre países nas conferências do clima, agora se trataria de investimentos e ativos patrimoniais, de mecanismos nos mercados financeiros e da influência desses conglomerados sobre a política. 

Por mais inacreditável que possa parecer, a narrativa da bolha de carbono e dos riscos climáticos para o mercado financeiro teve consequências em dois setores totalmente diferentes. O que turbinou a disseminação da tese é que Campanale e McKibben gozavam de imensa credibilidade em dois grupos sociais extremamente diversos. Enquanto Campanale influenciou o mundo financeiro inteiro, que tem seu centro em Londres, McKibben era o guru de um movimento crescente de ativistas do clima.

“Do the maths (faça os cálculos)”: primeiros frutos da campanha de desinvestimento

Bill McKibben é cofundador do grupo 350.org, uma organização de campanhas contra as mudanças climáticas comandada principalmente por gente jovem e que se espalhou pelo mundo a partir das universidades americanas. 350.org levou a narrativa de McKibben para muitas partes do globo através de uma grande campanha, intitulada “Do the Math” (“Faça os cálculos”). E organizou uma estratégia para o antídoto propagado por McKibben: desinvestimento, a retirada de dinheiros de aplicações financeiras no setor de combustíveis fósseis. O ponto de partida foram cidades, comunidades, universidades e instituições religiosas que, pressionadas pelos jovens ativistas, começaram a retirar o seu dinheiro de portfólios com ações do setor de combustíveis fósseis. A combinação entre argumentos morais e o apelo ao interesse financeiro privado – o risco do estouro da bolha de carbono – revelou-se extremamente eficaz. Só um dos dois não teria tido a mesma força. O movimento que começou em universidades, instituições religiosas e municipalidades logo atingiu investidores institucionais, como fundos de pensão e grandes seguradoras, por meio de campanhas específicas. Além do temor de perda de reputação, a retirada do setor de energias fósseis se deve sobretudo à administração do risco. Se houver decisões políticas em favor de mais proteção ao clima, o dinheiro aplicado poderia acabar “micando”, tornando-se um ativo “encalhado”.

A campanha de desinvestimento não apenas criou uma consciência para essas correlações como levou investidores institucionais, como o fundo de pensão da Noruega ou a seguradora Allianz, a abandonar pelo menos parcialmente seus investimentos no setor de carvão, óleo e gás. Mais de mil instituições com um patrimônio total de quase 8 trilhões de dólares se comprometeram até o fim de 2018 a retirar os seus investimentos das empresas de energia fóssil. Em 2015, a narrativa da bolha de carbono, que ameaça a estabilidade dos mercados financeiros, penetrou na esfera mais elevada da governança global desses mercados. O G-20  incumbiu o Conselho de Estabilidade Financeira (Financial Stability Board, FSB), liderado pelo presidente do Banco da Inglaterra,  Mark Carney, a refletir de que maneira o setor financeiro poderia levar em conta os riscos climáticos para o sistema financeiro. O FSB foi fundado em 2009 pelo G-20 na esteira da crise financeira global.

Com esse mandato, Carney abordou a análise de Campanale e McKibben em uma palestra no dia 29 de setembro de 2015 no mercado de seguro e resseguro londrino Lloyd’s. Falou da “tragédia no horizonte”, segundo a qual os impactos catastróficos oriundos de mudanças climáticas se farão sentir para além do horizonte tradicional de ação das instituições centrais atuais – para além do ciclo de negócios e dos ciclos políticos como períodos eleitorais, e também do horizonte de autoridades tecnocratas, como os bancos centrais. Em consequência, reivindicou a instalação de uma Força-Tarefa para Divulgações Financeiras relacionadas ao Clima (Task Force for Climate Related Financial Disclosure , TCFD), criada pelo FSB no dia 4 de dezembro de 2015, durante a Cúpula do Clima em Paris. Seus membros são personalidades do mundo financeiro privado, sob a presidência de Michael Bloomberg, executivo da empresa do mesmo nome. O fato de isso ter acontecido durante a Cúpula do Clima em Paris não é nenhuma coincidência. Pois o Acordo do Clima de Paris também contém respostas a demandas dos mercados financeiros e de bancos privados e públicos, fato ao qual se tem dado muito pouca atenção. De um lado, o acordo aumentou a meta global de temperatura, pressionado pelos países em desenvolvimento mais vulneráveis, limitando o aquecimento global significativamente abaixo de dois graus Celsius, e buscando a meta de 1,5 grau. Com isso, as emissões possíveis de CO2 encolhem significativamente.

No artigo 2.1c do Acordo, os países signatários também se comprometeram a harmonizar os fluxos financeiros com as metas do acordo. Concretamente, o texto fala  “de fluxos financeiros consistentes com uma trajetória de desenvolvimento resiliente e de reduzidas emissões de gases com efeito de estufa.“ Isso leva à conclusão de que todos os fluxos de dinheiro e investimento, tanto os públicos quanto os privados, necessariamente devem ser regulados de maneira a que as atividades econômicas deles resultantes permitam cumprir as metas do acordo em termos de aumento da temperatura global. 

A missão da força-tarefa comandada por Michael Bloomberg é criar padrões para que as empresas apresentem de maneira voluntária os seus riscos climáticos – físicos, político-regulatórios e riscos de responsabilidade – a investidores, credores, seguradores e outros grupos de interesse.

Em meados de 2017 a Força-Tarefa entregou suas recomendações, que foram discutidas na reunião de cúpula do G-20 em Hamburgo. Em dezembro de 2019, um total de 930 organizações com um valor de capitalização de mercado de 11 trilhões de dólares encampou essas diretivas. O motivo para isso: diferentemente do presidente americano Donald Trump, os atores do mercado financeiro não podem se dar ao luxo de ignorar para sempre a realidade da crise climática. E ninguém deve ter ilusões de que aqui se trata de reflexões humanitárias. Os mercados financeiros estão pouco ligando se existem ilhas do Pacífico sendo engolidas pelo mar ou se os furacões transformam pequenos agricultores no centro dos Estados Unidos em sem-teto. Pois gente pobre não costuma ter seguros e nem tem patrimônio. E os mercados só negociam ativos financeiros.

Três categorias de risco para os mercados financeiros

Na palestra proferido no Lloyd’s, Carney dividiu os riscos climáticos para os mercados financeiros em três categorias que continuam relevantes até hoje. Em primeiro lugar, há os riscos físicos, a destruição de valores patrimoniais, perdas para obras de infraestrutura e propriedades (prédios, instalações industriais) causadas por fenômenos meteorológicos extremos como tempestades ou inundações, mas também a interrupção das atividades econômicas por eles provocados. Basta lembrar dos enormes danos causados pelos furacões Sandy e Harvey em Nova York e Houston, no Texas, respectivamente. Esses riscos são sentidos em primeiro lugar entre seguradoras e resseguradoras, que, nestas catástrofes, são responsáveis por pagamentos aos seus clientes. Desde o início do milênio, a resseguradora Münchener Rückversicherung vem alertando seguradores e mercados financeiros contra as consequências do aquecimento global. E não é por acaso que  Carney fez sua palestra precisamente na sede da Lloyd‘s, uma das instituições mais tradicionais do mercado de seguros.

Em segundo lugar, trata-se de riscos de transição, produzidos pela passagem para uma era de economia zero sobretudo para empresas que produzem emissões elevadas. Trata-se, nesse caso, de uma mudança tecnológica, bem como de uma mudança forçada de valores: empresas como a Daimler ou a BMW serão capazes de administrar a transição para a época da mobilidade ‘emissão zero’? Quantas perdas terão as linhas aéreas quando a “vergonha de voar” se disseminar? Um outro risco de transição seria o “risco” – desejável – de medidas abruptas de políticas climáticas, como proibições, metas de redução duras, elevados preços de CO2, cortes de subsídios que acarretem emissões ou sentenças judiciais. Todas essas medidas podem desvalorizar investimentos e gerar rupturas repentinas nos mercados e no comportamento dos consumidores. Mesmo que, até o presente momento, os tomadores de decisões políticas tenham reagido com muita hesitação à crise climática, está claro que, em algum momento, terão que reagir, nem que seja em resposta a processos judiciais, como ocorreu nos Países Baixos, onde um processo iniciado por jovens obrigou o governo a mais medidas de proteção climática. Crescentemente fala-se aqui da inevitable policy response, a resposta política inevitável à crise climática. 

A terceira categoria são os riscos de responsabilidade. Um bom exemplo é o processo judicial levado a cabo nos tribunais alemães pelo montanhista e agricultor peruano Saul Luciano Lliuya contra o conglomerado alemão de energia RWE. Lliuya alegou que o derretimento das geleiras nos Andres peruanos poderia causar inundações, destruindo a sua aldeia natal nas montanhas. Uma empresa como a RWE, que durante décadas contribuiu consideravelmente para a elevação dos níveis de CO2 na atmosfera, pode agora ser condenada a contribuir com medidas de mitigação. Mesmo que o valor em dinheiro pedido à RWE possa ser pago pela “caixinha” da empresa, uma sentença contra o conglomerado seria um sinal simbólico importante, podendo ter consequências avassaladoras para o valor patrimonial de empresas intensivas em CO2. 

BlackRock, mudando de Saulo para um Paulo defensor do clima?

Mas como se comportaram de fato as grandes instituições financeiras? Sobretudo: em que deveriam ter-se orientado para respeitar a missão acordada no Acordo de Paris? Em 2016, um consórcio de 15 organizações não-governamentais, liderado pelo instituto Oil Change International, elaborou o estudo intitulado The Sky’s Limit [O limite do céu]. Segundo ele, as quantidades atuais de carvão, óleo e gás já em processo de produção contêm carbono suficiente para ultrapassar o orçamento acordado de CO2. A conclusão dos autores é que qualquer financiamento de projetos de extração de novas reservas de carvão, óleo e gás e de obras de infraestrutura associadas à extração e produção (oleodutos, portos, ferrovias) seria incompatível com as metas climáticas aprovadas em Paris.

Em 2019, um relatório de pesquisa publicado pela renomada revista Nature analisou a possibilidade de compatibilizar a infraestrutura existente intensiva em CO2 (principalmente termoelétricas, plantas industriais e transportes) com o orçamento de CO2, tanto no cenário de 1,5 grau quanto de 2 graus Celsius. O estudo também chegou à conclusão de que – dependendo do limite de temperatura e das suposições em que o orçamento de carbono se fundamenta – nenhum tipo de infraestrutura nova (ou muito pouco) intensiva em CO2 deveria começar a entrar em funcionamento, e que infraestruturas já existentes deveriam ser desativadas antes do tempo.

A Carbon Tracker Initiative (CTI) foi um passo além na sua análise sobre fornecedores de energia cotados em Bolsa. A pedido da iniciativa de investidores Climate Action 100+, a CTI analisou o perfil de risco de todas as grandes empresas provedoras de energia cotadas em Bolsa referente à compatibilidade de sua capacidade de investimento em termoelétricas  – indo a nível de detalhes dessas plantas – com as metas do Acordo de Paris. O resultado, para as grandes fornecedoras de energia elétrica na Alemanha, foi que a E.ON se sai bem depois de ter-se livrado de todas as termoelétricas a carvão, enquanto a RWE e outras empresas com muitas termoelétricas a carvão foram classificadas como não-compatíveis com as metas de Paris.

Sobre a RWE, é interessante saber que o segundo maior acionista é justamente a  BlackRock. Com patrimônio total de 7,4 trilhões de dólares, trata-se do maior gestor de ativos do mundo e em muitas empresas é um dos três maiores acionistas. Com a sua carta já mencionada, o diretor-executivo da BlackRock, Larry Fink, deu um forte sinal, que alguns qualificaram de histórico. Na carta, anunciou: “Face aos crescentes riscos de sustentabilidade dos investimentos estamos cada vez mais inclinados a recusar a nossa concordância com diretorias e conselhos de administração, caso não revelem progressos suficientes na apresentação de informações sobre sustentabilidade e nas práticas e nos planos empresariais subjacentes a ela”. Em maio de 2020, a BlackRock colocou isso em prática, aprovando resoluções de combate às mudanças climáticas na assembleia geral de ExxonMobil e Chevron e exercendo pressão sobre o conglomerado de energia sul-coreano KEPCO, que planejava construir termoelétricas a carvão na indonésia e no Vietnã. 

É verdade que a BlackRock ainda encabeça a lista dos 30 principais investidores institucionais que aplicaram dinheiro em empresas com projetos à base de carvão (os “Dirty Thirty”, as 30 empresas mais sujas do mundo). De acordo com análises da organização não-governamental urgewald e outras, a BlackRock tem créditos e participações acionárias em 86 desenvolvedores de termoelétricas a carvão, num valor total de 17,6 bilhões de dólares. Uma atualização divulgada em maio de 2020 sobre o anúncio feito em janeiro mostra que, aos poucos, a BlackRock está colocando em prática a nova orientação e deixará de financiar termoelétricas a carvão. Uma análise do BlackRock Investment Institute divulgada em fevereiro de 2020 conclui que estratégias sustentáveis de investimento não geram lucros menores do que as tradicionais. Isso pode facilitar a transição da BlackRock rumo à sustentabilidade. Mas o seu modelo de negócios mais importante ainda atravanca esta transição, pois a BlackRock vende principalmente fundos administrados passivamente (os Exchange Traded Funds – ETFs, atrelados a determinados índices no mercado acionário ou de crédito). Isso significa que a decisão sobre a composição desses fundos é pré-estabelecida e não pode ser simplesmente modificada. Portanto, a BlackRock planeja se tornar ativa em fundos ativamente administrados e novos ETFs.

Mas não é só a BlackRock que se torna ativa: como nunca, as maiores seguradoras, os fundos de pensão e outros investidores institucionais no mundo passaram a agir de forma coordenada a fim de exercer influência conjunta. Em dezembro de 2017, no encontro de cúpula denominado One Planet Summit, em Paris, fundaram a plataforma Climate Action 100+ com a finalidade de coordenar as suas atividades referentes ao clima. Em março de 2020, os 450 investidores participantes representavam, juntos, ativos patrimoniais da ordem de cerca de 40 trilhões de dólares. Querem fazer valer o seu peso e sua influência junto a 100 “importantes emissores sistêmicos de CO”, responsáveis por dois terços das emissões industriais globais, bem como junto a 61 outros conglomerados com potencial significativo para a transição energética. Os investidores exigem dessas 161 indústrias reduções nas emissões em toda a sua cadeia de valor adicionado, em sintonia com a meta “sensivelmente abaixo de 2 graus” de Paris, uma melhor governança de riscos climáticos em nível de diretoria e uma melhor apresentação dos resultados, de acordo com o respeito ao clima e harmonizada com os parâmetros da TCFD. O primeiro relatório de progresso de Climate Action100+ lista empresas que vão de Nestlé à Volkswagen, passando pela fabricante de cimento Heidelberg Zement, e que se comprometem a meta de ações neutras em termos de clima (“net zero”) até o ano de 2050. Mas aqui também vale examinar direito o que significa “neutro em termos climáticos”: a redução das emissões a zero ou só a compra de duvidosos certificados no comércio de emissões?

Os bancos privados de negócios: passos pequenos e hesitantes

Além dos gestores de ativos, os grandes bancos privados são especialmente relevantes. Como são, de fato, suas estratégias de negócios? Um consórcio de organizações não-governamentais americanas e europeias apresenta anualmente um estudo que examina o comportamento de financiamento dos 35 maiores bancos privados do mundo desde o Acordo sobre o Clima de Paris de 2015. De acordo com o relatório mais recente, depois da Cúpula de Paris (ou seja, de 2016 até 2019 inclusive), bancos canadenses, europeus, japoneses, chineses e norte-americanos jogaram 3,7 trilhões de dólares no setor de combustíveis fósseis. Canalizaram somas gigantescas na extração de areias betuminosas e na produção de petróleo e gás no ártico, em águas profundas ou por meio do processo de extração de gás xisto conhecido como fracking (N. da T.; consiste em explosões controladas seguidas de uma superinjeção de água, areia e produtos químicos que fracionam as camadas rochosas profundas). Quatro bancos americanos – JPMorgan Chase, Wells Fargo, Citi, Bank of America – lideram a lista dos 35 bancos que investem no setor fóssil. Na ponta está o banco norte-americano JPMorgan Chase.

As termoelétricas a carvão estão no topo da agenda de instituições financeiras chinesas e japonesas. Os quatro maiores bancos da China continuam responsáveis por mais da metade do financiamento total de minas e termoelétricas movidas a carvão, embora os créditos para essas últimas estejam caindo. Ao todo, devido à pressão da opinião pública e das campanhas globais, principalmente os créditos para a infraestrutura do carvão estão decrescendo. Entre 2016 e 2019, os créditos para os 30 maiores investidores em mineração de carvão caíram 6% e aqueles para os 30 maiores produtores de energia movida a carvão despencaram 13%.

Face ao papel proeminente do banco norte-americano JPMorgan, chama a atenção um relatório de 22 páginas redigido em janeiro de 2020 pelo Departamento de Pesquisa de JPMorgan, que vazou para o público. O texto resume as principais conclusões da ciência sobre o clima e chega à seguinte conclusão: “Não podemos excluir consequências catastróficas [da crise climática], que ameaçam a vida humana tal qual a conhecemos hoje.“ 

A conclusão final, no entanto, é um balde de agua fria, pois sinaliza que o cenário mais provável é o business as usual, ou seja, tudo como antes na economia, com o risco de danos climáticos calamitosos e irreversíveis. A revista The New Republic intitulou o seu artigo sobre esse relatório com o seguinte jogo de palavras, difícil de ser traduzido: “The Planet Is Screwed, Says Bank That Screwed the Planet”[em tradução livre: “O planeta está numa situação complicada, diz o banco que complicou a situação do planeta”]. Não temos como avaliar se esse relatório, com a sua conclusão pessimista, serve à administração do JP Morgan como justificativa de sua estratégia empresarial irresponsável ou se vai efetivamente levar a novas formas de pensar. O fato de o JPMorgan ter anunciado, em fevereiro de 2020, a sua retirada de negócios com empresas ligadas à mineração de carvão até 2024, já pode ser visto como um passo pequeno, embora ainda hesitante. Mesmo assim, na assembleia geral do banco, em maio de 2020, a diretoria do JPMorgan (por uma margem pequena) acabou não aprovando uma resolução amigável ao clima. 

Esperança na Europa?

E como está a situação na Europa? Dez bancos europeus adotaram regras restritivas para o financiamento de créditos para projetos de areia betuminosa, e no mundo inteiro 21 dos 35 bancos analisados colocaram condições para projetos com carvão, ou se retiraram totalmente. Na Europa, o Barclays deu créditos no valor de 85 bilhões de dólares para as atividades correntes do setor fóssil e 24 bilhões de dólares para extração e projetos de ampliação. O Deutsche Bank está no 19º lugar do ranking desses 35 bancos privados. Só nos três anos depois da aprovação do Acordo de Paris, investiu cerca de 53 bilhões de dólares no setor fóssil. Em 2017 o banco reviu suas diretrizes para  financiamento do setor de carvão, comprometendo-se, com todas as suas filiais, a não financiar mais novos projetos de carvão. Além disso, o banco pretende reduzir o envolvimento atual no setor de carvão. Mas pelo jeito está havendo dificuldade na colocação em prática dessa diretriz. Pois em 2019 o Deutsche Bank ainda era um dos maiores financiadores da Europa no setor de carvão.

Em resumo: a boa notícia é que cada vez mais bancos estão adotando restrições nos investimentos do setor fóssil. Ainda o foco está mais no carvão, mas lenta e gradualmente os bancos também estão se comprometendo à retirada nos novos projetos de extração de petróleo e gás na região do Ártico ou em águas profundas, bem como nos projetos de areias betuminosas. Considerando as metas do Acordo do Clima de Paris, no entanto, não deveria haver mais nenhum investimento ou crédito para o setor fóssil. Ao contrário: a grande retirada deveria começar – mas ainda não é o caso, até o presente momento.

Em razão do amplo fracasso do setor bancário, nos últimos anos os/as ativistas de organizações não-governamentais têm focado a sua atenção cada vez mais nas companhias seguradoras, não apenas em seu papel de grandes administradores de ativos, mas também de investimentos como termoelétricas a carvão. Da mesma forma, como não é possível conseguir uma hipoteca sem apresentar seguro contra incêndio e outros danos, também é difícil – ou, por vezes, até mesmo impossível – construir ou administrar uma termoelétrica ou mina a carvão sem apresentar o seguro correspondente.

A campanha “Unfriend Coal” [“Carvão não-amigo”], levada a cabo por 13 ONGs da Europa, América do Norte e Austrália, já conseguiu colher êxitos, exercendo pressão sobre numerosas companhias seguradoras para sair do setor de carvão. No final de 2019, a aliança informou que as seguradoras, enquanto investidores, já haviam decidido por um desinvestimento em 37% de seus ativos, montando ao valor de quase 9 trilhões de dólares.

E já 46% das resseguradoras  (segundo a fatia do mercado) aprovaram políticas que ao menos excluem os novos negócios com seguros de termoelétricas ou minas a carvão, em parte também atingindo negócios antigos. 

Vemos que, numa parcela nada desprezível dos mercados financeiros globais, existe um movimento contra investimentos financeiros intensivos em CO2, como em projetos de carvão ou de extração de areias betuminosas. Tendências econômicas como os custos maciçamente reduzidos de energias renováveis ou baterias têm um papel tão importante quanto a pressão de campanhas da sociedade civil. Não por último, os crescentes prejuízos provocados pelas mudanças climáticas, como os incêndios florestais na Austrália de novembro de 2019 a janeiro de 2020, apontam que o tema não pode mais ser ignorado.

O Estado intervém

Há indícios de que projetos e empresas com elevadas emissões de CO2 estão tendo cada vez mais dificuldades para conseguir recursos no mercado de capitais. O jornal Financial Times cita, por exemplo, um analista da Agência de Rating Moody’s, segundo o qual o maior conglomerado mundial de carvão Peabody, cotado em Bolsa, não conseguiu financiamento para uma joint venture com a empresa ArchCoal, sua rival. A construção da termoelétrica a carvão polonesa Ostroleka C foi interrompida em fevereiro de 2020 pelos conglomerados Enea e Energa, alegando dificuldades na obtenção de créditos. Matérias na imprensa também mencionam a nova política energética da EIB. A polêmica mina de areias betuminosas Teck Frontier em Alberta, no Canadá, retrocedeu em seus planos, referindo-se explicitamente ao desejo de investidores por produtos mais “limpos”.  

Referindo-se a uma análise da Bloomberg New Energy Finance, Dan Murtaugh reporta que metade das 41 termoelétricas a carvão planejadas no Vietnã e na Indonésia não tiveram acesso a créditos financeiros e que será cada vez mais improvável consegui-los diante das políticas cada vez mais restritivas dos bancos no Japão, na Coréia e de Singapura. Quando a Saudi Aramco fez sua oferta pública inicial, não a fez em um dos grandes centros financeiros do mundo, e sim em uma Bolsa saudita. Segundo reportou o Financial Times, o resultado recorde do IPO atraiu pouco capital global, e sim 5 bilhões de dólares de Abu Dhabi – ativos de investidores acusados de corrupção e créditos generosos de bancos sauditas para investidores privados. 

No primeiro semestre de 2020 junte-se a tudo isso a maciça queda dos preços do petróleo, gerada pela crise econômica mundial desencadeada pelo coronavírus e a guerra de preços entre a Arábia saudita e a Rússia. Essa queda nos preços leva a uma piora considerável da lucratividade de conglomerados de petróleo e gás e continuará reduzindo a atratividade deste segmento do mercado. Por isso, torna-se extremamente importante que os governos não tomem medidas como pacotes de ajuda para as indústrias de combustíveis fósseis.

Infelizmente, é o contrário que costuma acontecer; quando o capital privado se retira, entram os governos para ajudar. A mina Carmichael da companhia indiana Adani em Queensland, na Austrália, foi objeto de intensas campanhas de organizações não-governamentais, que exerceram pressão sobre potenciais financiadores. Enquanto, agora, quase todos os investidores privados se retiraram, o governo concede massivas subvenções. O think tank IEEFA estima em 4,4 bilhões de dólares australianos (cerca de 2,35 bilhões de euros) os subsídios estatais para o projeto, que o conglomerado Adani pretendia financiar com recursos próprios. Também no Canadá o Estado entrou e comprou o polêmico projeto de oleoduto Transmountain por 4,5 bilhões de dólares canadenses (2,8 bilhões de euros), depois da desistência do investidor privado – e gestor original – Kinder Morgan. De lá para cá, os custos explodiram e atingiram a marca de 12,6 bilhões de dólares canadenses. O objetivo do oleoduto era trazer o petróleo altamente prejudicial ao clima extraído de areias betuminosas em Alberta até Vancouver, de onde seria levado por navios para todas as partes do mundo. O governo de Justin Trudeau, que gosta de se apresentar como progressista, tenta a todo preço concretizar o projeto catastrófico em termos ambientais contra a grande resistência de amplas partes da população de British Columbia, principalmente muitos grupos indígenas. 

E quando a indústria petrolífera canadense começou a ser abalada pela crise do coronavirus e o declínio dos preços de petróleo, o governo preparou um pacote de salvamento no valor de 15 bilhões de dólares canadenses, equivalentes a cerca de 9,4 bilhões de euros. O think tank britânico Vivideconomics investigou pacotes de salvamento em 17 grandes países, observando a superveniência de medidas “marrons”, prejudiciais ao clima e ao meio ambiente. 

O ‘efeito manada’ dos mercados

Instituições financeiras do Japão e principalmente da China continuam financiando termoelétricas a carvão e investimentos semelhantes intensivos em CO2 no exterior. Mas os executivos japoneses do mercado financeiro estão sofrendo cada vez mais pressão de uma campanha coordenada por organizações não-governamentais, que assestaram foto principalmente no fato de o país ter assumido a presidência do G-20 em 2019, bem como nos Jogos Olímpicos de 2020, transferidos para 2021. Enquanto, na China, se fala muito de uma “rota da seda verde”, até agora não houve políticas concretas de limitação do financiamento de energias fósseis.

E finalmente hoje novos investidores privados preenchem a lacuna deixada por alguns bancos. Assim, Patrick Jenkins argumentou no Financial Times que investidores privados demonstraram mais interesse por partes da indústria fóssil. “Enquanto o cash-flow for atraente, apostarão em carvão, óleo e gás, não importa se os bancos tradicionais e grandes gestores de ativos patrimoniais estão junto ou não”. 

Em suma: mesmo que exista uma clara tendência de afastamento das energias fósseis, seria prematuro declarar já agora o fim da era do carvão, do óleo e do gás no mercado de capitais. Não sabemos se a bolha de carbono está prestes a estourar e se o efeito manada dos mercados se voltará definitivamente contra os investimentos no setor de combustíveis fósseis. As grandes injeções de liquidez por meio dos bancos centrais poderiam voltar a estabilizar mais uma vez o império fóssil abalado. No entanto, existem sinais claros de que um ponto de inflexão está prestes a ser alcançado não apenas nos ecossistemas, mas também no sistema financeiro. Sem dúvida, isso traria novos riscos econômicos, mas é preciso corrê-los para evitar mais destruição da nossa base de sobrevivência no planeta Terra.

Tradução: Kristina Michahelles