A Métrica do Carbono: Abstrações Globais e Epistemicídio Ecológico

Em meio a uma imensa estrutura provisória montada nas pistas de um antigo aeroporto nas proximidades de Paris, milhares de negociadores, representantes de organizações não-governamentais e lobistas da indústria fixam o olhar em uma só direção. No centro da tribuna de notáveis está Laurent Fabius, experiente político francês que já serviu como primeiro ministro nos anos oitenta e hoje preside a Conferência das Partes (COP) da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC da sigla em inglês para United Nations Framework Convention on Climate Change) enquanto ministro das relações exteriores. Com seu terno impecável e palavras calculadas, ele agradece todas as contribuições das partes, enfatiza o trabalho duro realizado nas últimas duas semanas e pede à plenária da COP para aprovar a terceira versão do documento compilado por ele e sua equipe. Alguns países protestam e pedem voz, mas Fabius argumenta que é preciso seguir adiante e que, posteriormente, os representantes poderão se pronunciar. A partir da leitura corrida de um script, ele rapidamente submete a proposta de acordo ao plenário. Após apresentar alguns pontos “técnicos” (incluindo uma revisão da linguagem que muda o nível de obrigatoriedade dos países desenvolvidos), chama as partes para se manifestarem, e sem dar tempo para que isso de fato ocorra afirma: “Não vendo nenhuma objeção o Acordo de Paris está adotado”. O Acordo decola, a multidão vai à loucura, gritos, lágrimas, abraços e beijos calorosos quebram o protocolo. Em meio a essa comoção, estávamos eu e Camila Moreno (uma das autoras desse ensaio) sentados no plenário “overflow” juntamente com grande parte dos negociadores e membros da sociedade civil. De um lado, estávamos comovidos com a conclusão de um longo e duro processo. Ao contrário de Copenhague (COP 15), agora sim temos um acordo global para combater as mudanças climáticas, aplicável a todos os países. Por outro lado, sentíamos que não tínhamos muito que comemorar. Durante o processo de negociação vimos escapar entre os dedos dos negociadores elementos que poderiam ter tornado o acordo muito mais significativo. O acordo promete manter a temperatura “bem abaixo dos 2 °C acima do níveis pré-industriais e se esforçar para limitar o aumento da temperatura a 1.5°C” (Art. 3, 1/CP.21). No entanto, todas as medidas voltadas para limitar as emissões, dividir o orçamento de carbono de modo equitativo e descarbonizar a economia foram eliminadas da versão final do documento.
No seu lugar, o acordo estabelece que as partes deverão antecipar o pico das emissões (sinalizando que ainda poderão crescer substancialmente), e alcançar “um balanço entre emissões antropogênicas e remoções de gases de efeito estufa durante a segunda metade desse século” (Art. 4, 1/CP.21). Além disso, a partir de um texto proposto pela União Europeia e Brasil três dias antes do fim das negociações, foi criado um conjunto de “mecanismos de cooperação” que possibilitam que as reduções de emissões adicionais à meta realizadas por um país sejam transformadas em créditos carbono no formato de Resultados Internacionalmente Transferíveis de Mitigação (ITMOs da sigla em inglês para Internationally Transferred Mitigation Outcome) que podem ser vendidos e transferidos para que outro possa alcançar sua meta. Como as metas são contribuições voluntárias e nacionalmente eterminadas (NDC), temos um sistema que premia a pouca ambição de uns e a falta de ação de outros. Por exemplo, países como o México que poderão aumentar as emissões em 59% até 2030 em relação a 2011 e ainda se manter dentro da meta. Porém, se o México aumentar as emissões em uma porcentagem menor, mesmo que por questões econômicas sem vinculação às políticas ambientais, poderão ainda sim vender seus ITMOs para que países como os Estados Unidos possam alcançar suas magras metas climáticas.
Sendo assim, ao contrário da “revolução” reportada pelos jornais de todo o mundo, surgiu em Paris um acordo conservador que evitou discutir questões como a necessidade urgente de reduzir o consumo de combustíveis fósseis e demais recursos naturais. No seu lugar, o acordo propõe o surgimento de mecanismos e tecnologias cada vez mais complexas que buscam medir, capturar, transferir o carbono sem que isso implique necessariamente em uma redução dos gases de efeito estufa.
Desde o fim dos anos 1990, muitos pesquisadores se debruçaram sobre as consequências da precificação e transação de créditos de carbono. A partir dessa investigação foram feitos questionamentos importantes relativos à eficácia e as relações de poder que são criadas ou aprofundadas por meio desses mecanismos. Ao mesmo tempo, a maior parte desses estudos toma como fato dado e estável a métrica do carbono enquanto representação objetiva dos gases de efeito estufa e dos esforços de mitigação das mudanças climáticas. Existem, porém, uma série de perguntas anteriores a essas críticas que também demandam atenção. Como o carbono transacionado nos mercados é medido? Como o resultado de atividades diferentes (ex. desmatamento, transporte aéreo) são equiparados? O que é revelado e o que é obscurecido com a métrica do carbono? Quais são as consequências da universalização e naturalização da métrica do carbono?

A Métrica do Carbono: Abstrações Globais e Epistemicídio Ecológico

No presente ensaio Camila Moreno, Daniel SpeichChassé e Lili Fuhr respondem a algumas dessas perguntas. Além de contribuir para a tradição da economia política, o ensaio fornece elementos para a construção de uma genealogia da métrica do carbono no sentido Foucaultiano do termo. Para isso o ensaio mostra uma série de precedentes históricos de métricas que se naturalizaram após a Segunda Guerra e que hoje fazem parte do nosso cotidiano de modo inquestionado. Essas medidas, por sua vez, não são meras representações que refletem uma realidade preexistente. Ao selecionar certos aspectos da realidade (ex. conteúdo calorífico dos alimentos e transações monetárias) acabam por tornar invisíveis outros aspectos igualmente importantes (ex. aspectos culturais da comida e trabalho doméstico). O ensaio também aponta para as origens coloniais do sistema métrico e da contabilidade de dupla entrada e seu papel no estabelecimento de formas de controle a distância necessárias para o comércio e a exploração do trabalho e dos recursos naturais. Ao relacionar esses exemplos com a emergência e estabelecimento da métrica do carbono os autores apontam para necessidade urgente de adotarmos uma atitude mais reflexiva e crítica sobre as representações produzidas por esta métrica. Em um contexto onde o Acordo de Paris se tornará um dos elementos fundantes da governamentalidade contemporânea, reflexões como essa sobre as origens e consequências da métrica do carbono se tornarão cada vez mais relevantes.

Maio de 2016
Raoni Rajao
Professor de Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia,
Universidade Federal de Minas Gerais

 

Detalhes da publicação
Número de páginas
79
Licença
Idioma da publicação
Português
ISBN / DOI
978-85-62669-17-0
Índice

PREFÁCIO
INTRODUÇÃO

1. Calorias e Temperaturas
2. A Contabilidade do Carbono
3. A Contabilidade do Crescimento Econômico
4. Aumentando a Visibilidade e a Invisibilidade ao Mesmo Tempo
5. Descarbonização?
6. Mentalidade Métrica, Capitalismo e Epistemicídio
OBSERVAÇÕES FINAIS