Entrevista: Mónica Guerra do Comida do Amanhã fala sobre o Guia Alimentar para a População Brasileira

A publicação Guia Alimentar para a População Brasileira, reconhecida mundialmente, foi publicada em 2014, após consulta pública por diversos setores da sociedade. Recentemente, o Guia foi alvo de uma nota técnica crítica do Ministério da Agricultura causando reações negativas de profissionais da saúde e instituições ligadas ao tema. 

 

Guia alimentar da população brasileira
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Guia Alimentar da População Brasileira

Na segunda parte da conversa (acesse aqui a primeira) com Mónica Guerra, diretora do Comida do Amanhã, ela explica a importância do Guia Alimentar para a saúde da população brasileira.

Fundação Böll: Como o guia contribui para a promoção de uma política de segurança alimentar no país? 

Mónica Guerra: De acordo com o preâmbulo do Guia: “…o Guia Alimentar para a População Brasileira se constitui como instrumento para apoiar e incentivar práticas alimentares saudáveis no âmbito individual e coletivo, bem como para subsidiar políticas, programas e ações que visem a incentivar, apoiar, proteger e promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional da população”. 

A Organização Mundial da Saúde recomenda que cada país elabore suas diretrizes nacionais de alimentação e nutrição e que as revisitem de acordo com as mudanças no contexto e alinhamento com as pesquisas científicas mais relevantes na área. O Guia Alimentar resulta precisamente disso. Vários países no mundo têm seus guias alimentares próprios, que são documentos fundamentais para firmar o compromisso dos governos em implementar aquilo que é uma política de Estado, constitucional. É como se o guia explicasse o que significa, de fato, uma alimentação saudável no contexto de determinado país e cultura e isso não pode ser reproduzido globalmente, já que os alimentos e práticas alimentares diferem entre territórios. 

No Brasil, a primeira edição do Guia foi publicada em 2006, um documento que faz a ponte entre saúde pública, nutrição, cultura alimentar, hábitos alimentares, políticas públicas e o cidadão, que pode por meio deste se orientar suas escolhas. Em 2014, foi lançada a segunda edição, que foi debatida e construída desde 2011, no novo contexto de alimentação e nutrição, e alinhado com as políticas e regulações vigentes como a Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (LOSAN), a recente inclusão na constituição federal do direito à alimentação saudável e adequada para toda a população (em 2010), fortalecendo assim a Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional - um conjunto de ações orientadas para garantir a todos acesso a uma alimentação de qualidade e em quantidade suficientes, e atenta à cultura e contextos locais. 

O Guia é resultado de um comprometimento político integrado com a segurança alimentar e nutricional, realizado pelo Ministério da Saúde em parceria com o Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da Universidade de São Paulo (NUPENS/USP) e com o apoio da OPAS/ONU. É um documento que contribui, em si mesmo, para a promoção de uma política de segurança alimentar no país, vejamos: 

O Guia traduz o mais atual conhecimento científico na área da nutrição, orientado pelo Núcleo de Saúde Pública e Nutrição da USP (NUPENS), para o entendimento da população em geral; empoderando as escolhas alimentares e decodificando o que é comida de verdade e o que não é; como escolher e preparar o alimento; como economizar no custo sem economizar na nutrição - por exemplo, escolhendo alimentos na safra. Ele é uma atualização do Guia Alimentar de 2006, que apesar de trazer o enfoque para o alimento além do nutriente - considerando que um alimento é muito mais que uma soma de nutrientes simples - tinha como principais diretrizes orientar a população brasileira a “reduzir a ingestão de alimentos com alta densidade calórica”, e um enfoque nos tipos de alimentos mais ou menos recomendados, independentemente de sua origem e grau de processamento. Ele é assim ferramenta fundamental para que a agenda de segurança alimentar seja implementada - no indivíduo e no coletivo, de forma orientada. 

O guia de 2014 foi construído com base em um processo de consulta pública, coordenado pelo Ministério da Saúde, e traz uma atualização necessária das diretrizes considerando as transformações na população e no contexto dos seus sistemas alimentares e da sua saúde - as taxas de obesidade cresciam na população, e existia um comprometimento de ajudar a orientar os cidadãos a tomarem suas melhores escolhas alimentares com base nas mais recentes descobertas científicas na área. 

O guia vai mais longe. A publicação orienta as decisões coletivas alimentares, é material para a educação alimentar em escolas, orienta as escolhas no âmbito da alimentação escolar e subsidia diversas políticas alimentares e nutricionais em todo o território, constituindo uma base estruturante para conformar o olhar sobre como fortalecer e promover dietas saudáveis e sustentáveis, nas escolhas individuais, coletivas e institucionais, orientando quaisquer práticas ou políticas locais de segurança alimentar e nutricional e de educação alimentar em prol da saúde dos indivíduos. 

O fato de o Guia ser lançado pelo Ministério da Saúde, a pasta do executivo responsável por garantir a saúde pública e bem-estar dos cidadãos não é à toa, o Guia alimentar tem precisamente esse enfoque: garantir por meio da alimentação o acesso à saúde e a redução dos impactos que uma alimentação desbalanceada e não saudável provoca em toda a população. Ainda que seja um documento intersetorial - que abrange questões desde a produção ao consumo, das práticas culturais à saúde - ele é uma ferramenta importante na construção de políticas de prevenção de doenças crônicas não transmissíveis, responsáveis, em 2017, por 56,9% dos óbitos na população brasileira entre 30 a 69 anos, segundo dados do ministério da Saúde (maior causa de óbito entre a população adulta), e provocadas por um pequeno grupo de fatores de risco, entre eles uma alimentação inadequada. 

O Guia não influencia apenas a construção de políticas no país: pela sua coerência, contemporaneidade e relevância, o guia alimentar da população brasileira é considerado documento de referência no mundo, sendo indicado por diversos organismos das nações unidas que o consideram um exemplo a seguir, como por diversos países que inspiraram a formulação dos seus guias alimentares no exemplo brasileiro - por exemplo, o Canadá, Peru, França, Uruguai e Equador - tendo sido inclusive considerado o guia que mais fortalece a saúde humana de acordo com um estudo de 2019 da Frontiers in Sustainable Food Systems. O guia representa o que de melhor e mais consistente já se publicou em matéria de saúde pública, com respeito à cultura local e ao contexto nacional, com orientações simples e possíveis para toda a população. Ele é, em última análise, arriscaria, o documento de base que mostra e reconhece para cada brasileiro, e para o mundo, a riqueza e variedade das dietas locais e é um instrumento que atribui autonomia para as escolhas individuais e a importância da comida de verdade, para garantir saúde, bem estar e sustentabilidade na nossa alimentação. 

Fundação Heinrich Böll: O guia traz, entre outros pontos, a classificação de alimentos por nível de processamento. O que significa esta classificação e por que foi inserida no Guia? 

Mónica Guerra: Quando se percebeu que a população estava consumindo menos açúcar e gordura, mas ainda assim, se tornando mais obesa - era necessária uma revisão das orientações nutricionais contextualizada com o avanço e popularização dos alimentos industrializados, que estavam tomando espaço cada vez maior no cardápio e substituindo refeições. Sal, açúcar e uma série de outros produtos alimentícios que provocavam o aumento dos índices de obesidade, não aumentando a qualidade nutricional da população. Assim, notou-se que a classificação com base em nutrientes não era mais satisfatória - carboidratos não são todos iguais e gorduras não são todas iguais. A edição do Guia de 2014, que está sob análise agora, inova no sentido em que traz a afirmativa de que o processo de transformação do alimento é importante na avaliação da qualidade do alimento - isso significa que apesar de parecer o mesmo alimento, pão, pode ter tipos de processamento absolutamente distintos e que podem até resultar em forma, cheiro e gosto semelhante mas com uma composição completamente diferentes e com impactos distintos na saúde humana. Ao mesmo tempo, por exemplo, se pensarmos no que significaria um alimento com “alta densidade calórica”, podemos estar falando de um salgadinho ultra processado como podemos estar falando de um punhado de castanha de caju - dois alimentos com alta densidade calórica, mas com funções e perfis absolutamente diferentes para a nossa saúde, e com graus de processamento distintos! Um suco de manga, por exemplo, extrair o suco diretamente da manga, ou consumir um composto de água com um produto com aroma semelhante à manga e cor de manga, são duas coisas absolutamente distintas. Não podemos dizer que suco de manga é saudável sem especificar se esse suco é resultado de um ultra processamento industrial, que transformou uma manga em aroma, cor, sabor, mas a manga mesmo, e seus nutrientes, são inexistentes. 

Percebendo que ao mesmo tempo a população estava se tornando mais obesa, ainda que o consumo de alimentos como açúcar e gorduras não estava aumentando, abriu o alerta para o consumo “mascarado” desses alimentos, existentes dentro das fórmulas dos alimentos produzidos pela indústria, que se afastam totalmente do alimento in natura e que ganhavam cada vez mais espaço na dieta da população. Os estudos e pesquisas acerca desses produtos foram crescendo, e esse conhecimento, junto com o interesse político e o comprometimento com uma agenda de segurança alimentar e nutricional alinhada com o direito constitucional, mostrou que era necessário considerar o nível de processamento dos alimentos quando se avalia se são, ou não, saudáveis. 

Essa classificação, que considera o nível de processamento, é de fácil entendimento, e se chamou de classificação NOVA, privilegia os alimentos cujo sistema de produção e distribuição sejam socialmente e ambientalmente sustentáveis, e resultem em mais saúde para a população. 

Fundação Heinrich Böll: Como funcionam os graus de categorização da Nova classificação dos alimentos? 

Mónica Guerra: A classificação NOVA tem 4 graus de categorização e foi incorporada em vários países, na voz de vários especialistas, sendo pioneira nessa proposição crítica contemporânea do que é nutrição e saúde pública - com mais de 400 publicações científicas indexadas que usam a classificação como base, desde a sua formulação em 2009. 

Em síntese ela considera que existem alimentos in natura, aqueles que não sofrem qualquer alteração, são consumidos no seu estado natural (por exemplo, uma peça de fruta) e os Alimentos minimamente processados (na mesma categoria, e ambos incentivados) são aqueles que foram submetidos a algum processo que permite seu melhor consumo (limpeza, moagem, secagem, por  exemplo) mas sem agregar outros produtos como sal, açúcar, ou gorduras ao alimento de base (por exemplo, o café torrado e moído, ou frutas desidratadas). 

Depois vêm as gorduras e óleos, açúcar e sal, que são alimentos usados para temperar e cozinhar e para criar preparações culinárias, que em si mesmo não devem ser consumidos, são muito próximos do alimento in natura, e são importantes para o ato de cozinhar (por exemplo, o azeite ou a manteiga). Na terceira categoria estão os alimentos processados, que sofrem processos de adição de outros alimentos para aumentar sua durabilidade ou sabor. O processamento com esse objetivo é importante, mas quando o alimento processado é usado para substituir uma refeição completa, esse uso não é incentivado - deve ser moderado. Alimentos como frutas em conserva ou calda de açúcar, pães, queijos, fazem parte desse grupo. 

Por último, existe a categoria dos ultra processados, que são os produtos alimentares produzidos na sua quase totalidade de substâncias extraídas ou derivadas de alimentos ou ainda produzidos pela própria indústria, com base sintética e química (inclusive constituintes de petróleo) com técnicas de processamento altamente industrializadas, que muitas vezes buscam substituir refeições completas mas com total desbalanço nutricional e alto valor calórico e de substâncias nocivas - alto teor de gorduras, açúcar, sal, etc. São alimentos que resultam de práticas e processos social, ambiental e culturalmente danosos, que não respeitam a saúde das pessoas, os recursos naturais (provêm muito da produção monocultural de escala e de commodities) e que geralmente, são consumidos individualmente. Macarrão instantâneo, biscoito recheado, doces e guloseimas, refrigerantes, salgadinhos, são exemplos que fazem parte desse grupo. Esses produtos alimentícios devem ser evitados, por não contribuírem positivamente para as pessoas, as sociedades ou o planeta. 

O Guia fórmula o que chama de regra de ouro, simples de entender e de implementar, orientando as escolhas e autonomizando os indivíduos nas decisões alimentares: preferir sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados. 

Fundação Heinrich Böll: Para encerrar, como é o trabalho que vocês desenvolvem no Instituto Comida do Amanhã? Quais ações o Instituto tem organizado para promover a defesa de uma alimentação adequada e saudável? 

Mónica Guerra: Somos um think tank que trabalha no sentido de promover alimentação saudável para todos, apoiando uma transição para sistemas alimentares mais justos, biodiversos, fundados nos pilares da sustentabilidade e acessíveis. Com essa missão, agimos em duas frentes principais - trazendo informação relevante e buscando comunicá-la de forma simples para que todos os cidadãos possam estar empoderados de conhecimento para fazerem melhores escolhas alimentares, ao mesmo tempo que agimos no sentido de melhorar, debater e advogar por políticas públicas centradas no direito à alimentação saudável e sustentável, para que mais pessoas possam fazer melhores escolhas - escolher uma alimentação mais saudável e sustentável e ter acesso a esse alimento. Fazemos isso de diversas formas, fundamentalmente promovendo debates intersetoriais, produzindo conteúdo de reflexão e análise, traduzindo criticamente, divulgando e debatendo documentos e publicações de referência que tanto trazem a perspectiva e confirmam os impactos dos sistemas alimentares atuais - informar e engajar para que todos possam fazer melhores escolhas - , como orientam o caminho a seguir para que possamos inverter esse caminho, apoiando a construção e proposição de políticas públicas que permitam que mais pessoas possam fazer melhores escolhas e ter acesso a essas escolhas. Realizamos ainda projetos, eventos, publicações, que aliem a criatividade com a reflexão, juntando saber e sabor, a cozinha com o debate técnico, propondo um olhar crítico, afetuoso e fundamentado, até porque mudar o mundo pela comida é coisa que exige cuidado, amor e razão. 

 

Baixe aqui o “Isto não é (apenas) um livro de receitas - é um jeito de mudar o mundo”, publicado pelo Comida do Amanhã em parceria com a Fundação Heinrich Böll e Unirio.

 

*A entrevista foi realizada por e-mail.