As biodigitais da amazônia

Modificações milenares na paisagem amazônica comprovam o papel dos povos originários na construção da floresta e revelam a ancestralidade de saberes utilizados até hoje pela população indígena na região.

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Ilustração

A Amazônia pode ser concebida como um labirinto devido à infinidade de rios, igarapés, lagos, furos e paranás. Nesses lugares, há as estações de subida, cheia, descida e seca dos rios, que ocorrem desde a tríplice fronteira entre o Brasil, a Colômbia e o Peru, e chegam até a margem esquerda do Rio Xingu. Esse fenômeno é importante no equilíbrio ecológico da região, e os povos da Amazônia antiga transformaram esses espaços e lugares em paisagens biodigitais.

As paisagens biodigitais constituem as culturas materiais e imateriais dos povos ancestrais que habitam as florestas da Amazônia há cerca de 13 mil anos. Elas estão presentes em todos os ecossistemas amazônicos, seja na várzea, seja na terra firme. Desde os anos 1940, pesquisas arqueológicas vêm divulgando uma série de intervenções nesses espaços-lugares, dentre as quais estão as florestas, que têm as digitais desses povos ancestrais.

As assinaturas biodigitais contidas nas florestas são as paisagens modificadas por meio de ações humanas. Essas ações consistiram principalmente no deslocamento de sementes e de mudas de plantas do ecossistema de terra firme para áreas de várzea. Os sítios arqueológicos nesses ecossistemas são repletos de ampla diversidade de plantas conhecidas, sem esforço, pelos povos originários contemporâneos ou por outros que manejam os sítios hoje. Esses locais funcionam como laboratórios ao ar livre, contemplando saberes expressivos para a compreensão do passado e do presente.

Além das espécies de plantas domesticadas, nos sítios arqueológicos são encontradas ferramentas líticas (feitas total ou parcialmente de pedra) e cerâmica, que também contam a história ambiental da Amazônia antiga.

No que tange às plantas domesticadas na Amazônia antiga, estudos arqueobotânicos vêm identificando evidências de resíduos de alimentos de plantas amansadas/domesticadas. No sítio arqueológico sambaqui Monte Castelo, localizado no Rio Branco (tributário da margem direita do Guaporé, em Rondônia), escavações revelaram informações sobre domesticação de plantas, como a maniva cultivada e amidos coletados da raiz de mandioca.

Outro achado importante é o “pão de índio”, também chamado de beiju ancestral — uma massa cozida da mandioca ou da macaxeira, misturada com gomo e castanha, e enterrada como oferenda à mãe terra durante o período de pousio da roça.

Infográfico - Biodigitais da Amazônia antiga

As biodigitais provam a participação humana ancestral na construção do que entendemos hoje como o bioma Amazônico.

Além das manivas da mandioca amarga e doce, cultivadas há milhares de anos, as pesquisas arqueobotânicas revelam outras espécies manejadas pelos povos ancestrais, como: abacaxi, açaí, bacaba, batata-doce branca e cor-de-rosa, amendoim, castanha, cacau, guaraná, cubiu, jerimum, pimenta, jenipapo, crajiru-caioé, tucumã, piquiá, patauá, urucuri, mucajá, mumurumu, andiroba, copaíba, sucuba, tomate, maracujá, milho, feijão, arroz etc.

À medida que os povos ancestrais se fixavam nos espaços, também desenvolviam alternativas para garantir estabilidade e produziam tecnologias para atender às demandas sociais. Nesse contexto, surgiram os artefatos de rochas — as ferramentas líticas.

Pesquisas da primeira metade do século XX deduziram que as ferramentas líticas eram pouco presentes na Amazônia, devido à escassez de matéria-prima. No entanto, desde os anos 1990, pesquisas vêm mostrando que os povos ancestrais produziam ferramentas eficazes. Isso se deve, em parte, ao contato entre diferentes povos indígenas, como os do alto Rio Negro com os do alto Amazonas-Solimões e regiões adjacentes, o que permitia o suprimento de matéria-prima.

Infográfico - O ciclo do arroz na pai sagem amazônica

Em 2002, escavações no Sítio Arqueológico Dona Stella, em Iranduba (AM), coordenadas pelo arqueólogo Eduardo Góes Neves no âmbito do Projeto Amazônia Central, identificaram uma ponta de flecha datada de 7 a 6.500 anos a.C. Outras ferramentas como lâminas de machado, pilões, rapadores, batedores e cunhas foram encontradas tanto em áreas de várzea quanto em terra firme.

As ferramentas de rocha foram base de indústrias culturais que atendiam a trabalhos intensivos na Amazônia, resultando na diversidade de plantas hoje presentes nos sítios arqueológicos — uma base do que se tem chamado de “bioeconomia”.

A cerâmica arqueológica surgiu durante o Holoceno, há cerca de 6 mil anos a.C., como solução para acondicionar alimentos, água, bebidas ou sementes. Escavações encontraram cerâmicas Sinimbu e Bacabal: as Sinimbu, localizadas nos níveis mais profundos dos sítios (seis metros), são pequenas bolotas de argila queimadas associadas a fogões primitivos; já as Bacabal são decoradas e datadas de 4 mil anos.

Esses registros cerâmicos e botânicos são exemplos das assinaturas bioancestrais da Amazônia antiga. Eles comprovam a ancestralidade dos saberes indígenas no cultivo e preservação das paisagens, revelando formas menos predatórias de interação com a floresta.