O contexto político do Chile está sofrendo uma reviravolta. Com a rejeição do texto constitucional no ano passado, o Parlamento chileno entrou em nova votação, na qual a extrema-direita conseguiu eleger mais da metade da bancada para elaborar uma nova constituição. Mas para chegar a tal ponto, temos de lembrar que o Chile teve um contexto histórico moldado pelas grandes manifestações de 2020.
Cerca de três anos atrás, começava uma série de protestos no país sul americano, que a princípio se deram por conta do aumento do preço da passagem de metrô. Estudantes do ensino médio não toleraram o aumento de 3,75%, algo que não acontecia há uma década. A partir de então as manifestações se tornaram massivas, acarretando uma eclosão de protestos alinhados à esquerda. Deste processo resultou o pedido para uma nova constituição, já que a atual foi promulgada em 1990, na ditadura do governo Augusto Pinochet.
O Governo do Chile vive um momento paradoxal, visto que seu presidente, Gabriel Boric, é de esquerda, porém o Parlamento é ocupado em sua maioria por parlamentares de direita, equivalente a dois terços da bancada. Esses mesmos parlamentares não queriam uma nova Carta Magma, porém vão liderar o processo de reformulação. Angela Erpel, nossa coordenadora de Democracia e Direitos Humanos do escritório de Santiago do Chile analisa a situação e nos conta o que está em jogo na disputa dentro do Parlamento para a nova constituição.
"A esquerda tem sua asa direita, a direita tem sua asa esquerda. Eu ouço o murmúrio das asas, mas sei que nenhum pássaro voará pelo ar".
Heinrich Böll
A vitória esmagadora dos representantes do Partido Republicano (PR) no Chile, no marco das votações do longo - e já tedioso - processo constituinte é outro sinal de uma tendência de forte apelo aos líderes políticos tradicionais. Desde as massivas manifestações de 2020, chamadas de “estalido”, até agora, agiram de forma errática e inoportuna, mostrando mais uma vez sua ignorância das necessidades dos cidadãos, tanto em forma quanto em conteúdo.
A fração mais radical da direita, com um discurso anti-partidos, adotando posições inflexíveis frente à diversidade e pluralismo e sem esconder sua rejeição às mudanças estruturais do modelo de governo atual, esmagou seus oponentes, conquistando, como nunca antes na história do país, mais de 50% do número total de votos. Os resultados dessa votação são, em termos das clivagens políticas clássicas de esquerda e direita, quase exatamente iguais aos do plebiscito sobre o texto constitucional, que foi rejeitado pela população em 2022: 62% votaram na direita e 38% na coalizão de esquerda, além disso, dividida em duas listas, uma das quais (a da antiga Concertación )¹ não conquistou uma única cadeira.
Essa vitória confortável faz do Partido Republicano o mais votado desde 1989 até o momento, superando a centro-direita pela primeira vez. Isto à primeira vista sugere dois fios de entendimento: a extrema direita tem garantido o controle do processo constitucional e, devido ao seu número de membros eleitos, tem o poder de veto no Conselho Constitucional, portanto, resta saber o quão radical ela será nessa função. A segunda coisa é que isso mostra uma clara redução no governo liderado por Gabriel Boric, o que significaria considerar a possibilidade de redefinir seu programa de governo, já que esse resultado sugere que o governo está agora em minoria, tanto no Congresso Nacional, onde a direita tem mais representantes, quanto no voto popular, onde os projetos transformadores do programa do partido governista foram rejeitados por uma grande maioria nas urnas nas duas últimas votações.
Três anos depois de um fenômeno da magnitude das massivas manifestações de 2020, parece hoje que as exigências do povo chileno não eram pela transformação profunda do modelo neoliberal, mas sim uma demanda por justiça social moderada, para que o modelo funcione melhor para todos.
Em suma, o Chile está farto de ser "o laboratório latino-americano do neoliberalismo" e quer receber parte dos lucros após décadas de doutrina de choque. ²
Populismos feitos sob medida
O atual contexto político no Chile tem sido lido internacionalmente como "flutuante", já que em apenas três anos o país passou de uma insurgência popular maciça, para uma guinada ao populismo conservador e ideológico, como o liderado por Kast. Uma população cansada de votar, empobrecida pela pandemia e por uma inflação que não dá trégua em termos de custo de vida. Uma pauta de notícias que aposta em gerar ainda mais medo e insegurança, exacerbando uma série de ataques violentos a cidadãos comuns, apontando a crise migratória como um fator de perigo e usando todo o poder da mídia para gerar um clima de instabilidade. Disto tudo vai resultar uma rejeição enérgica de qualquer discurso que promova fortes mudanças, sinônimo de ainda mais incerteza.
O voto obrigatório canalizou a insatisfação generalizada com a política tradicional daqueles que historicamente se abstiveram de votar (mais da metade do eleitorado), e é por isso que o PR foi a voz principal, apesar do fato de que tudo nele parece ser um paradoxo: é um partido contra os partidos, mas funciona como tal e tem uma organização partidária, concorre e vence. Eles, que desde o início se recusaram a mudar a constituição, pediram para rejeitar e boicotar todo o processo constituinte, hoje são os que liderarão o processo constituinte, inclusive com poder de veto. Hoje estamos enfrentando um populismo, mas mais precisamente um populismo de direita.
O maior número de votos foi para o ideológico, o Partido Republicano, e não para o incipiente Partido de la Gente, que também está ganhando adeptos nesse setor. Ele teve um grande número de seguidores nas eleições anteriores, mas não é um partido de centro, como às vezes é retratado, mas uma variante da direita, uma derivação dos partidos tradicionais de direita e o que foi sociologicamente chamado de "tecnopopulismo", que vem sendo analisado desde 2018 em algumas democracias europeias e que se aplica ao Partido de la Gente. Ele surge de uma desconexão entre a política e a sociedade: longe de resolver essa separação, os tecnopopulistas a exacerbam, corroendo as bases da representação democrática. A chave para uma resposta a esse desafio apresentado pelo tecnopopulismo reside na busca de novas formas de intermediação política, e é aqui que certamente se encontra a chave para a derrota do Partido de la Gente.
O que moveu o ponteiro em direção à direita radical desta vez foi, sem dúvida, a consistência demonstrada desde o início pela direita radical. Eles sustentaram uma crítica frontal ao governo, o que os outros partidos não fizeram e estavam inclinados ao consenso e ao diálogo. Um exemplo concreto disso foi a agenda de segurança que todos os partidos de direita compartilhavam, mas com diálogo com os outros setores, mas não com o PR, que apostou na banalização desse cenário, com a promessa de restabelecer a ordem e a autoridade, garantindo a estabilidade, da qual nenhum dos outros partidos era fiador.
Com esse discurso, superaram Joaquín Lavín - o candidato de centro-esquerda que, segundo todas as previsões, venceria a eleição - cristalizando um processo que estava em andamento há muito tempo. Isso não deve ser interpretado como uma direitização da sociedade, porque a esquerda também está encolhendo em comparação com outros períodos históricos, nos quais sempre teve um terço. Hoje, ela não chega nem a um terço mesmo quando está no governo, como aconteceu durante os anos da Unidad Popular, quando cresceu de forma sustentável, como mostram as eleições municipais de 1971 e as eleições parlamentares de 1973.
Hoje, a esquerda está se consolidando como um nicho minoritário, o que dificultará uma necessária ampliação. A esquerda, não tendo poder de veto, terá que apostar na moderação vinda do Comitê Técnico de Admissibilidade, que deverá garantir o respeito aos 12 pontos mínimos acordados pelos partidos para estabelecer a Constituição³ e que já foram renunciados, bem como os acordos que cheguem ao Comitê de Especialistas. Essa é a única maneira de moderar uma possível constituição extremista e de controlar esse órgão.
Atualmente, a direita tem o poder de redefinir um texto que alguns preveem será modulado de certa forma por esses outros órgãos; no entanto, há mudanças profundas que podem ser feitas, como, por exemplo, as relacionadas ao estado subsidiário, uma espécie de estado mínimo, no qual não apenas há uma redução da participação do Estado na vida econômica e social, mas também promove a participação privada em todas as esferas da vida cotidiana (saúde, educação, alimentação, moradia). Isso era exatamente o que o processo constitucional anterior queria mudar, pois, propunha um "estado social e democrático baseado no estado de direito". Esse era um dos mais fortes bastiões para transformar o sistema político, mas foi uma tentativa mal sucedida, assim como todo o processo. Embora atualmente não haja nenhum artigo que consolide o estado subsidiário, é possível que se considere colocá-lo na declaração.
O que acontecerá com a esquerda? Até agora, eles estão apenas tentando impedir a imposição de uma constituição mais autoritária e hegemônica que ignora a pluralidade.
A convocação de um voto de rejeição coloca a esquerda em uma situação ainda mais conflituosa, pois, se perder, será mais uma derrota, e uma terceira derrota seria o golpe de misericórdia para esse projeto de governo.
Como uma linha na areia, fica claro que em um mundo instável, no qual não há segurança a curto ou médio prazo, o que as pessoas querem são certezas para viverem em paz. Esse mal-estar espanta ainda mais essa população que não quer votar, que acha inútil, que tem um profundo descontentamento com essa democracia representativa que não a representa e que limita a participação popular a votar em políticos os quais detesta.
Essa constituição não incluirá as mulheres, a diversidade, os povos indígenas ou qualquer outra manifestação de pluralidade. No entanto, também não podemos afirmar que é um eleitorado fascista ou totalitário. Não existe apoio político suficiente para apontar isto. Mas, de fato, simplesmente não há outro projeto que possa tirar as pessoas dessa orfandade política.
Mesmo com uma taxa de abstenção muito alta (18% é muito alto já que há voto obrigatório), o voto popular é claro para a esquerda: então, que deixe de lado os significantes vazios e volte aos princípios que deram origem a seus postulados. A esquerda chilena deixou de lado o discurso em prol da população trabalhadora e privilegiou e deu protagonismo às políticas identitárias, mas, ainda assim, sem fundamento e, muitas vezes, à revelia dos movimentos sociais, e isso cobrou seu preço.
Atualmente a extrema direita está falando em alto e bom som para os trabalhadores que se decepcionaram com a volatilidade dos novos líderes e nunca entenderam muito bem o léxico acadêmico e importado com o qual eles tentaram seduzir um povo atingido por dívidas, alto custo de vida, instabilidade no emprego, baixos salários e um clima de desconfiança e medo das próprias pessoas ao seu redor.
¹ A Concertación de Partidos por la Democracia (em português: Coalizão de Partidos pela Democracia, conhecida popularmente como Concertación ou Concertación Democrática) foi uma coalizão eleitoral de partidos políticos chilenos de centro-esquerda, na qual confluem social-democratas e democratas-cristãos.
² A escritora canadense Naomi Klein, no livro The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism [A doutrina do choque: O auge do capitalismo do desastre] afirma que a história do livre-mercado contemporâneo foi escrita em choques e que os eventos catastróficos são extremamente benéficos para as corporações. Ao mesmo tempo a autora revela que os grandes nomes da economia liberal, como Milton Friedman, defendem o ‘capitalismo do desastre’.
³ Ver mais em: https://www.pauta.cl/politica/acuerdo-constitucional-cuales-son-las-12-bases-que-contemplaria-el.