A conferência do clima em Madrid (COP 25) teve a prorrogação mais longa de todas as conferências climáticas até hoje. As negociações seguiram até domingo de manhã. E mesmo assim, o documento final saiu fraco e adia quase todas as questões essenciais para ano que vem. Um fracasso, uma catástrofe para os esforços em salvar o planeta? Na minha opinião, considerando todos os possíveis resultados da conferência, esse fracasso tem um lado bom em relação à pelo menos um aspecto: o comércio de emissões.
Para entender essa avaliação é preciso saber o que exatamente foi negociado na COP 25, em Madrid. Não, não fazia parte da agenda o que deveria ser necessário fazer, se levassem em consideração os alertas de várias regiões do planeta: um imediato aumento das ambições, uma decisão que imediatamente e massivamente daria um passo à frente nos esforços comuns de redução de emissões. E ao mesmo tempo, ajudaria aos países mais pobres e vulneráveis enfrentar os danos climáticos já em curso.
Em vez disso, o que estava na agenda eram principalmente as “regras do jogo” do comércio internacional de emissões: as “letras miúdas” do artigo 6 do Acordo de Paris. Uma coalizão de países latino americanos e membros da União Europeia conseguiram impedir a tentativa de combinar regras que teriam tornado o comércio de emissões um golpe gigantesco, uma traição a opinião pública internacional. Mas os resultados mostraram também porque o comércio de emissões não é uma boa ideia e que, portanto, porque o fracasso das negociações do artigo 6 talvez seja o melhor resultado que se poderia esperar das negociações climáticas sobre esse tema.
O comércio internacional de emissões negocia um bem especial: a redução das emissões em um país pode ser descontada das metas de redução de outro país. Isso quer dizer que permite a um país comprador emitir mais emissões do que foi comprometido internacionalmente.
Economistas elogiam esse comércio como uma oportunidade de atingir as metas internacionais de clima de forma mais barata – e porque é mais barato, argumentam que os Estados estarão mais dispostos a se comprometer com metas mais ambiciosas. Mas essa argumentação tem como base fantasias, pré-condições que não correspondem à realidade.
A redução de emissões é medida frente as metas depositadas pelos países membros do Acordo de Paris. São compromissos voluntários, chamados de Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs, sigla em inglês), nome das metas no jargão do acordo. Longe disso, as NDCs são insuficientes para atingir a meta global do acordo de Paris, ou seja, limitar o aumento da temperatura média global a 2°C, com esforços para 1,5°C. Segundo o relatório Emissions Gap Report, publicado em novembro pelo Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA), se implementados, esses compromissos voluntários adicionariam às emissões de gases de efeito estufa (GEE) em torno de 55 gigatoneladas de CO2e. Isso é mais que o dobro das 25 gigatoneladas que o mundo poderia emitir para ficar dentro do cenário de 1,5 °C, e ainda mais que 50 % da quantidade para o aumento da média de temperatura global não ultrapassar 1,8°C.
Para fazer uma analogia com o salto com vara: Os Estados definem por eles mesmos sua barra em forma de NDCs e fazem isso a cada poucos anos, de novo e de novo. Agora com o comércio de emissões sob o artigo 6, seria permitido que os Estados transformassem em dinheiro a diferença entre a barra e o salto. Que incentivo esse tipo de sistema oferece para a altura da barra? Obviamente, para pendurar a barra o mais baixo possível para que possa ser saltada com facilidade. Um incentivo perverso em uma situação em que os países deveriam colocar a barra duas vezes maior que a altura que colocam atualmente. Esse é um sistema que não vai funcionar.
No entanto, Madrid mostrou um segundo efeito do comércio internacional de emissões que deve parecer absurdo mesmo para um observador desinteressado. A redução de emissões, que pode ser reconhecida como direito de emissão em outro lugar, se transforma em valor, em um bem, um ativo financeiro. E cada um que tenha um ativo vai lutar para que ele mantenha o seu valor. Isso quer dizer que os direitos de emissões uma vez criados, seguirão sendo reconhecidas como tal.
Esse foi o ponto mais disputado em Madrid. De acordo com as posições de alguns países (China, India e Brasil), as reduções de emissões do comércio de emissões do Protocolo de Quioto (do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, MDL) também deveriam ser reconhecidas sob o acordo de Paris. Essas reinvindicações seguem de pé, embora especialistas enfatizem que grande parte dos assim chamados créditos MDL não representam uma real redução de emissões, mas resultados de todo tipo de truques preguiçosos. Todavia, isso tem consequência na economia política do comércio internacional de emissões: os direitos de emissão foram convertidos em ativos que encontram apoiadores entre os países que que lutam para que sua validade se estenda. E isso em um tempo em que o número de direitos de emissões deveria ser drasticamente reduzido, pelo menos pela metade.
Por fim, mas não menos importante, Madrid lançou luz em mais um ponto obscuro do comércio internacional de emissões. Sob o antigo MDL, países industrializados podiam usar créditos de países em desenvolvimento para reduzirem suas emissões em sua contabilidade, enquanto os países vendedores de créditos não tinham que ajustar sua contabilidade de emissões para incluir o aumento de emissões correspondente nos países industrializados.
A contabilidade de emissões global tinha um buraco negro em que emissões de um ponto de vista contábil simplesmente desapareciam. E o Brasil – que sob o governo de Bolsonaro vem sendo taxado de um Estado anticlima – lutou duramente em Madrid para que esse buraco fosse deixado aberto. Em outras palavras, quis continuar vendendo sua redução de emissões para outros países e, ao mesmo tempo, creditar como seus próprios esforços para a proteção climática. Uma tonelada de redução de emissões de repente se torna duas. A sedução do dinheiro estimula a acrobacia de todos os tipos. Mas a atmosfera da Terra não perdoa emissões de CO2 reais – ela se esquenta e não se deixa impressionar pelos truques de contabilidade dos países.
Sob um sistema de compromissos nacionalmente determinados, como decidido por Paris, o comércio internacional de emissões produz estímulos massivos perversos, e isso não só uma vez, mas a longo prazo devido ao processo iterativo de determinar os compromissos. E, como Thomas Spencer argumentou, isso não é necessário para alcançar os objetivos climáticas globais, pois não há espaço para compensações se levarmos a sério a possibilidade de atingir os 1,5ºC ou mesmo apenas o “bem abaixo dos 2ºC”.
As negociações em relação ao artigo 6 deveriam ser suspensas ou estacionadas em um grupo de trabalho para não prejudicar a agenda mais importante da próxima COP 26, em Glasgow, ou seja, o aumento coletivo das ambições climáticas. As negociações climáticas nem sempre são sobre proteção do clima. Nestas condições, o fracasso das negociações de Madrid sobre o Artigo 6 é um bom resultado.