A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados (CCJC) aprovou ontem (6/10) o PL 215/2015, conhecido como PLespião. Caso esta lei seja aprovada nos outros trâmites do Congresso Nacional, será instituída, entre outras normas, a exigência de cadastro para acessar a Internet. Uma das vozes resistentes a esta nova proposta de lei é Sérgio Amadeu, professsor da Universidade Federal do ABC, conhecido pela militância pelo software livre, inclusão digital e política de privacidade na rede. Em conversa com a Fundação Heinrich Böll Brasil, pouco antes da aprovação do PL pela CCJC, Sergio explicou os riscos que o Marco Civil da Internet está sofrendo, alertando que o PL 215/2015 pode fazer com que passemos a viver uma situação típica de países com a ditadura. Segurança na rede e o caráter ambivalente da internet também estão entre os temas da entrevista.
Sérgio é um dos palestrantes do "Diálogos Böll - Ambivalências Digitais: potencializando a democracia, controlando os cidadãos", evento que começa logo mais no Centro do Rio de Janeiro. A programação pode ser acompanhada ao vivo aqui no site da Fundação Heinrich Böll.
HBS: O evento de 15 anos da Fundação Böll trata das ambivalências digitais, no sentido de que a internet, e tudo que ela envolve, potencializa a democracia, mas cada vez mais tem sido usada para controlar os cidadãos. Você acredita que há essas ambivalências?
Sergio Amadeu: A internet é uma rede cibernética, ou seja, é uma rede de comunicação extremamente importante onde prevalece a lógica da liberdade sobre a lógica da permissão, mas essa comunicação é feita em cima de tecnologias de controle. Praticamente tudo que fazemos na internet deixa um rastro digital. A interação que ocorre na rede se faz a partir de protocolos que permitem que os comunicantes tenham posições inequívocas. Isso por um lado assegura que nós tenhamos uma comunicação rápida, veloz, que recobre o planeta. Ao mesmo tempo, também pode ser usada por Estados que querem controlar, acompanhar a navegação das pessoas, vigiar os cidadãos. Por isso a internet é um exemplo claro de uma tecnologia ambivalente. Ela tanto serve para que a gente possa convocar manifestações, realizar protestos, articular pessoas em prol de causas de defesa dos direitos humanos, do meio ambiente; quanto permite que corporações comprem e vendam os dados das pessoas.
A internet também é um campo em disputa, e nós devemos defender que ela seja livre. Aí é que está a ambivalência, aí é que está o elemento muito importante desse evento que a Fundação Heinrich Böll está organizando nos seus 15 anos de Brasil. Eu concordo plenamente com o temário do evento e acho que ele dá uma grande contribuição por ser mais um ponto de reflexão sobre a necessidade de defendermos que a internet continue livre e democrática, contendo a diversidade no seu interior.
HBS: O caso do Snowden e da NSA foi um marco na divulgação sobre os sistemas de espionagem dos EUA. Quais foram as consequências disso?
Sergio Amadeu: Aqueles que tinham a possibilidade de falar que não sabiam ou não conheciam os esquemas de espionagem massivas, não podem mais dizer isso. O Snowden cumpriu um papel fundamental de mostrar que há um governo que é aparentemente democrático, mas que quer implantar um Estado de exceção que suspende os direitos e garantias individuais, criando uma zona de indefinição, uma zona completamente absurda no ciberespaço, em que qualquer cidadão pode ter seus dados escaneados e analisados, sua navegação vigiada, seus e-mails observados, lançados em bacias de dados para o processamento big data e Data Mining.
Na verdade essa ilusão que os Estados liberais democráticos respeitam os cidadãos não pode mais ser a condutora das nossas ações e nem dos nossos pensamentos. É preciso rapidamente criar tratados internacionais contra a militarização da internet, contra a sua transformação em espaço de vigilância global, e é necessário, em cada país, tomar precauções. As pessoas precisam ter leis que constranjam as corporações que entregam os dados para NSA, e que garantam o direito à privacidade. Isso cria um enorme debate sobre a economia informacional, visto que boa parte da economia informacional se baseia no mercado de interceptação e intrusão de elementos nos computadores e nos aparelhos das pessoas. Acho que o Snowden deixa tudo isso claro.
Mas pouco foi feito efetivamente no Brasil. Uma das coisas que nós conseguimos de benefício a partir das denúncias do Snowden foi aprovar o Marco Civil, que coloca o princípio da neutralidade da rede muito forte, ou seja, o controlador do cabo, por onde passa as informações, não pode filtrar e nem bloqueá-las. Ele deve ser neutro em relação ao fluxo de informação que passa pelas fibras óticas e pelos cabos. As empresas de telecom, esse grande oligopólio mundial, perceberam a relevância econômica e política deste cenário em uma sociedade em que grande parte da comunicação humana será feita a partir dos seus cabos, a partir do digital. Assim, eles querem controlar tudo. Mas nós mostramos que a iniciativa dessas empresas, a liberdade de minuto grupo de oligopolista, prejudica a liberdade de toda a sociedade. Então é preciso regulamentar e dizer que eles não podem filtrar nosso tráfego. É preciso neutralidade em relação ao tráfego de informações, que passam pelos cabos.
Outra coisa importante com o resultado da aprovação do Marco Civil foi uma série de elementos de privacidade, por exemplo, o Estado brasileiro não pode entrar na sua caixa postal sem uma ordem judicial. Infelizmente, o Congresso atual, esta legislatura que entrou neste ano com novos deputados, colocou um projeto de lei, antes de o Marco Civil completar um ano, destruindo praticamente a defesa da privacidade, estendendo a necessidade de guardar registros de navegação, o que fragiliza mais ainda o cidadão. E o pior, o projeto permite que cada autoridade estatal tenha acesso a meta dados e aos dados dos cidadãos que usam a internet no Brasil sem ordem judicial. Então imagine [caso o PL 215/2015 seja aprovado] o que aconteceria pelo Brasil com os ativistas e com pessoas comuns que ficariam à mercê de funcionários dos aparatos de repressão, que teriam livre acesso às caixas postais das pessoas, aos dados cadastrais. E tudo isso seria feito em defesa dos direitos das pessoas. Imagine um ativista ambientalista do Mato Grosso ou Amazonas e um deputado ruralista mandando um policial amigo acessar a caixa postal dele. Para isso não seria necessário o devido processo legal. Então isso criaria um Estado de exceção no Brasil, o que é inaceitável. Precisamos lutar fortemente contra essas medidas que são interpretadas por políticos que querem evitar as crítica a eles e, mais do que isso, querem criar um mercado de compra e venda, livre das amarras dos direitos dos cidadãos.
HBS: Como você acabou de explicar, há muitos riscos para o Marco Civil da internet hoje. E como está organizada a resistência?
Sergio Amadeu: Na ocasião do Marco Civil e da proposta de lei conhecida como AI-5 Digital foram chamados acadêmicos para participar das audiências públicas, mas na discussão desses novos projetos isso não está acontecendo. Dessa vez as audiências foram menores, o projeto é muito grave [PL 215/2015]. A resistência está sendo feita na rede, temos pedido para que as pessoas mobilizem deputados, independente dos partidos, que mostrem o risco que é um policial, sem o devido processo legal, ou uma autoridade qualquer, poder entrar no provedor e pegar dados das pessoas. Isso é gravíssimo e gera uma situação de chantagem. Uma situação quase típica de países que são ditaduras, como a China.
Começamos a fazer vários protestos nas redes. Uma das deputadas disse: “esses protestos nem fazem nenhum mal, nem tô aí com eles. Eles não prejudicam, não me atingem”. Na verdade ninguém quer atingi-la, queremos mostrar que a opinião pública se coloca contra essa ideia equivocada de romper direitos e garantias individuais para poder garantir direitos de apenas uma parte das pessoas. Isso nunca deu certo em nenhum lugar do mundo. As entidades ambientalistas, dos direitos das mulheres, sindicais, de bairro, associativas de causas específicas, todas elas usam a internet. Todas elas podem deslocar interesses dos poderosos, e quem vai se prejudicar exatamente com uma lei ruim como essa que eles querem aprovar serão todos aqueles que têm uma causa a defender. Não importa qual é a coloração dessa causa, se a causa é justa ou se ela é legítima, essas pessoas podem ser molestadas pelo poder descomunal que poderá acessar sua caixa postal e saber tudo sobre elas. Então nós não podemos permitir isso.
O que podemos fazer agora é todo e qualquer tipo de protesto, mobilização... escrever artigos para a imprensa tradicional, colocar um protesto no site, na entidade, pedir para os aliados mandarem e-mails para os deputados, postar manifestações nas redes sociais. É mostrar que esses deputados têm interesses que são inaceitáveis numa sociedade democrática, é defender a liberdade na rede.
HBS: Para defender leis como o PL 215/2015 está sendo muito usado o discurso de proteger os cidadãos de calúnia e difamação. Trata-se de um discurso vazio?
Sergio Amadeu: É um discurso vazio sobre uma rede cibernética, na qual tudo deixa rastros digitais. Falar, por exemplo, que uma pessoa pode criar um perfil falso e se safar é muito complicado, porque se ele fez uma calúnia, já se trata de crime no Brasil. O que não dá para aceitar é que deputado seja um cidadão de uma categoria superior a nossa. É como se uma calúnia contra um deputado valesse mais do que uma calúnia contra qualquer um de nós. Claro que não! Uma calúnia contra um cidadão é uma calúnia e deve ser punida.
Injúria, calúnia e difamação já são crimes e as pessoas podem ser processadas, o Marco Civil não impede isso. O Marco Civil só permite que o internauta não tenha a sua privacidade violada sem o devido processo legal, sem alguma comprovação mínima de que ele cumpriu algum tipo de infração. Isso é a base de uma democracia em qualquer lugar do mundo. Se eu perguntar para uma pessoa: "olha, a polícia pode entrar na sua casa sem ordem judicial?", certamente a pessoa vai falar: "acho que não". Só que ela muitas vezes esquece que se a polícia entrar na casa dela sem ordem judicial, o que seria um absurdo, a polícia nunca teria tanta informação quanto se a polícia tivesse acesso à caixa postal ou aos sites que ela visitou por um determinado período. Se alguém tiver essas informações, é possível montar um perfil dessa pessoa. E saber o que a pessoa pensa sobre o chefe e os amigos, onde foi, o que pretende, o que sonha, o que quer comprar, o que comprou, se são homossexuais. Nós temos que resguardar a verdade.
Se o político for criticado e quer agir, ele pode acionar o Judiciário. Tudo isso já está colocado. Mas aí tem gente que diz: mas isso é muito lento. Então devemos reforçar os organismos policiais, as agências que permitem apurar as infrações, mas não venha querer violar os direitos das pessoas. Quando você viola os direitos das pessoas, você não tem mais segurança, você tem mais insegurança. Um dos maiores crimes que existe na internet é a violação de privacidade. É inadmissível que a Câmara [dos Deputados] corrobore para que a violação de privacidade seja ampliada, e não reduzida.
HBS: Em um mundo no qual as pessoas oferecem de forma espontânea detalhes sobre suas vidas pessoais nas redes sociais, como chamar atenção para os perigos por trás disso?
Sergio Amadeu: Qualquer pessoa que coloca algo em uma rede social não pode ser mais ingênua, pois tudo que é inserido vai permanecer na internet. Ela dificilmente conseguirá tirar e quando ela for buscar um emprego, a primeira coisa que o empregador irá olhar é o Facebook, o perfil no Linkedin, nas redes sociais, no Instagram. Então essa pessoa deve saber que o que ela torna público dificilmente vai ser fechado algum dia. Ela também precisa saber que essas empresas [das redes sociais privadas] também têm acesso àquilo que ela não torna público e podem vender as informações sobre ela para ofertar produtos e modular comportamentos. O ideal ao saber disso é não usar e-mails que não sejam absolutamente comprometidos com a venda dos dados e usar redes sociais de uma maneira comedida. O Facebook é uma rede social muito complicada porque é verticalizada, tem a lógica da permissão, você só faz o que o Zuckerberg [Mark Elliot Zuckerberg, fundador e maior acionista do Facebook] permite. Há uma censura interna. Você poder ter uma conta no Facebook, porque lá está todo mundo, mas abrir também uma conta em uma rede federada e livre como Diáspora. Você pode publicar antes o post no Diáspora e replicar no Facebook, ou seja, tem várias coisas que podemos fazer que podem ajudar a reduzir o poder da vigilância e que nos torna mais seguro e cientes dos perigos que essas corporações e o vigilantismo traz para a gente nas redes.
HBS: Você faz parte do coletivo Actantes. Como é o trabalho que desenvolvem? Por que usar criptografia?
Sergio Amadeu: Nós somos um grupo de pessoas, como tantos outros coletivos, como o Anti-vigilância e Saravá, que tentam mostrar que para você ser livre é preciso ter privacidade e que as ferramentas de criptografia devem fazer parte do nosso cotidiano. A gente deve proteger as informações que nós achamos importante que não se tornem públicas. Com a Actantes fazemos curso para jornalistas, para eles tentarem proteger suas fontes, como usar Open PGP, e um cliente de mensagens instantâneas, como Pidgin, para poder fazer as coisas com mais segurança. É como os ativistas podem proteger suas informações. Muitos acham que não têm como se proteger, mas têm sim e é muito importante que eles aprendam isso. Usamos ferramentas que estão disponíveis na rede e que foram desenvolvidas pelas comunidades de Software livre e de segurança informacional. Divulgamos também alguns princípios dos cypherpunks, segundo os quais a criptografia pode proteger as pessoas e os seus ideais. Dizemos que não há violência que possa resolver uma equação matemática. Divulgamos também o Wikileaks e tantas outras organizações que também trabalham a ideia da verdade, da liberdade e da privacidade.