No dia 6 de agosto, entra em vigor a ampliação das tarifas comerciais sobre o Brasil para 50% anunciadas pelo presidente estadunidense Donald Trump no início do mês. Em carta enviada ao governo Brasileiro no dia 9 de julho, o presidente condenou o que chamou de “caça às bruxas” ao ex-presidente brasileiro de extrema-direita Jair Bolsonaro (2019-2022). Bolsonaro e aliados estão sendo processados no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF, na sigla em Português), a suprema corte brasileira, por ataque ao processo eleitoral brasileiro e tentativa de golpe de Estado. Diferentemente de outros países também objeto do aumento de tarifas, os EUA não possuem déficit comercial com o Brasil, mas superávit. Isso indica como o comunicado do governo dos Estados Unidos da América não foi apenas um movimento de pressão de Washington para renegociação com Brasília sobre as condições em que o comércio bilateral está sendo praticado.

Um tema menos destacado na cobertura internacional merece atenção por seus impactos sobre a democracia e soberania brasileiras: o uso da medida para pressionar o Estado brasileiro em defesa dos interesses das plataformas digitais e empresas estadunidenses de tecnologia. O anúncio de Trump visa interferir em como o STF tem atuado, seja multando as big techs estadunidenses, seja decidindo sobre o regime de responsabilidade de plataformas como no caso recente de interpretação de inconstitucionalidade parcial de um dos dispositivos do Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, 2014). Outro alvo são as regulações sobre plataformas digitais e sistemas de IA, como já tem sido o caso na Europa e em outros países.
A carta de Trump acusa sem provas que o Brasil tem praticado “insidious attacks on Free Elections and the fundamental Free Speech Rights of Americans”. O documento também alega que a suprema corte brasileira “has issued hundreds of SECRET and UNLAWFUL Censorship Orders to U.S. Social Media platforms”. A ideia de que haveriam “ordens secretas” foi levantada em 2025 por Mark Zuckerberg através da acusação de que “Latin American countries have secret courts that can order companies to quietly take things down” e também foi repetida, em 2024, por Elon Musk. Mas a sua origem é uma campanha de desinformação construída pelo antigo governo de Jair Bolsonaro para descredibilizar o processo eleitoral em 2022, alegando que o Tribunal Superior Eleitoral tinha uma “sala secreta”, ou “sala escura”, onde eram manipulados a totalização dos votos dos eleitores.
Juntamente ao anúncio das novas tarifas, os Estados Unidos também abriram uma investigação baseada na seção 301 pelo Departamento de Comércio (USTR, na sigla em inglês) focando em diferentes temas, incluindo mercados de interesse das empresas de plataformas digitais e tecnologia. As medidas visam proteger setores econômicos estadunidenses, especialmente o de tecnologias digitais, pressionando governo, reguladores e a Justiça a não avançarem no estabelecimento de regras e limites a essas empresas no Brasil. Entre esses interesses está a atuação dessas plataformas como atores centrais na esfera pública digital no Brasil, mas também interesses em outros mercados, como o de pagamentos digitais. Essas empresas reclamam da concorrência do sistema de pagamentos digitais público criado pelo Brasil (PIX, na sigla em Português).
O movimento do governo Trump em favor das big techs ficou mais evidente com o apoio destes conglomerados à decisão. A Computer & Communications Industry Association dos Estados Unidos (CCIA), que representam as grandes plataformas digitais, saudou a ofensiva dos EUA, e sublinhou que as decisões do STF “undermine the free flow of services and data, global speech and communication, and the open and globally connected internet”. A CCIA, ainda, critica o projeto de regulação de sistemas de IA, alegando que prejudicaria a competitividade das empresas estadunidenses em relação às chinesas. O projeto, segundo CCIA, “will severely restrict U.S. AI developers, as well as other U.S. businesses that deploy AI-powered services, from offering their up-to-date products and services in the Brazilian market, often the source of their competitive advantage”.
Para além da agenda regulatória, a entidade vê com preocupação a elaboração de uma estratégia brasileira de digitalização do governo, por prever a construção de infraestrutura pública digital com o intuito de reduzir os custos da tecnologia e ampliar o acesso dos cidadãos aos serviços públicos. A CCIA pediu ao governo dos EUA que monitore a situação para “ensure the rules associated with Brazil’s digital public infrastructure plans do not require U.S. companies to partner with or purchase from domestic companies”.
Outro alvo de críticas do governo estadunidense ao Brasil é a atuação dos BRICS, incluindo o movimento de pautar iniciativas de desenvolvimento de cooperação no setor de tecnologias digitais. A declaração do BRICS sobre a governança global da Inteligência Artificial aprovada neste ano exemplifica este esforço, que não é simples, mas é necessário. Na referida declaração está expresso a compreensão de que para a indústria de Inteligência Artificial contribuir para o desenvolvimento de um futuro mais equitativo e aprimorando as condições de vida das pessoas, é necessário que o desenvolvimento e implementação de I.A’s “must operate under national regulatory framework”, visando a regulação de mercados, a governança de dados e o acesso a novas tecnologias. O Brasil teve papel de liderança, com seu governo à frente da Presidência do Bloco. A gestão de Lula defendeu o papel dos BRICS para empoderar nações do Sul Global e promover um maior equilíbrio geopolítico, como expressou o atual Assessor de Assuntos Internacionais da Presidência da República do Brasil e ex-Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim.
Reações
O governo e a sociedade civil brasileiras reagiram com críticas, apontando como o anúncio e o comunicado foram uma interferência direta em assuntos internos do país. O presidente Lula respondeu em nota que “Brazil is a sovereign country with independent institutions that will not accept being taken for granted by anyone.” Sobre as alegações relacionadas às grandes plataformas digitais, o presidente acrescentou: ““in Brazil, freedom of speech is not mistaken by aggression or violent behavior. To operate in our country, every company, local or foreign, must be subjected to Brazilian legislation”. A sociedade também reagiu fortemente contra essa ofensiva. A mobilização de rua convocada para o dia 10 de julho, deflagrada inicialmente para defender uma proposta do governo Lula de taxação dos super ricos no país, contou com mais de 15 mil pessoas nas ruas e encampou a bandeira de defesa da soberania do Brasil. Concomitantemente, uma carta em defesa da soberania nacional foi assinada por mais de 200 organizações acadêmicas, profissionais, da sociedade civil e movimentos sociais.
Em relação ao enfrentamento dos interesses privados das grandes plataformas digitais, a Rede pela Soberania Digital (que reúne dezenas de coletivos, movimentos e entidades da sociedade) lançou carta ao presidente Lula, defendendo a construção de um Plano Nacional de Soberania Digital “que possa potencializar e compartilhar as evidências, propostas e soluções construídas coletivamente por essa rede viva, criativa e comprometida com o futuro do Brasil.” A Coalizão Direitos na Rede, fórum com mais de 50 organizações defensoras de direitos digitais, criticou o ataque estadunidense em artigo, apontando que a medida visa “evitar a aplicação ou atualização de regras sobre Plataformas digitais que possam – eventualmente – gerar mais custos de implementação de regulações sobre o ambiente digital.” O Diracom - Direito à Comunicação e Democracia, entre outras organizações também alertou para a necessidade de uma reação concreta que avance com a regulação de plataformas digitais e de sistemas de Inteligência Artificial e políticas para fortalecer a soberania digital.
Diante desse cenário é fundamental compreender que a luta pela garantia dos direitos digitais assumiu um importante destaque para uma mobilização em defesa da soberania do país e da autodeterminação do povo. Isto significa reconhecer que as bases de formação da economia política internacional dos dados estão integradas, também, às condições do país em assegurar sua soberania alimentar, sanitária, ecológica e militar. Porque no cerne da carta das autoridades estadunidenses ao Brasil estão transcritos e traduzidos, para atendimento no curto e médio prazo, os interesses econômicos imediatos das grandes empresas de plataformas digitais.
Extrema-direita e regulação das grandes empresas de plataformas e tecnologias
A medida de Trump foi articulada com integrantes da extrema-direita brasileira, especialmente o ex-presidente Jair Bolsonaro e sua família. Seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, está nos EUA e gravou depoimentos públicos defendendo a pressão operada por Washington, segundo a qual o tarifaço está condicionado à anistia de Jair Bolsonaro no processo em curso no STF. Aliados saíram em defesa de Bolsonaro, com manifestação de parlamentares brasileiros realizando um ato na Câmara dos Deputados no dia 22 de julho, erguendo a bandeira de Donald Trump.
O tema carrega implicações, algumas sobre aliados de Bolsonaro e outras sobre os interesses das plataformas digitais. A aliados, o ataque de Washington afetou a disputa dentro do campo da extrema-direita em torno do nome que, para as eleições presidenciais de 2026, defenderá, caso eleito, a anistia aos golpistas de 8 de janeiro de 2023 - como o caso do próprio Jair Bolsonaro e comandantes das Forças Armadas. Por ora, dentre os nomes estão um dos filhos, Eduardo Bolsonaro, que tem defendido que o Brasil capitule frente às ameaças tarifárias; e quatro governadores dos estados de Goiás, Paraná, São Paulo e Minas Gerais - que vestiram o boné do movimento “Make America Great Again” - que por ora titubeiam e ensaiam a defesa de tentativas de negociações comerciais com os Estados Unidos. A diferença entre eles está no grau de afinidade com os interesses econômicos das plataformas, mas independentemente de quem seja o nome, o compromisso em resguardar estes interesses está assegurado.
No campo à esquerda, o governo do Brasil reagiu e saiu, por ora fortalecido. A interferência dos Estados Unidos, como já foi dito, ocorreu em meio a um processo de mobilização social que se iniciava, e acabou fortalecendo-o, para defender a agenda do governo em cobrar impostos sobre os ricos e isentar de tributos amplos setores da classe trabalhadora.
A extrema-direita no Brasil tem atuado, no período mais recente, como defensores das grandes plataformas digitais, enfrentando o avanço de regulações no país que implicam em mudanças no regime de responsabilidade das empresas sobre suas práticas e transparência na moderação de contas e conteúdos. Em maio de 2023, as empresas de plataformas digitais, em aliança com parlamentares da extrema-direita, lograram a produção de um ambiente de pressão sobre a Câmara dos Deputados, postergando a votação do projeto de lei nº 2630 de 2020 (PL 2630), através de pesadas campanhas publicitárias e reunião com bancadas de parlamentares, alegando que o projeto criaria um “Ministério da Verdade” orwelliano. Em realidade, o projeto alteraria o regime de responsabilidade das plataformas sobre a moderação de contas e conteúdos pagos e instituiria obrigações e mecanismos de transparência sobre essa moderação, como a produção de relatórios com avaliações sobre os riscos operados pelos sistemas de moderação e produção de avaliações independentes por centros de pesquisa.
Em abril de 2024, a aliança entre as empresas e a extrema-direita voltou à carga, com Elon Musk atacando as ordens do Supremo Tribunal Federal referentes às investigações sobre a tentativa de golpe de Estado conduzida por apoiadores de Jair Bolsonaro em 8 de janeiro de 2023 e a decisão da Corte de suspender a atuação da empresa no Brasil. Esta medida extrema ocorreu pelo fato de Musk ter se negado a respeitar as determinações da Suprema Corte, e não por ataque à liberdade de expressão. Com os ataques públicos de Musk ao STF, parlamentares de extrema-direita demandaram um gesto do então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira. Buscando construir um apoio a eleição de seu sucessor, este submeteu o Projeto de Lei 2630 a um grupo de trabalho, retirando, em termos práticos, a possibilidade de tentar colocá-lo em votação.
O debate sobre a necessidade de recuperar a agenda da regulação das plataformas digitais retornou com fôlego quando, em janeiro de 2025, a Meta comunicou o abandono de uma série de políticas de moderação e declarou atuaria junto ao governo dos Estados Unidos para impedir o avanço de regulações sobre si na América Latina e na Europa. Em reação, setores da sociedade civil brasileira iniciaram um processo de mobilização em torno da defesa da regulação das plataformas digitais e o governo brasileiro indicou a criação de um grupo para trabalhar na redação de um novo projeto de lei.
Em meio a este contexto, sem que o governo tenha apresentado qualquer projeto, é que o Supremo Tribunal Federal retomou o julgamento de ações estabelecendo uma nova interpretação sobre a inconstitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, outro tema criticado por Trump e seu governo. O julgamento precisa ser compreendido como um movimento do Poder Judiciário frente à inação do Poder Legislativo em tratar do tema e, por conta disso, as características das mudanças que a decisão do Supremo Tribunal Federal implicará são limitadas, especialmente no que tange a criação de uma estrutura de governança pública e social sobre as novas responsabilidades e obrigações de transparência das plataformas digitais.
Diante deste cenário e do anúncio de Trump, ainda não houve, contudo, respostas concretas de decisões bloqueando ou mudando a tramitação de propostas sobre plataformas digitais ou empresas de tecnologia no Congresso Nacional. Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 2.338, que regula o desenvolvimento e implementação de sistemas de Inteligência Artificial no Brasil. Este já tem sido objeto de intensa resistência de empresas de tecnologia e da extrema-direita. No tema de plataformas digitais, o governo tem anunciado que trabalha em duas propostas de regulação (uma sobre serviços digitais e outra sobre mercados digitais) e outra de taxação desses conglomerados, mas cujos textos ainda não foram divulgados, nem enviados ao Congresso Nacional. Mas uma importante reação ao anúncio de Trump foi a defesa do presidente Luis Inácio Lula da Silva, no dia 17 de julho, de uma proposta de regulação e taxação sobre os serviços das plataformas digitais.
Regulação democrática e soberania digital
A sociedade civil brasileira tem atuado em defesa das políticas e regulações democráticas e soberanas para serviços e infraestruturas digitais. Mais de 100 organizações e coletivos criaram a Campanha Internet Legal no início deste ano para impulsionar regulações e políticas que garantam os direitos humanos e digitais de indivíduos e coletividades e iniciativas soberanas. A Coalizão Direitos na Rede tem atuado com campanhas pela regulação de plataformas e de sistemas de Inteligência Artificial no Brasil, além de outros temas. No caso das plataformas digitais, a Coalizão alertou em nota que é fundamental a aprovação de uma legislação para essas empresas, uma vez que, como já foi dito, o julgamento do STF sobre o Marco Civil da Internet estabeleceu regras parciais e limitadas, muito insuficientes para assegurar a proteção dos cidadãos contra abusos por parte de plataformas e serviços digitais. Com a ofensiva dos EUA sobre o Brasil, essas iniciativas têm reforçado a agenda por essas regulações e políticas democráticas.
Um outroprocesso de mobilização de setores da sociedade brasileira tem levado a uma construção de agenda política que considere a necessidade de pensar políticas públicas que permitam o país avançar no desenvolvimento tecnológico próprio. A criação de condições políticas e econômicas para este desenvolvimento passa pelo fortalecimento de iniciativas públicas e comunitárias na criação de infraestrutura para armazenamento e processamento de dados; bem como da criação de sistemas tecnológicos que possibilitem a gestão desta infraestrutura. Embora esteja presente neste debate a referência do modelo de negócios das grandes plataformas digitais como o parâmetro de desenvolvimento tecnológico, está, também, a defesa de criação de um outro modelo, que não reproduza a lógica das gigantes de tecnologia, com suas implicações sociais e ecológicas.
O esforço de construção e elaboração de uma síntese política e econômica, que permita a defesa de um projeto de desenvolvimento tecnológico possibilitando ao país superar a condição de dependência com relação aos Estados Unidos, a China e suas respectivas empresas de plataformas digitais, passa por um esforço multilateral. Assim como os Estados Unidos atualmente operam uma estratégia para manter sua posição de potência hegemônica no mundo, mesmo que sob novas bases, o Brasil também precisa movimentar-se no cenário internacional com intuito de se reposicionar no mundo.
A pressão exercida pelo governo dos Estados Unidos sobre o Brasil buscando minar a atuação da Justiça e propostas de regulação no campo de tecnologias digitais e plataformas é uma iniciativa bastante preocupante. Embora não seja única, possui uma intensidade maior e um cria precedente de tentativas de interferência na soberania digital dos países e blocos e no enfraquecimento das necessárias respostas por governos, instituições da Justiça e reguladores contra os abusos facilitaods e praticados por plataformas digitais e big techs, incluindo a amplificação de desinformação, discursos de ódio e ameaças à democracia patrocinadas por forças de extrema-direita. O Brasil é um exemplo importante de resistência a essas iniciativas, mas ainda precisa caminhar para aprovar legislações mais protetivas no campo das plataformas e da IA. Para além de sua agenda interna, o Brasil deve continuar estimulando propostas de cooperação internacional no âmbito dos BRICS e com outras nações que fortaleçam a soberania digital e tecnologias para a promoção dos direitos das populações, especialmente de grupos marginalizados.