COP30: IA como Aliada da Justiça Climática ou Nova Face do Modelo Extrativista?

Introdução

Em novembro, o Brasil sediará a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP30), recolocando o Brasil no centro do debate global sobre justiça climática e a transição energética. Ainda em 1992, o país recebeu  a Cúpula da Terra (ECO-92 ou RIO-92) no Rio de Janeiro, onde chefes de Estado assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), responsável por definir o próprio mandato das Conferências das Partes.

Google Data Center
Teaser Image Caption
Google Data Center - Lowa, EUA.

Durante a RIO-92, pela primeira vez em uma grande Cúpula das Nações Unidas, houve uma rede de computadores conectados à internet, permitindo a repercussão em tempo real das discussões ambientais.1 A viabilização da conexão de internet para o evento contou com o protagonismo da sociedade civil, especialmente a latino-americana, que advoga por tecnologias digitais a serviços dos direitos humanos. O evento também serviu para impulsionar a adoção da internet no Brasil.

Três décadas depois, esse link entre as tecnologias digitais e discussões ambientais, especialmente envolvendo inteligência artificial (IA), é ainda mais manifesto. Primeiro pelas crescentes evidências científicas do alarmante impacto da IA para o meio ambiente.2 Segundo pela centralidade do tema na geopolítica mundial, demonstrado pela corrida em torno do desenvolvimento tecnológico, repercutindo em conflitos como a disputa pela mineração ilegal no Congo,3 em terras indígenas brasileiras,4 chegando ao ponto da negociação pelo fim da guerra entre Rússia e Ucrânia envolver a mineração de terras raras no território ucranianio.5

Com o ano de 2024 superando o limite de aquecimento global de 1,5°C,6 discussões não recentes, mas atuais no contexto da IA, têm evidenciado o duplo papel dessas tecnologias para a mudança climática. Por exemplo, a IA pode ser aliada no monitoramento da preservação ambiental, mas também eleva o consumo energético e a extração de recursos naturais. Estudos como o da Agência Internacional de Energia (IEA) evidenciam a tendência de crescente demanda no setor,  prevendo que, após consumir uma estimativa global de 460 terawatt-horas (TWh) em 2022, o consumo total de eletricidade dos data centers poderá ultrapassar 1.000 TWh em 2026, o que corresponde aproximadamente ao consumo de eletricidade do Japão.7 Da mesma forma, projeções da Universidade da Califórnia, Riverside, indicam que o consumo de água associado à IA pode alcançar entre 4,2 e 6,6 bilhões de metros cúbicos até 2027, o que corresponderia ao consumo anual de água de 4 a 6 países como a Dinamarca.8

Para seu desenvolvimento e uso sustentáveis, é necessário que leis e políticas tratem de questões como eficiência energética, autonomia tecnológica, mitigação de impactos ambientais, governança inclusiva e prestação de contas. Na presidência da COP30, o Brasil poderá exercer papel fundamental para direcionar as discussões de forma a evidenciar os impactos da IA para o meio ambiente e fortalecer o desenvolvimento de tecnologias sustentáveis e mitigadoras de impactos adversos. O Brasil tem vantagens comparativas únicas, como biodiversidade, diversidade cultural e inovação social, que deveriam ser centrais nessa agenda. A relação dos povos indígenas e comunidades tradicionais com a natureza, práticas sustentáveis de agricultura, geração de energia renovável e a luta por cidades verdes, também são elementos estratégicos que podem diferenciar a atuação brasileira, especialmente na COP30.

Abordagem Brasileira

Formalmente, o Brasil destacou a intersecção entre IA e meio ambiente em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, sigla em inglês) à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC), citando o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (PBIA). Ainda, o Ministério das Relações Exteriores, em parceria com a Fundação Alexandre Gusmão, promoveu, em janeiro, o seminário “Inteligência Artificial e Mudança do Clima”.9

Com essa movimentação, o Brasil chega à COP30 em posição estratégica, acumulando a presidência do G20 em 2024 e do BRICS em 2025, reforçando a oportunidade de influenciar debates globais em um cenário geopolítico incerto. No plano doméstico, o governo brasileiro tem sinalizado sua abordagem sobre IA e meio ambiente, que, no entanto, prioriza oportunidades econômicas, sem aprofundar os impactos socioambientais. Algumas iniciativas se destacam:

●     Plano Brasileiro de Inteligência Artificial (2024-2028): estruturado em cinco eixos, prevê orçamento de R$ 23 bilhões até 2028, sendo R$ 500 milhões destinados ao Programa de Sustentabilidade e Energias Renováveis para IA e R$ 2,3 bilhões para os chamados “data centers verdes”.10 É previsto que tais recursos fomentem projetos de instalação de data centers e infraestruturas de IA sustentáveis, priorizando fontes renováveis e tecnologias de alta eficiência energética. Apesar de buscar reforçar autonomia tecnológica e mencionar sustentabilidade, o Plano ainda carece de estratégias mais robustas para endereçar os impactos ambientais da IA;

●     Regulação de IA (PL 2338/2023): aprovado no Senado em dezembro de 2024, o PL prevê, por meio de investimentos, a ampliação de data centers e fomento à pesquisa e à infraestrutura.11 Apesar de o PL abordar eficiência energética e programas de certificação para mitigar impactos ambientais, sua abordagem somente foca no fomento ao desenvolvimento da tecnologia;

●     Proposta de Estratégia para Implementação de Política Pública para Atração de Data Center do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC): baseada em um estudo de consultoria privada encomendado em 2023, a proposta prioriza inovação e crescimento econômico. O estudo que a fundamenta foca em oportunidades de mercado e recomendações para o setor, chegando a sugerir medidas para fragilizar o licenciamento ambiental.12 Uma das estratégias, por exemplo, seria a dispensa de licenças com base em impactos "conhecidos" e supostamente mínimos. No entanto, essa desburocratização enfraquece mecanismos de controle, limita a participação social e pode abrir precedentes perigosos ao priorizar agilidade regulatória em detrimento da proteção socioambiental. A ausência de processo substanciais de escuta à sociedade levanta preocupações, ainda mais com financiamentos já disponibilizados pelo BNDES,13 reforçando a necessidade de critérios ambientais e sociais mais rigorosos.

Esses exemplos evidenciam a necessidade e a oportunidade de ampliar a discussão sobre IA e sustentabilidade para além das agendas de desenvolvimento economico e autonomia tecnológica. Embora haja esforços, a ausência de debate mais crítico sobre os riscos ambientais e sociais limita o potencial dessas iniciativas. O principal exemplo que do que aqui trazemos é o caso dos data centers, que, embora muitas vezes sejam rotulados como “verdes” ou “sustentáveis”, demandam atenção especial quanto aos seus impactos ambientais e sociais efetivos.

 

Caminhos para iniciativas que integrem desafios socioambientais

Para que o Brasil desenvolva estratégias alinhadas às suas necessidades territoriais e, ao mesmo tempo, contribua com os esforços globais de mitigação das mudanças climáticas, é essencial que suas políticas adotem uma abordagem mais holística e inclusiva, como:

  1. Assegurar a transição energética e a eficiência no uso de recursos naturais: A infraestrutura digital não pode, por exemplo, depender de combustíveis fósseis e deve seguir  critérios rigorosos de consumo e eficiência energética e recursos naturais;
  2. Mapear os impactos socioambientais da IA em diferentes contextos e para além da infraestrutura energética: É preciso identificar impactos em setores diversos, como a agricultura, onde a IA pode alterar uso da terra, a biodiversidade e os modos de vida de comunidades locais, exigindo salvaguardas específicas;
  3. Fortalecer a participação informada e o diálogo na tomada de decisões: A COP30 e outros espaços de discussão não devem se restringir ao multilateralismo. É fundamental garantir acesso à informação e integrar povos e comunidades tradicionais, academia e atores da sociedade civil aos processos de tomada de decisão para garantir soluções alinhadas à realidade local e à proteção de direitos;
  4. Tornar obrigatória a transparência sobre impactos ambientais: É essencial que empresas e instituições sejam obrigadas a divulgar os impactos ambientais da infraestrutura de IA, incluindo data centers e cadeias produtivas associadas. As avaliações de impacto algorítmico devem obrigatórias e endereçar a sustentabilidade e os impactos socioambientais;
  5. Fortalecer parcerias globais: O Brasil deve buscar alianças estratégicas com outros países também desproporcionalmente afetados pelas mudanças climáticas para influenciar decisões internacionais e garantir financiamentos para soluções sustentáveis e socialmente responsáveis, incluindo os debates sobre o Programa de Implementação de Tecnologia (TIP) da COP.

Conclusão

No contexto da crise climática global, a realização da COP30 no Brasil confere ao país não apenas visibilidade internacional, mas também uma responsabilidade concreta diante das disputadas transições digital e energética. É fundamental encarar de forma crítica os impactos socioambientais do avanço tecnológico, especialmente diante da expansão desenfreada de infraestruturas digitais de alto impacto, como os data centers — frequentemente associados ao uso intensivo de energia e recursos naturais, e instalados em territórios marcados por desigualdades.

Não há mais espaço para que, sob o pretexto da "soberania nacional" ou do "desenvolvimento econômico", políticas públicas relacionadas à inteligência artificial e ao meio ambiente avancem sem avancem sem considerar critérios como transparência, participação social, governança inclusiva e prestação de contas. A COP30 deve ser protagonizada como um espaço estratégico para construir uma agenda em que digitalização e transição energética caminhem juntas, orientadas por direitos humanos, justiça climática e responsabilidade coletiva.

Notas de rodapé.