O presidente chinês Xi Jinping está no Brasil - entre os dias 17 e 21 de novembro - para a Cúpula do G20, depois de participar da reunião de líderes econômicos da APEC (Fórum Econômico da Ásia e do Pacífico) no Peru, entre os dias 13 e 17. A presença de Xi nesses dois fóruns consecutivos sediados na América Latina lança luz à importância crescente que o presidente chinês vem atribuindo à região que já conta com 21 países na iniciativa popularmente conhecida como Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, BRI, em inglês).
Ao mesmo tempo em que o líder chinês vem se engajando nos espaços de negociação multilateral como a APEC e o G20 para fomentar a cooperação econômica regional e global, ele vem se valendo desses encontros para avançar a Nova Rota da Seda, pacientemente costurada nos últimos 10 anos por meio de acordos bilaterais firmados com mais de 150 países. Uma das mostras dessa rede de infraestrutura global será exibida por Xi durante sua estadia no Peru quando participará da inauguração do primeiro porto chinês na América do Sul, o megaporto de Chancay, ao norte de Lima. Financiado majoritariamente pela estatal chinesa, COSCO Shipping Ports, o porto promete baratear as exportações de mercadorias da América Latina, incluindo do Brasil, para o mercado asiático ao reduzir consideravelmente os custos logísticos e o tempo de transporte do comércio entre as regiões. Esse é o cartão de visitas que o líder chinês pretende levar para o Brasil durante o G20.
São invisiblizadas, contudo, as contradições ambientais e sociais do projeto bem como a natureza assimétrica do comércio que será facilitado pelo novo porto, caracterizado pela exportação concentrada em produtos primários por parte dos países da América Latina, que vem sendo cada vez mais cobiçados como morada de minerais críticos essenciais para a transição energética, e pela importação de produtos de alto valor agregado vindos da China. Por outro lado, há de se considerar também que a disputa geoeconômica entre Estados Unidos e China tem impactos na América Latina, sobretudo a partir da vitória de Trump nas últimas eleições estadunidenses. Tendo em vista que Trump já antecipou a implementação de uma política comercial ainda mais agressiva em relação à China do que no seu primeiro mandato, com a imposição de tarifas de 60% sobre as importações de produtos chineses, a China precisará contar cada vez mais com seus parceiros latino-americanos.
Diante desse cenário, o Brasil tem optado por se distanciar dessa encruzilhada geopolítica e não ceder a um alinhamento mais rígido seja com os Estados Unidos, seja com a China, mantendo sua autonomia e voz nos assuntos mundiais. O comentário da embaixadora Katherine Tai, representante de Comércio dos Estados Unidos, de que o governo brasileiro deveria pesar os riscos de aderir à Nova Rota da Seda foi lido como irresponsável pela Embaixada da China no Brasil. Enquanto isso, o Brasil vem driblando os dois lados e buscando evitar que os Estados Unidos definam seus interesses e ditem os rumos da sua política externa. Ainda que deficitário em termos de infraestrutura, o Brasil optou por não aderir formalmente à Nova Rota da Seda, não se apegando a rótulos conforme defendeu o assessor para assuntos internacionais da Presidência, Celso Amorim.
Uma das apostas do Brasil vem sendo a mudança do perfil das relações comerciais com a China que hoje está centrada na exportação de commodities agrícolas e minerais, sobretudo, soja, mas também minério de ferro, petróleo e carne, de forma reverter o processo de desindustrialização do país. O Brasil insiste, portanto, na necessidade de a China transferir tecnologia, investir em pesquisa e inovação e no setor industrial. Com isso em mente, o Brasil entende que qualquer acordo de comércio e investimento deve ser customizado, voltado para melhorar o conteúdo das trocas entre Brasil e China. De fato, um dos aspectos salientados pela própria China no seu processo de modernização é a ideia de que tal processo deve respeitar as condições materiais, contextos históricos e sociais particulares de cada Estado contra a ideia de rotas pré-definidas de desenvolvimento.
Desde 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, ultrapassando os Estados Unidos. Todavia, para entender as relações sino-brasileiras é preciso irmos além das relações comerciais bilaterais e mergulharmos no universo político da governança global. No G20, Brasil e China têm objetivos compartilhados que se desenham em outros fóruns multilaterais, como é o caso do BRICS. É importante notar que, com a crescente paralisia da Organização das Nações Unidas (ONU), o sistema de governança global se encontra cada vez mais descentralizado, mas isso não significa que os diferentes agrupamentos operem de forma isolada, já que as discussões no BRICS, por exemplo, transbordam para o G20 e vice-versa.
Os objetivos compartilhados entre China e Brasil podem ser, em parte, depreendidos da leitura da Declaração da Cúpula do BRICS em Kasan, na Rússia, em outubro desse ano. Ambos países defendem uma ordem multipolar, sem a dominância de uma única potência, um sistema de governança global mais equitativo, a reforma da arquitetura financeira internacional que a torne mais representativa dos países do Sul Global e defendem que as disputas geopolíticas em curso sejam resolvidas no âmbito multilateral da ONU. O documento sinaliza o reconhecimento do G20 como principal fórum global para a cooperação econômica e financeira multilateral e chama a atenção para a janela de oportunidade que se abre pelo fato da última troika do G20 ser constituída por países do Sul Global e, mais especificamente, do BRICS: o Brasil (atualmente na presidência), a Índia (2023) e África do Sul (2025).
Na presidência do G20, o Brasil tem conferido centralidade ao enfrentamento das desigualdades globais, uma pauta cara para a China. Tal desigualdade, estruturante da ordem internacional liberal, se expressa nas instituições internacionais estabelecidas no pós-Segunda Guerra, como é caso do Conselho de Segurança da ONU e das Instituições de Bretton Woods, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM). Ambos os países têm insistido na reforma da governança global para conferir mais voz e representatividade aos países do “Sul Global”.
A desigualdade, que estrutura as relações internacionais, só poderá ser debelada, na visão do governo brasileiro, a partir de políticas redistributivas que permitam que os fluxos de capitais percorram o caminho inverso ao da colonização. Segundo Lula, o que temos assistido hoje é um “Plano Marshall às avessas”, uma dinâmica que aprofunda as desigualdades uma vez que os países pobres continuam financiando os mais ricos. É nesse espírito que o Brasil vem propondo o enfrentamento à desigualdade tributária global a partir, por exemplo, da taxação dos super-ricos, que poderá vir a financiar políticas públicas voltadas para luta contra a fome, a pobreza e a crise climática, entre outras.
A previsão é que esta taxação possibilitaria criar um fundo de 200 a 250 bilhões de dólares ao ano, cujo montante, em parte, poderia ser direcionado para a iniciativa inovadora do governo brasileiro de criação de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que já mobiliza uma rede de 82 países, incluindo a Alemanha, e organizações para trocar conhecimento e experiências bem-sucedidas no combate à fome. O Brasil, com seu histórico de redução da fome através de políticas como o Fome Zero e o Bolsa Família, tem uma vasta experiência a compartilhar. A China já manifestou publicamente adesão à Aliança, podendo fornecer lições valiosas no combate à fome, já que praticamente erradicou a insegurança alimentar nas últimas décadas, investindo na infraestrutura, pesquisa e tecnologia rural. Ambos os países propõem um caminho centrado na solidariedade, no intercâmbio de conhecimentos e na cooperação financeira para erradicar a fome a pobreza no mundo.
A eleição de Trump, contudo, promete intensificar ainda mais a política de desacoplamento entre as economias dos Estados Unidos e da China por meio da escalada de tarifas sobre as importações de ambos os lados. Além disso, o negacionismo climático, a previsão de retirada dos Estados Unidos do Acordo de Paris e a tendência a reduzir ao invés de aumentar a taxação dos super-ricos não só vai na contramão das prioridades do Brasil e, em algum grau, da China no G20 e no BRICS, como tem o potencial de erguer novos muros, ódios e desconexões pelo mundo afora. Talvez essa estratégia de confronto do novo governo dos EUA possa se tornar um teste de estresse para a resistência dos novos instrumentos de governança global, ou seja, o G20 e o BRICS. Talvez essa estratégia de confronto do novo governo dos EUA possa se tornar um teste de estresse para a resistência dos novos instrumentos de governança global, ou seja, o G20 e o BRICS.