Com o lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”, o Brasil assumiu a presidência do G20 em 2024, estabelecendo três eixos prioritários: o combate à fome, à pobreza e à desigualdade; as três dimensões do desenvolvimento sustentável (econômica, social e ambiental); e a reforma da governança internacional.
O contexto é desafiador: o G20 chega ao Brasil em um momento de crise de hegemonia no cenário internacional. O mundo enfrenta guerras, disputas econômicas, e uma emergência climática e social. Além disso, há uma profunda crise de valores, marcada pela ascensão de forças de extrema direita, que questionam os princípios estabelecidos no período pós-Segunda Guerra Mundial, como os direitos humanos, o multilateralismo e a cooperação internacional. Atualmente, tanto os EUA quanto a China demonstram dificuldades para mediar conflitos e conduzir o mundo rumo à paz. Assim, o Brasil assume a presidência do grupo que representa as maiores economias do mundo em um período caracterizado como de “transição hegemônica”, cujas tensões e incertezas se refletem nas dinâmicas internas do grupo.
Para identificar temas que possam gerar consenso em meio ao cenário desafiador atual, a Trilha Financeira do G20 no Brasil apresentou uma proposta ousada que tem ganhado crescente apoio: a criação de uma norma internacional que assegure a tributação de indivíduos com patrimônio líquido ultra alto ("super-ricos"). De acordo com um relatório encomendado pelo governo brasileiro e apresentado nas negociações com os membros do G20, indivíduos com patrimônio superior a US$ 1 bilhão (incluindo ativos, imóveis, ações, participação em empresas, entre outros) seriam obrigados a pagar um imposto anual mínimo de 2% sobre o valor total de sua riqueza. A escolha por tributar o patrimônio, e não a renda, deve-se à maior dificuldade de manipulação dos bens em comparação aos rendimentos. A norma seria implementada de forma flexível pelos países participantes, que adaptariam a medida a suas legislações nacionais.
Estima-se que essa tributação mínima de 2% sobre bilionários poderia gerar uma arrecadação anual entre US$ 200 e 250 bilhões, oriunda de cerca de 3.000 indivíduos, contribuindo para o financiamento de bens e serviços públicos e para investimentos no enfrentamento da crise climática (Ibidem).
Essa proposta soma-se ao acordo já estabelecido pela OCDE, promovido no âmbito do G20, sobre a erosão da base tributária e a transferência de lucros (Base Erosion and Profit Shifting - BEPS, na sigla em inglês). O objetivo do acordo é garantir que as multinacionais sejam tributadas com uma alíquota mínima de 15% sobre seus lucros globais. Em 2016, a OCDE e o G20 criaram um "Inclusive Framework" para o BEPS, permitindo que países interessados em cooperar pudessem aderir ao acordo, que inicialmente reuniu 100 nações. Em 2021, as regras foram simplificadas para facilitar sua implementação. De acordo com a OCDE, mais de 140 países já se comprometeram a adotar 15 medidas destinadas a combater a evasão fiscal. Essas medidas visam equipar os governos com ferramentas para garantir que os lucros sejam tributados no local onde a atividade econômica ocorre, além de enfrentar os desafios impostos pela digitalização da economia e reduzir disputas sobre a aplicação das regras fiscais internacionais.
Embora o acordo OCDE/G20 seja amplamente considerado um avanço significativo na tentativa de corrigir distorções e combater a evasão fiscal, suas regras são complexas e a aplicação enfrenta grandes desafios. Críticos argumentam que o acordo não tem sido suficientemente eficaz, especialmente porque as multinacionais acabam não pagando o imposto mínimo nos países em desenvolvimento. Diante disso, a proposta de uma tributação mínima sobre indivíduos de alto patrimônio tem ganhado crescente apoio de organizações não governamentais, redes de ativistas, personalidades influentes e países como França, África do Sul, Alemanha e Espanha.
As posições dos atores sociais e o (não) avanço na Trilha de Finanças
A proposta tem gerado intensos debates e posicionamentos. Podemos destacar aqui a perspectiva de organizações da sociedade civil, que apresentaram suas recomendações à Trilha Financeira em maio de 2024, e de think tanks e centros de pesquisa envolvidos no T20 (Think20), que submeteram suas recomendações ao G20 em julho de 2024.
O primeiro ponto central do debate diz respeito ao espaço internacional mais apropriado para discutir a cooperação tributária. Há uma convergência entre organizações não governamentais e think tanks de que o G20 deve apoiar a criação e implementação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional (UNFCITC). Para esses atores, a ONU, e não a OCDE ou o G20, representa o fórum mais justo, inclusivo e democrático, capaz de dar voz aos países mais pobres.
Assim, há um consenso entre organizações não governamentais e think tanks de que é no âmbito da UNFCITC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Cooperação Tributária Internacional) que se deve negociar e implementar a criação de um imposto global mínimo sobre indivíduos de alto patrimônio líquido, assegurando que os recursos arrecadados sejam direcionados à promoção dos direitos humanos, especialmente nos países empobrecidos do Sul Global.
Para o T20, a UNFCITC precisa enfrentar os desafios tributários globais, com ênfase na tributação de transações internacionais, visando tornar as regras fiscais mais justas e simples. Os membros do G20 devem intensificar os esforços de troca de informações e melhorar a transparência fiscal, especialmente por meio de relatórios públicos detalhados país a país. É fundamental avançar na implementação de mecanismos de compartilhamento de informações sobre diferentes classes de ativos e na criação de um Registro Global de Ativos público, sob a supervisão da UNFCITC.
Além disso, os recursos arrecadados por esses mecanismos, assim como aqueles provenientes do redirecionamento de subsídios aos combustíveis fósseis, devem ser utilizados para fortalecer políticas redistributivas, aprimorar sistemas universais de proteção social, gerar empregos decentes e apoiar iniciativas de adaptação e mitigação das mudanças climáticas, com foco especial nas economias em desenvolvimento.
As organizações e redes da sociedade civil, por sua vez, defendem que as negociações tributárias devem incorporar os direitos humanos, bem como obrigações socioambientais e climáticas, como princípios norteadores das decisões. Além disso, enfatizam a necessidade de descolonizar os padrões tributários, adotando uma abordagem interseccional de gênero e raça/etnia nas políticas fiscais para combater as desigualdades.
Infelizmente, essas recomendações ainda estão distantes das negociações da Trilha Financeira do G20. Contudo, alguns avanços foram observados na reunião técnica de julho, que resultou em um documento preliminar ao que será apresentado na declaração final dos chefes de Estado em novembro deste ano. No documento de resoluções dos ministros das finanças, reconhece-se que a tributação progressiva é uma das principais ferramentas para reduzir as desigualdades, fortalecer a sustentabilidade fiscal, facilitar a consolidação orçamentária e promover um crescimento inclusivo, além de contribuir para a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
Ao mesmo tempo, foi reafirmado que a tributação constitui um direito inerente à soberania dos Estados. A cooperação tributária internacional, inclusiva e orientada para o consenso, deve apenas ter como objetivo fortalecer a capacidade das jurisdições de exercerem seus direitos fiscais de maneira mais eficaz.
Na visão da Trilha de Finanças, o Inclusive Framework da OCDE/G20 sobre BEPS demonstrou o potencial da cooperação tributária internacional, com os países do G20 reafirmando seu compromisso de concluir e implementar rapidamente a Solução de Dois Pilares. Essa solução busca estabilizar o cenário tributário global, reduzir a transferência de lucros e restringir a concorrência fiscal prejudicial, limitando a tendência de uma "corrida para o fundo do poço" (race to the bottom) nas alíquotas de impostos corporativos. O documento também destaca que a implementação da troca automática de informações (Automatic Exchange of Financial Information in Tax Matters - AEOI, na sigla em inglês) sobre contas financeiras representa um marco histórico na promoção da transparência fiscal, dificultando o sigilo financeiro, combatendo a evasão fiscal offshore e fortalecendo a fiscalização tributária.
No âmbito da UNFCITC as negociações representam uma oportunidade adicional para fomentar uma cooperação tributária internacional inclusiva e eficaz. No entanto, para os negociadores, seria fundamental evitar a “duplicação desnecessária de esforços”, aproveitando as conquistas e processos já estabelecidos, bem como o trabalho em andamento de outras organizações internacionais, como a OCDE. Espera-se que os Estados-Membros da ONU se engajem nas discussões com espírito de cooperação, considerando as aspirações tanto dos países em desenvolvimento quanto dos países desenvolvidos, a fim de fortalecer a cooperação tributária global.
Em outras palavras, enquanto o T20 e as organizações da sociedade civil defendem a priorização dos países mais pobres e em desenvolvimento, historicamente afetados por políticas fiscais injustas, os negociadores da Trilha de Finanças reiteram a necessidade de um consenso que, na prática, tende a refletir as posições dos países ricos. É relevante recordar a observação feita por um especialista do T20 durante um debate sobre tributação internacional, em resposta a um representante da OCDE: “o consenso é, neste caso, não democrático, pois não representa os interesses da maioria da população e dos países do mundo”.
O documento da Trilha Financeira reconhece, ainda, que a mobilidade internacional de indivíduos com alto patrimônio líquido impõe desafios significativos para garantir níveis adequados de tributação, o que compromete a progressividade do sistema tributário. Nesse contexto, o texto afirma que, em respeito à soberania tributária, os países do G20 se empenharão em um engajamento cooperativo para assegurar que as pessoas físicas com patrimônio líquido ultra-alto sejam efetivamente tributadas. Essa colaboração poderá envolver a troca de melhores práticas, a promoção de diálogos sobre princípios tributários e a criação de mecanismos destinados a combater a evasão fiscal.
O que está adiante?
O consenso alcançado até o momento na Trilha Financeira do G20 permanece limitado e insuficiente. No entanto, as formulações apresentadas no documento revelam que os ministros de Finanças e os presidentes dos bancos centrais do G20 reconhecem duas demandas principais provenientes dos países de baixa renda, bem como do vasto espectro da sociedade civil e dos think tanks: a implementação da Convenção-Quadro da ONU para Cooperação Tributária Internacional e a proposta de tributação de indivíduos com patrimônio ultra-alto.
Paralelamente ao G20, um avanço significativo ocorreu nas Nações Unidas: em setembro de 2024, o Comitê Ad Hoc aprovou os Termos de Referência (ToR) da UNFCITC, que agora serão submetidos à Assembleia Geral para aprovação até o final do ano. De acordo com Grondona et al. (2024), a sessão do comitê intergovernamental de negociação está prevista para ocorrer até fevereiro de 2025. Nessa ocasião, o comitê deverá apresentar o texto final da UNFCITC e seus dois primeiros protocolos à Assembleia Geral para consideração na 82ª sessão.
Entre os dois protocolos, o primeiro tema já foi definido e diz respeito aos serviços transfronteiriços. O segundo tema, no entanto, ainda precisa ser decidido a partir de uma lista que inclui a proposta de "abordar a evasão e a elisão fiscal por indivíduos de alto patrimônio líquido e garantir sua tributação eficaz nos Estados-Membros relevantes". Portanto, é essencial intensificar as pressões da sociedade civil, think tanks e outros stakeholders relevantes para assegurar que os países apoiem essa escolha como o segundo protocolo.
Em relação ao G20, a cúpula de novembro no Rio de Janeiro provavelmente não avançará significativamente além dos resultados obtidos em julho. A proposta de tributação dos super-ricos ainda é recente e foi oficialmente apresentada ao grupo apenas agora. É necessário que essa proposta seja amadurecida e negociada, especialmente para obter a adesão dos principais líderes mundiais, como os Estados Unidos e a China. Assim, não devemos esperar decisões concretas nesse sentido durante a cúpula do Rio. No entanto, a ideia foi introduzida, os debates estão em andamento, e o Brasil se destaca como o país que levou essa proposta ao G20.
Agora, caberá à África do Sul, que assumirá a presidência do G20 em 2025, dar continuidade às negociações e se empenhar para aumentar a adesão à proposta. Para um país africano que enfrenta uma das maiores taxas de desigualdade do mundo, essa agenda é fundamental e deve ser integrada aos esforços para aliviar a dívida externa. Nesse contexto, as negociações no âmbito da ONU e do G20 ocorrem de maneira paralela, mas articulada, ampliando os espaços para pressão e negociação em prol da aprovação de uma nova norma internacional coordenada que assegure a tributação de indivíduos com alto patrimônio líquido. A mobilização social, envolvendo amplos segmentos da sociedade, será crucial para fortalecer esse processo.
Referências
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