Grupo de engajamento da sociedade civil no G20 sugere a criação de indicador mais justo para substituir o PIB

Uma das recomendações do C20 (grupo de engajamento da sociedade civil no G20) aos chefes de Estado e Governo é que um novo indicador global para medir crescimento econômico seja criado. Henrique Frota, presidente do C20 e da Associação Brasileira de ONGs (Abong) enfatiza a necessidade de uma abordagem que reconheça as profundas desigualdades, especialmente em países como o Brasil, onde o crescimento econômico frequentemente oculta problemas como a extrema pobreza e a devastação ambiental. 

Inception Meeting do Civil 20 Brasil reúne sociedade civil global em Recife – C20 no Brasil

Fundação Heinrich Böll: A dívida externa dos países pobres deve ser aliviada? 

Henrique Frota: Dentro das nossas proposições para a economia, temos falado muito do papel da dívida dos países, no sufocamento da sua capacidade de investimento para conseguir avançar em políticas mais universais, olhando para a população mais necessitada nos seus territórios. Existe uma proposta chamada de substituição da dívida por investimentos diretos em saúde ou em clima. Isso é uma questão que não é pacífica, nem mesmo na sociedade civil, mas não é porque a sociedade civil discorde de fazer compensações de dívida externa com investimentos nessas áreas. É que os mecanismos atuais de compensação são muito desequilibrados em termos de poder. Os países do Norte Global, por exemplo, que são os maiores credores, têm muito mais poder de negociação sobre a questão da dívida do que os países do Sul Global. Enquanto houver desbalanço de poder, a questão da substituição da dívida por esses investimentos nunca vai ser uma solução adequada, porque, no fundo, estamos falando de desigualdade, na capacidade de decisão entre países ricos, que são credores, e países mais pobres, que são os países devedores. Mas é consenso entre a sociedade civil que é preciso diminuir a ‘sobrecarga’ ou do sufocamento financeiro que a dívida externa causa. É preciso repensar essa lógica de dívida externa, que é extrativista e concentradora de poder. A sociedade civil, no C20, tem acordo e consenso em relação a isso. 

Outro tema que também temos acordo e consenso é em relação à taxação dos super-ricos. É necessário endereçar a questão dos bilionários no mundo, que, na verdade, é um grupo muito restrito, bem menos de 1% da população. Tem se falado em 3 mil bilionários no mundo, que, se tivesse uma taxação de 2% internacionalmente, isso poderia ser revertido para investimentos em bens comuns, proteção da natureza, investimentos climáticos, investimento em saúde pública, por exemplo. Isso também é um tema estabelecido, associado ao fortalecimento do próprio acordo que está sendo construído dentro da ONU sobre a tributação internacional. O G20 pode chegar à sensibilidade, a consensos, mas nem tudo o G20 opera. Porque, na verdade, o G20 não tem um secretariado, ele não é um grupo operativo. Então é preciso também valorizar o que já acontece em outras arenas, especialmente do multilateralismo. 

Fundação Heinrich Böll: Medir a riqueza econômica de um país pelo Produto Interno Bruto (PIB) está ultrapassado? 

Henrique Frota: Nós temos que discutir uma substituição da lógica da economia global medida a partir do PIB. O exemplo do Brasil é nítido em relação a isso. Sempre no noticiário sobre economia ouvimos no crescimento da economia visto por meio do PIB, quanto cada setor da economia, agronegócio, indústria, contribui para o PIB. E o que o C20 tem dito é que o PIB é uma métrica muito ruim, pois não revela a desigualdade. É, na verdade, um balanço global da economia daquele país, mas ele não diz se determinado setor que está contribuindo para o PIB, está desmatando, tendo uma prática extrativista, ou com violações do ponto de vista do direito trabalhista que não são adequadas. O PIB só mostra crescimento econômico. 

Mas ele [o PIB] não mostra o que existe por trás desse crescimento econômico. E muitas vezes por trás do crescimento econômico o que vem é maior desigualdade, maior fome, maior pobreza, maior devastação da natureza, indústrias que não estão comprometidas com a agenda climática, por exemplo. É, portanto, uma métrica muito antiga. Mas, que ainda tem sido o principal parâmetro, por exemplo, para definir acordos de cooperação internacional entre diversos países. 

Países de renda média como o Brasil, porque conseguiram elevar o seu PIB geral e o per capita, acabam entrando numa faixa de desinvestimento da cooperação internacional. Pois, obviamente há países mais pobres do que nós, então a cooperação internacional se dirige para ali. Mas o que o PIB do Brasil não revela é o imenso fosso de desigualdade. Portanto, embora o nosso PIB cresça, a desigualdade também está crescendo. Então a cooperação internacional não deveria nos abandonar, e sim continuar investindo fortemente nas políticas sociais aqui no Brasil. Então quando se usa uma métrica como o PIB apenas como uma régua única, ela traz injustiça. 

Então o grupo da sociedade civil tem sugerido a criação de um novo indicador global que considere questões sociais, de desigualdade econômica, de gênero, para substituir o PIB ou o PIB per capita na constituição de uma nova arquitetura que defina as prioridades de investimento global entre os diversos países. 

Fundação Heinrich Böll: Participação social no G20 de 2024?

Henrique Frota: A abertura para a participação social nas diversas trilhas do G20, o chamado G20 social, é muito o tom do governo do país que preside. Se nós estivéssemos recebendo o G20 no Brasil há dois ou três anos atrás, isso não estaria acontecendo. Então, da mesma forma como no Brasil foi uma circunstância favorável a nós, pode acontecer que nos anos seguintes de presidência do G20, e já temos a África do Sul no ano que vem e depois Estados Unidos, a conjuntura nacional do país que preside pode ser mais ou menos favorável. Então, o que está acontecendo ao longo do ano de 2024 não é uma garantia de que o G20 vai incorporar como um processo oficial de participação, nem mesmo a cúpula social, nem mesmo essa abertura dos ministérios para diálogo com a sociedade civil. 

Mas o Brasil tem um papel protagonista nisso, enquanto presidente e membro, que é muito considerado dentro do grupo. O Brasil independente da presidência do G20 ou não, tem sempre tido esse tipo de prática, pelo menos nos governos Lula 1, Lula 2, Dilma e agora Lula 3. Então o Brasil pode influenciar a África do Sul, próxima presidência do G20, para que se consolide um processo de participação. Porque se ela não considera esse processo, é um grande balde de água fria. Certamente não será igual, mas pelo menos do ponto de vista do princípio, das práticas, que exista a possibilidade da sociedade civil participar. Se você tem mais um ano de um G20 social ou abertura participativa, você vai consolidando uma prática dentro do grupo. 

Do nosso lado da sociedade civil, nós estamos sentindo o sabor que é estar nesses espaços, especialmente que eram muito fechados para nós, trilha de finanças especialmente. Então eu acho que o Brasil eleva o patamar de expectativa, inclusive da sociedade civil, para que nos anos seguintes isso continue. 

Fundação Heinrich Böll: Em termos de estrutura, o que o C20 no Brasil deixa de legado para os próximos?

Henrique Frota: O C20 tem uma construção de mais de 10 anos. Então é importante também colocar que ele não zera quando começa uma nova rodada anual. Temos trabalhado muito com esse foco na continuidade. Isso é muito difícil porque nenhum grupo de engajamento tem um secretariado permanente. Então nós recebemos da Índia, que antes recebeu da Indonésia, e assim por  diante as propostas que foram formuladas nos anos anteriores. A iniciativa do C20 no Brasil é consolidar e compilar algumas proposições que já tinham sido feitas há seis ou sete anos. Então em vez de ter o documento anual, ter uma compilação sobre temas que são trabalhados recorrentemente ao longo dos anos. Isso é uma outra maneira de ter uma perspectiva diferente sobre as proposições e dar melhor senso de continuidade. Por exemplo, o financiamento climático é um tema que vem aparecendo todos os anos no C20. Produzimos então um paper sobre o tema que já tem sido acumulado para que nós cheguemos esse ano no Brasil partindo de um patamar maior de acúmulo, e não zerando todo o debate e tendo que fazer tudo de novo. 

Esperamos entregar para a África do Sul já com um passo adiante e foi um desafio estrutural e logístico, pois isso nunca tinha sido feito antes. Os colegas da África do Sul vão conseguir manejar de maneira mais fácil. Para a gente foi um desafio muito grande coordenar o C20 aqui no Brasil, porque muitas informações se perderam ao longo do tempo. Não existia um site fixo do C20, um corpo que mantenha uma memória do C20. Nós temos um comitê internacional com muitos Sherpas e presidentes de C20 de anos anteriores, e foi esse corpo internacional que nos ajudou a fazer esse resgate. 

Nós temos uma leitura de que os países do G20, nos últimos anos, tentaram sempre reformar o sistema financeiro global para prevenir riscos para a iniciativa privada e para o sistema bancário, e nunca conseguiram solucionar os problemas fundamentais que o próprio sistema financeiro cria para a sociedade. Então, quando a gente fala de fome, é o sistema financeiro que cria as injustiças que geram a fome. Quando a gente fala de racismo econômico e a questão do mundo do trabalho para as mulheres, essa economia global está no coração da causa do problema. Então, simplesmente fazer reformas para diminuir risco de investidor, que são muitos dos temas que o G20 trata, são temas que apenas dizem respeito a interesses privados específicos. 

Fundação Heinrich Böll: Quais os desafios para a Secretaria do C20, que no Brasil foi a ABONG (Associação Brasileira de ONGs)?  

Henrique Frota: Esta é a primeira vez que o Brasil assume a presidência rotativa do grupo desde a sua criação, em 1999. E, consequentemente, é a primeira vez que o grupo de engajamento da sociedade civil também é presidido e coordenado por organizações brasileiras. O C20 foi oficializado desde 2013, são 11 anos de contribuições. Na rodada do Japão, há alguns anos atrás, o C20 em assembleia definiu alguns princípios importantes justamente para assegurar a continuidade, a participação democrática e a inclusão. 

O C20 em si tem uma governança própria, autônoma, livre da ingerência dos governos. O que significa que a presidência, os cargos de negociadores do C20, os co-facilitadores dos grupos, quem lidera todos os debates são organizações da sociedade civil. Lembrando que, também como o G20, o C20 é um processo internacional, embora liderado por organizações do país sede, mas que necessariamente tem que estar aberto à participação intensa de movimentos e organizações de outros países. 

Temos de usar esse espaço para fazer todo o debate que envolva os acordos internacionais, pois essa agenda é estratégica. A Abong tem no seu histórico marcas fundamentais, como a organização do Fórum Social Mundial. A incidência internacional da Abong sempre foi uma tarefa estratégica, desde os anos 1990, quando a organização surge. No ano passado, sob a presidência do governo indiano, a Abong foi convidada para compor o comitê internacional do C20, já no planejamento da transição. Embora a Abong tenha uma experiência internacional, o G20 é muito próprio. Ele tem mecanismos e estruturas só do G20. 

A Gestos, que é a nossa co-parte nessa coordenação nacional, é associada da Abong e uma organização bastante experiente ao  seguir o C20 e o G20 em anos anteriores. Então, essa parceria entre a Abong e Gestos resulta também na formação desse grupo que conseguiu acumular uma inteligência de como operar as metodologias do C20 esse ano no Brasil. 

Fundação Heinrich Böll: Uma discussão fundamental no G20 é a arquitetura econômica global. Houve uma abertura de diálogo com a trilha de finanças do G20? 

Henrique Frota: A trilha financeira do G20 sempre foi a trilha mais fechada. Então, a relação com os ministérios de finanças, os bancos centrais, os países, sempre se deu de uma maneira muito difícil. Existiam muitas barreiras de participação e de diálogo. Então, a sociedade civil não conseguia adentrar nas salas em que as negociações estavam acontecendo. Hoje, ela continua muito fechada. 

O ambiente diplomático, em geral, não só no G20, é um ambiente mais blindado à participação da sociedade civil. Mas, esse ano, sob a presidência brasileira, nós conseguimos obter algumas conquistas interessantes no sentido de ter acesso aos debates, primeiro, junto ao Ministério da Fazenda. O Ministério está promovendo, ao longo do ano, alguns debates com a sociedade civil em temas centrais, que também são de interesse do governo do Brasil dentro do G20. No caso do Ministério da Fazenda, eles têm promovido atividades presenciais online com ampla convocação da sociedade civil. Então, não existe um número limitado. As organizações interessadas podem participar livremente. 

Isso é uma coisa bem nova. Participar nos debates, se inscrever para fazer fala, webinários que o Ministério da Fazenda tem feito, etc. E uma outra questão é que as reuniões oficiais da trilha de finanças do G20, que ainda continuam muito fechadas, mas em alguns momentos pontuais chaves do ponto de vista político, se abriu a possibilidade dos representantes dos grupos de engajamento estarem presentes. Isso também é uma inovação deste ano da presidência brasileira, e é algo que nós esperamos que nos anos seguintes se consolide como uma prática do grupo, porque a sociedade civil tem reivindicado há muito tempo a oportunidade de diálogo direto com a trilha de finanças. 

O debate financeiro global é o coração do G20 e é o coração dos acordos que vão acontecer. E para a sociedade civil, embora nós tenhamos uma agenda bastante ampla de temas, porque as urgências com as quais a sociedade civil lida nos territórios dos diversos países são múltiplas e complexas, não se resumem a um único tema ou a uma única agenda. Então, de fato, nós temos essa perspectiva mais ampla e mais integrada também, pois é muito importante conseguir fazer o diálogo econômico. Todos os outros temas: direitos sociais, ambientais, a questão da crise climática, do direito das crianças, das mulheres, da população negra, etc. se nós não conseguirmos discutir quem paga a conta essas proposições não vão ser efetivas.