Exclusão social e transfobia no Brasil - Como dar uma perspectiva às pessoas trans em situação de rua?

Ato pela Visibilidade Trans e Travesti reúne pessoas em luta contra a transfobia e discriminação em frente à Câmara Municipal, na Cinelândia.

O difícil caminho das pessoas trans e não binárias no Brasil já costuma começar muito cedo. Uma pesquisa realizada pela prefeitura do Rio de Janeiro revelou que 83% dos entrevistados[1] dizem ter sofrido violência dentro das escolas e duas em cada três pessoas já sofreram violência por serem quem são. Também é comum serem expulsas de casa por pais transfóbicos. A magnitude do problema das expulsões e da falta de apoio familiar fica clara considerando dados que mostram que 29% das pessoas trans ou não binárias deixaram de morar com os seus pais ou responsáveis antes de completar 15 anos[2].  

Esses números são particularmente altos no caso de mulheres trans, entre as quais há uma taxa relativamente alta em situação de rua com dificuldades de sair dessa situação precária.  A falta de apoio familiar, além da discriminação nas escolas, dificultam a busca por um emprego para muitas mulheres trans. As práticas discriminatórias começam no processo de seleção de alguns empregadores e (se a pessoa obtiver o emprego) há muitos ambientes de trabalho em que podem existir preconceito e discriminação. Neste contexto a luta das pessoas trans por reconhecimento e um tratamento digno também é constante.

O fato de estar em situação de rua e se ver obrigado a recorrer à prostituição devido à falta de alternativas coloca muitas pessoas trans particularmente expostas à violência transfóbica. É assim que as expulsões e as barreiras que a sociedade coloca no caminho dessas pessoas contribuem para que o Brasil seja o país com o maior número de assassinatos de pessoas trans, além de terem uma expectativa de vida de apenas 35 anos[3].  

Todos esses problemas, que lendo as estatísticas podem parecer abstratos, fazem parte da história de vida dessas pessoas. Bruniely Lemos, uma ativista que criou uma associação para promover os direitos das pessoas trans[4], relata que sofreu muita discriminação na escola e na família por causa de sua identidade de gênero.  A transfobia culminou quando decidiu iniciar a sua transição: foi expulsa de casa e perdeu o emprego aos 19 anos.  Sem teto, trabalho e perspectiva ela se viu obrigada a morar na rua até receber um convite para ser revendedora de cosméticos. Essa possibilidade de emprego a ajudou a sair da situação difícil em que se encontrava e motivou-a a criar a ONG “Transbordamos” em 2019, que promove a inclusão social de pessoas trans e fornece serviços de ajuda na busca de emprego.

 

A situação no Brasil em números

Não é possível dar um número exato de pessoas trans que moram nas ruas do Brasil, já que não há dados de um censo em nível nacional que trata essa temática, um problema também presente na região, na qual apenas o Uruguai possui um monitoramento desse fenômeno. Apesar de poucos dados nacionais no Brasil há censos baseados em pesquisas das prefeituras de algumas cidades, como da cidade de São Paulo, que provavelmente é o lugar com o maior número de pessoas morando na rua no Brasil. Embora apontados como subnotificados, os dados obtidos em pesquisa mostram que há aproximadamente 31.884 pessoas em situação de rua na capital paulista, das quais 3,1% são trans ou não binárias[5]. Em Fortaleza os dados apontam que 3% dos entrevistados se declararam trans ou não binários. O que se destaca na pesquisa de Fortaleza é que 20,4% dos entrevistados preferiram não responder a essa pergunta. A baixa taxa de respostas claras indica que a verdadeira porcentagem de pessoas trans na rua pode ser  ainda maior[6] . Esse número levanta questões sobre as dimensões do problema da falta de moradia entre as pessoas trans e a desproporcionalidade com que essa população é afetada por esse fenômeno.

 

O que se faz no Brasil?

Há vários programas com a finalidade de melhorar a condição da população trans no Brasil, mas não parece existir uma estratégia coerente em nível nacional.  Não há uma política de cotas mais geral na administração federal. Embora, por exemplo, o atual governo tenha reservado para pessoas trans 2% das vagas num concurso para auditores fiscais. Há alguns programas de ONGs e das prefeituras que tentam melhorar a empregabilidade dessas pessoas para lhes permitir encontrar trabalho. Um exemplo disso é o Posto Avançado Trabalha Rio LGBTQIA+, no Rio de Janeiro, que oferece cursos e estabelece contato entre pessoas que procuram vagas e empresas[7]. Além disso, algumas prefeituras fornecem serviços de saúde à população trans e diversas ONGs como a Casinha Acolhida ou a Casa Nem ajudam à população trans em situação de rua com alojamento de emergência e refeições. Nesse contexto cabe destacar que muitas dessas ONGs têm baixos recursos e dificuldades de manter os seus serviços[8].

 

Qual é a abordagem do assunto em outros países?

Dois países vizinhos ao Brasil, a Argentina e o Uruguai, se destacam na busca por maneiras de fortalecer a posição da comunidade trans na sociedade. Além de também oferecer programas sociais, esses países têm cotas em nível nacional que estabelecem que pelo menos 1% das pessoas trabalhando no serviço público deveriam ser pessoas trans. Essas leis entraram em vigor há dois anos. Embora na Argentina o número de pessoas trans empregadas no serviço público tenha aumentado significativamente desde a aprovação da cota passando de 101 a 709[9], isso não foi suficiente para atingir a porcentagem de 1%, prevista em lei. Se esse ritmo de crescimento for mantido, só será atingida essa meta em 18 anos[10]. Outra crítica que surgiu foi que a lei não trouxe muitos benefícios às pessoas trans em situações mais precárias. As pessoas que se beneficiaram dessa política parecem ser principalmente pessoas que já tinham uma situação mais estável e a educação necessária para assumir um posto no serviço público.  

Isso destaca ainda mais que é necessário ter uma perspectiva que também procure encontrar soluções que permitam melhorar a condição das partes mais marginalizadas dessa população. No caso argentino não seria alterar a lei fundamentalmente, mas só aplicá-la de uma maneira mais accessível, pois ela já prevê a não necessidade de ter todas as qualificações na hora de se candidatar, destacando a possibilidade de completar a formação depois de ser contratado[11].

Uma possibilidade de facilitar o acesso ao emprego para pessoas com uma educação insuficiente e que vivem em situações altamente precárias poderia ser a aplicação do conceito “Moradia Primeiro”, que consiste em fornecer um alojamento permanente a pessoas em situação de rua sem critérios muito estreitos. Isso representa uma diferença grande em relação a outros tipos de abrigos para pessoas em situação de rua que impõe obstáculos para aqueles que fazem uso de drogas ou álcool em suas instalações. Esse sistema quase acabou com a falta de moradia para sem tetos na Finlândia[12], pois leva em conta que se precisa de um teto para encontrar um emprego já que em muitas seleções é necessário ter um endereço. É difícil ao mesmo tempo construir uma vida  nova e sair do círculo  das drogas ou do álcool quando nem as necessidades mais básicas de uma pessoa são satisfeitas. Tirando as pessoas do contato com a situação que causou muitos desses problemas se torna mais fácil encontrar uma solução. O conceito “Moradia Primeiro” teria um valor especial para pessoas trans que frequentemente denunciam estarem em perigo em Centros Temporários de Acolhimento (CTA) por causa da violência preconceituosa que pode ser perpetuada por outros moradores.

 

Perspectivas para a comunidade trans no Brasil

Apesar da falta de uma política pública em nível nacional há vários avanços e passos feitos.  Neste contexto se destaca a aprovação de uma cota geral para pessoas trans em concursos públicos pelo governo do Rio Grande do Sul no final de 2021[13]. Além dessa lei que já está em vigor, há vários projetos de lei que pretendem estabelecer cotas em outros estados do Brasil e uma ao nível municipal que já está em vigor.  

Apesar dessas críticas, uma cota para pessoas trans no serviço público contribui para o bem-estar da comunidade trans a longo prazo. É positivo colocar mais dessas pessoas em posições em que elas poderão elaborar programas que ajudem à própria comunidade. O serviço público, ao qual a cota se aplica, é exatamente o lugar onde as políticas públicas são aplicadas. O envolvimento de membros da comunidade na administração pública pode aumentar a qualidade de políticas sociais no futuro, já que pessoas trans (mesmo aquelas relativamente mais favorecidas) vão poder contribuir com uma perspectiva que entende melhor as vivências das pessoas afetadas.

Não obstante os problemas persistentes, a aprovação e proposta de cada vez mais projetos de lei que preveem cotas e a crescente presença de pessoas trans – e especialmente da Deputada Erika Hilton, que já morou na rua por ter sido expulsa da casa por transfobia - no Congresso Nacional são algo que traz esperança para um futuro melhor e menos invisível.

 

[1] PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Prefeitura divulga levantamento sobre realidade da população trans no Rio de Janeiro. 04/04/2022. Ver em https://prefeitura.rio/segovi/prefeitura-divulga-levantamento-sobre-rea…pulacao-trans-no-rio-de-janeiro.

[2] Tribouillard, Clementine et all. Lançando luz sobre o invisibilizado: transexualidade e pessoas em situação de rua. 31/03/2022. Ver em: https://blogs.iadb.org/brasil/pt-br/lancando-luz-sobre-o-invisibilizado…de-e-pessoas-em-situacao-de-rua.

[3] DW. Brasil lidera ranking de mortes de pessoas trans. 27/01/2023. Ver em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2023/01/27/b….

[4] G1. Mês do Orgulho LGBTQIAP+: Mulher trans expulsa de casa cria instituto para apoiar pessoas trans em situação vulnerável. 11/06/2023. Ver em: https://g1.globo.com/sp/vale-do-paraiba-regiao/noticia/2023/06/11/mes-do-orgulho-lgbtqiap-mulher-trans-expulsa-de-casa-cria-instituto-para-apoiar-pessoas-trans-em-situacao-vulneravel.ghtml