Os processos de certificação orgânica convencional de alimentos funcionam como formas de controle e padronização que nem sempre favorecem a agricultura de pequena escala. A agroecologia propõe a descentralização desses processos, sob a lógica de que o próprio grupo de agricultores, agricultoras e as redes aliadas de consumidores são os mais indicados para garantir a origem agroecológica dos alimentos.
Os Sistemas Participativos de Garantia (SPG) nasceram nos anos 70, na Europa, para evitar que os agricultores que não cultivavam de forma orgânica se apropriassem do selo para vender os seus produtos. Nos anos 90 houve um ponto de inflexão: a exigência de uma certificação emitida por parte de terceiros para que entidades alheias à rede de camponeses dessem sua aprovação, o que tornou ilegais os SPGs, anulando sua natureza comunitária e participativa e tirando a autonomia dos produtores e consumidores.
Entretanto, na América Latina os SPGs tornaram-se a principal forma de certificar a produção orgânica. Foi uma escolha óbvia, pois o componente participativo desses sistemas ressoa com as bases da agroecologia. A certificação exige uma relação direta entre produtores, consumidores e outros atores comunitários, que verificam a origem e a condição dos produtos agroecológicos entre si, atuando como pares. Desta forma, eles garantem a produção, comercialização e consumo de orgânicos nos mercados locais e regionais, além de dividirem os custos das certificações entre todos os nós do sistema.
A Rede Ecovida, no Brasil, é uma experiência que tem servido de exemplo de certificação participativa. Entre as iniciativas que surgiram da Ecovida está a Rede Povos da Mata, credenciada em 2016, e cenário de interação entre 135 unidades de produção certificadas. Destaca-se por sua organização em rede, que envolve ONGs, movimentos sociais, comunidades tradicionais, assentamentos e entidades governamentais que, quando articuladas, garantem a qualidade dos alimentos.
A Rede Agroecológica do Austro (RAA), no Equador, promoveu leis para o reconhecimento da agroecologia e dos SPGs, e conquistou algo importante no que diz respeito à certificação participativa: em 2006, através de um Acordo Ministerial, conseguiu que o agroecológico deixasse de ser sinônimo de “orgânico”. O principal objetivo dessa rede é promover a transição agroecológica, e sua certificação consiste em etapas pelas quais os agricultores passam à medida que melhoram seus padrões, sob a premissa de que a certificação agroecológica, diferentemente da orgânica, não é um ponto de chegada, mas um caminho a percorrer.
No Peru, a Associação Nacional de Produtores Orgânicos (ANPE-PERU) une forças para materializar uma proposta de Agroecologia Nacional. Possui 32,6 mil associados em 20 bases regionais e 172 organizações locais. Atualmente há neste país 70 mil produtores orgânicos certificados e quase 500 mil hectares de cultivos orgânicos.
O caso da Bolívia confirma a força dos SPGs nos países andinos. Em 2015, foram registradas 15.814 unidades produtivas agropecuárias certificadas mediante o selo, cuja superfície alcançava 240 mil hectares, equivalentes a 6,44% da superfície cultivada do país; 162 mil toneladas de alimentos foram produzidas ali, equivalentes a 0,94% da produção agrícola total. Estes números se devem em parte aos marcos regulatórios, como a Lei 3.525, que promove a produção agroecológica e permite que os agricultores orgânicos tenham um acesso diferenciado aos mercados locais. Esta lei permitiu a capacitação de 7 mil produtores, a consolidação de 17 SPGs, a classificação de 650 produtores agroecológicos e 2,7 mil em transição.
Na Colômbia, a Rede de Mercados Agroecológicos Camponeses do Vale do Cauca (REDMAC) desenhou um SPG que hoje certifica os alimentos de 154 famílias produtoras em nove municípios dessa região. Um de seus mecanismos é o contato direto entre produtores e consumidores durante os dias de mercado, além das visitas às propriedades rurais para endossar os sistemas produtivos e fortalecer a solidariedade entre os diversos atores.
Na Argentina, a primeira experiência deste tipo foi a criação do Conselho de Garantia Participativa de Produtos Agroecológicos de Bella Vista, Corrientes, constituído em 2007 por famílias agricultoras, consumidoras e instituições públicas locais e nacionais. Ao contrário de outras iniciativas que certificam seus produtos como orgânicos, o Conselho optou pelo sistema participativo para poder vender seus alimentos como produção agroecológica; até 2015 havia certificado 15 agricultores familiares, cujos alimentos chegaram à mesa de pelo menos 100 consumidores diretos. A partir daí, as experiências se multiplicaram por todo o país e em 2022 foi realizado o I Encontro Nacional de Sistemas Participativos de Garantia com a participação de representantes de 40 SPGs.
Cabe esclarecer que os selos orgânicos certificados via auditorias geralmente não fornecem informações sobre dimensões como trabalho digno, renda justa, diversificação de cultivos e equidade social, diferentemente do que acontece com os SPGs, que são construídos de baixo para cima. Além disso, os valores da certificação por auditoria, muitas vezes impedem que agricultores familiares certifiquem seus produtos, além de transformarem os alimentos em um produto de elite para os consumidores Como diz Joselo Trujillo, agricultor argentino, “a certificação agroecológica [...] tem a ver com a vida das pessoas; o orgânico refere-se apenas ao produto. A agroecologia também é convivência cordial com os nossos filhos e nossos irmãos, moradias confortáveis [...]. É conhecer as pessoas que recebem as verduras, fazer alianças e reduzir os intermediários na comercialização para que o preço seja justo também para o consumidor”. Mas todas essas informações não cabem em um selo. Estas variáveis da produção agroecológica são socializadas com a comunidade em reuniões, visitas de campo e capacitações. Os SPGs costumam dar resultado em lugares onde a coesão social é forte e já existem plataformas de diálogo comunitário; daí a estreita relação entre os movimentos sociais e os processos de comercialização nos quais a agroecologia aposta.
Fontes
Rede Ecovida de Agroecologia de Brasil.
“Certificación de productos”. Asociación Nacional de Productores Ecológicos del Perú ANPE-PERU.
Red de Mercados Agroecológicos Campesinos del Valle del Cauca – REDMAC.
UTT (2020) “Certificaciones agroecológicas: sin veneno y con justicia social”.