CBD COP 15: A biodiversidade de ‘Paris’ ou de ‘Copenhagen’?

Análise

Com o futuro da biodiversidade em jogo, os estados membros da ONU estabelecem um quadro para um novo paradigma de conservação durante a 15ª COP da Biodiversidade.

Tucano em uma árvore

Semanas após o fracasso da Cúpula das Nações Unidas sobre o Clima no Egito, os Estados membros da ONU se reunem novamente de 7 a 19 de dezembro, desta vez em Montreal, para uma conferência semelhante sobre biodiversidade. Mas a 15ª Conferência das Partes da Convenção sobre Biodiversidade (CBD COP15), encarregada de fornecer uma nova estrutura para orientar a conservação da biodiversidade global, já está passando por maus presságios. Apesar dos sinais positivos, incluindo o reconhecimento potencial da necessidade de abordar o financiamento governamental de indústrias nocivas e incorporando uma abordagem baseada em direitos para a conservação da biodiversidade, as preocupações continuam de que as negociações possam ser, mais uma vez, arruinadas pelo lobby corporativo e pela relutância de muitas partes em se comprometerem com as medidas necessárias para garantir o futuro de toda a vida na Terra.

Não podemos subestimar a importância da COP15. O planeta está em crise, com mais de um milhão de espécies ameaçadas de extinção. A menos que tomemos medidas eficazes para enfrentar as causas subjacentes da perda da biodiversidade, espera-se que o declínio continue a acelerar, impactando nossa qualidade de vida, bem-estar e o futuro de toda a vida na Terra. Estas causas subjacentes incluem, antes de tudo, a sempre crescente conversão dos ecossistemas e a superexploração dos recursos naturais para alimentar um modelo de negócios corporativo, neocolonial e patriarcalista. Este modelo, baseado no crescimento contínuo do consumo e da produção, é freqüentemente apoiado através de generosos subsídios governamentais.

Planejada como um grande evento em Kunming no final de 2020, os anfitriões chineses da COP15 adiaram a reunião quatro vezes devido a preocupações com a Covid-19 antes de ser finalmente transferida para Montreal, no Canadá. Entretanto, a China já celebrou sua própria Cúpula sobre Biodiversidade em outubro de 2021; um evento que contou com a presença do presidente chinês Xi Jinping e milhares de autoridades e partes interessadas chinesas, mas poucos convidados internacionais. Para piorar as coisas, a reunião de dezembro foi de fato rebaixada para uma conferência ordinária, pois o anfitrião, o Presidente Xi, decidiu não participar e, portanto, não convidar outros chefes de estado.

Mas o verdadeiro mau presságio para a COP15 é o resultado que ela deve produzir: um novo plano estratégico na forma de um Convênio Global de Biodiversidade (GBF) que colocaria a humanidade no caminho certo com a visão de "viver em harmonia com a natureza" até 2050. O GBF é freqüentemente visto como o "acordo de Paris" para a biodiversidade; um novo compromisso político que irá gerar ação política e apoio financeiro para os próximos anos. Mas com apenas 14 dias de negociação e centenas de desacordos muitas vezes profundos entre as partes, os observadores temem que em vez de ser o "Paris da Biodiversidade", a COP15 esteja se configurando para ser um desastre diplomático mais parecido com a COP climática de 2009 em Copenhague. O que acontece em Montreal em dezembro deste ano terá implicações existenciais para todos nós.

O GBF: Mais Ambição ou uma Nova Visão sobre Conservação?

Nem tudo, porém, está necessariamente perdido. O processo preparatório para a COP15 já mostrou que uma presidência diplomática e hábil das negociações pode levar a um consenso. Já foi alcançado um acordo sobre 2 das 22 metas. Entretanto, tal consenso muitas vezes vem com grandes compromissos, e muitos temem que o GBF possa, de fato, representar um retrocesso em relação ao primeiro Plano Estratégico da CDB. Enquanto isso, muitos países e organizações de conservação estabeleceram uma "Coalizão de Alta Ambição" co-presidida pela Costa Rica, França e o Reino Unido. Seu principal objetivo é incorporar uma meta concreta de proteger 30% da terra e dos oceanos do planeta até 2030. Tal meta numérica é vista como um marco simbólico semelhante à meta de aquecimento global de 1,5 C incorporada ao Acordo de Paris.

No entanto, as duas metas não são comparáveis. A meta de 1,5 graus pode ser muito pouco para evitar desastres climáticos como as recentes inundações no Paquistão e na Nigéria, mas é pelo menos um resultado abrangente. As áreas protegidas são apenas uma ferramenta para conservar a biodiversidade, e proteger apenas 30% do planeta é escandalosamente inadequado, especialmente se considerarmos que os países já concordaram em 2015 em proteger 100% das florestas do mundo até 2020 como parte do Objetivo 15 de Desenvolvimento Sustentável. Também é questionável até que ponto uma vaga ambição do tipo de Paris acrescentará algo aos compromissos mais concretos e juridicamente vinculativos já adotados pelas Partes na CDB.

Além disso, as áreas protegidas têm um desempenho misto no que diz respeito à conservação da biodiversidade. Muitas vezes elas são estabelecidas em áreas sem ameaça significativa, pois não são atraentes para a agricultura em larga escala ou outros fatores de perda de biodiversidade. Ainda mais cinicamente, quando surgem ameaças—por exemplo, quando as reservas de petróleo ou ouro são descobertas—o status de proteção é muitas vezes tirado. Muitos parques estão mal protegidos contra ameaças em geral devido à falta de capacidade de fiscalização e há poucas proteções contra a mudança climática, que está se tornando rapidamente a principal ameaça aos ecossistemas do mundo. Mais importante ainda, toda a ideia de que as áreas precisam ser protegidas das pessoas tem frequentemente provocado despejos violentos e outras violações dos direitos humanos, e se baseia em uma suposição bastante cínica de que as pessoas nunca poderiam viver em harmonia com a natureza. Uma corporação de literatura científica em rápido desenvolvimento está mostrando o contrário: a maioria dos povos indígenas e muitas comunidades locais são perfeitamente capazes de conservar e restaurar os territórios e áreas que chamam de lar, desde que seus direitos e sistemas de governança sobre essas áreas sejam protegidos. As mulheres, em toda a sua diversidade, têm frequentemente desempenhado um papel fundamental em tais sistemas de governança, por serem a força por trás das iniciativas de conservação da comunidade e das economias de cuidado.

Direitos Sob Ameaça

O que precisamos, portanto, não é uma meta simbólica de 30%, mas uma GBF que reflita um verdadeiro novo paradigma sobre a conservação da biodiversidade, destacando a visão de 2050 da Convenção: viver em harmonia com a natureza. Tal paradigma seria construído em respeito aos direitos, funções, necessidades, e aspirações dos principais detentores dos direitos como Pessoas Indígenas, mulheres, e comunidades locais na conservação da biodiversidade. Ao invés de proteger as áreas das pessoas, iria promover a conservação por e para elas. Exemplos inspiradores de iniciativas de conservação da comunidade grandemente sucedidas ao redor do mundo têm comprovado a viabilidade desse novo modelo de conservação. E diversos países realmente ambiciosos têm colocado suas propostas na mesa para garantir que uma abordagem baseada em direitos para a conservação da biodiversidade seja incorporada nas metas da GBF. O grande suporte para a grande meta 21, focando nos direitos de Pessoas Indígenas e outros grupos de detentores de direitos como comunidades locais, e meta 22 focando nos direitos e nos papéis das mulheres, tem levantado esperanças para uma transformação genuína da GBF apesar de tudo.

Mas uma preocupante ameaça adicional apareceu em forma de uma denúncia de um grupo informal  de negociadores de países que vieram juntos em Setembro de 2022 para “limpar” os textos de negociação. Uma de suas propostas era de deletar as referências da GBF aos direitos e abordagens baseadas em direitos de Povos Indígenas, como eles dizem isso já está coberto na seção “B-bis”—uma seção sobre princípios transversais para a GBF. Contudo, este grupo também propõe a renomeação da seção para “premissas fundamentais”, uma expressão única nas leis internacionais que não teria implicações juridicamente vinculadas. Como não há propostas de indicadores para monitorar a implementação dessas “premissas”, os países poderiam simplesmente ignorar eles quando relatarem sobre suas medidas de implementação. Ainda mais ameaçadora, a falta de consenso poderia ainda ver toda a seção “B-bis” ser removida, deixando um vazio para qualquer um desses direitos.

Enfrentando as reais ameaças à Biodiversidade

Além de incorporar os direitos humanos, o GBF precisa refletir uma ambição verdadeira e comprometimento para enfrentar as atuais  ameaças à biodiversidade. Uma grande avaliação da resiliência das iniciativas de conservação da comunidade em 22 países diferentes revelou os desafios para sustentar tais iniciativas enquanto ameaças externas continuam crescendo, como conversão de terras de larga escala, monocultura de agro-indústrias de colheitas e árvores, incluindo bioenergia e criação de gado industrial. Mudanças climáticas despertadas por uma extração de combustível fóssil contínua, mineração e desmatamento florestal também se apresenta como uma ameaça significativa para a biodiversidade. Cinicamente, muitas dessas ameaças são diretamente ou indiretamente financiadas pelas Partes da CBD: Governos gastam aproximadamente 500 bilhões de dólares anualmente em subsídios e outros incentivos que promovem atividades que prejudicam a biodiversidade. Acima disso, mais de 2.6 trilhões de dólares são gastos anualmente em investimentos privados e públicos prejudiciais à biodiversidade: Recursos financeiros—recursos prejudiciais, na verdade—são os verdadeiros impulsionadores da perda da biodiversidade.

Felizmente, há um reconhecimento crescente onde o chamado “alinhamento” do fluxo financeiro com o GBF deve estar no coração da estrutura se for para obter qualquer chance de sucesso.

É por isso que não existem apenas projetos de metas que exigem esse alinhamento e a eliminação de incentivos perversos, mas o alinhamento do fluxo financeiro e reforma desses incentivos serão, espera-se, elementos centrais da estratégia de recursos de mobilização que deve ser adotado como parte do pacote de decisões da COP15. Há também um crescente apoio como referência para lidar com problemas mais estruturais, como dívidas injustas e evasões fiscais, que acabam com a capacidade dos países de financiar uma transição para a conservação da biodiversidade. Além do mais, há diversas propostas para novos fundos serem mobilizados. Soa louvável, mas a questão é de onde esse fundo vai vir; se for providenciado por países desenvolvidos como forma de assistência social ao desenvolvimento, estará de acordo com os compromissos da CBD original. Portanto, para esconder sua falha em cumprir suas obrigações financeiras, países desenvolvidos têm abraçado a noção de “todas as fontes de financiamento”, que significa que os fluxos financeiros do setor privado para a biodiversidade estarão inclusos. Esse financiamento do setor privado viria com um preço muito alto.

Apoio financeiro do setor privado para políticas públicas como a conservação da biodiversidade cria dependências financeiras de instituições públicas, sejam agências do governo ou organizações conservadoras, sobre os interesses do setor privado. Claro, alguns desses interesses podem ser benignos, mas o problema é que essas corporações em um sistema capitalista precisam promover um crescimento e não estão em uma posição, legal ou não, de aceitar limites para esse crescimento. Mas políticas da biodiversidade e regulações devem impor limites para crescer à luz dos limites planetários. Portanto, não é de se admirar que cerca de 89% de todo lobby da corporação visa enfraquecer as políticas e regulamentações. Justamente por isso, muitos observadores estão preocupados com processos como as negociações sobre integrações e a Força Tarefa sobre Divulgações Financeiras Relacionadas a Natureza, que são dominadas por corporações. Esses processos têm tentado promover o comprometimento voluntário de corporações para relatar sobre os benefícios da natureza apenas em corporações, ao invés de metas para estabelecer fortes regulamentações para prevenir danos corporativos à biodiversidade. O fracasso recente do Projeto de Clima para chegar a um acordo sobre compromissos significativos para abordar, por exemplo, a surpreendente emissão causada pela pecuária insustentável, mostra mais uma vez como a captura corporativa da política internacional bloqueia o progresso.

Os incentivos perversos provocados pelo setor privado de suporte a instituições públicas são ainda mais fortes quando se trata de esquemas prejudiciais de compensação de carbono. Tanto a biodiversidade quanto às compensações de carbono já estão gerando fundos significativos para conservação, enquanto os resultados da COP27 relacionados aos mercados de compensações de carbono fornecem uma pequena esperança de que os direitos de Pessoas Indígenas, ou a própria biodiversidade serão respeitados no mercado. As trocas de créditos de emissões também criam incentivos perversos para conceder licenças ou mesmo subsidiar projetos destrutivos para garantir a geração de um maior financiamento de compensação de carbono. Não é a toa que ONGs e detentores dos direitos estão preocupados com as referências em projetos de metas para o aumento do financiamento do setor privado e esquemas mais amplos no mercado, como compensações de carbono e pagamentos para serviços ambientais, que tendem a beneficiar principalmente os grandes proprietários de terras em detrimento de grupos de grupos como mulheres e Povos Indígenas. Termos como “natureza positiva no mundo" e “soluções naturais” também têm sido propostas  como parte dos esforços para incorporar abordagens de compensação baseadas no mercado. Soluções naturais têm causado controvérsias particulares, como sua principal fonte de financiamento é o mercado voluntário de carbono, que é acusado de minar o regime climático.

#StoptheSame

A política de biodiversidade se encontra perante um dilema. O cenário mais assustador da COP15 não é somente um desabamento das negociações, tipo Copenhague; a maior ameaça é um GBF negociado que apoia o negócio como sempre, permitindo que as corporações paguem pelos danos através de esquemas de compensação que sustentam o velho modo “fortaleza” da conservação ao invés de iniciativas complexas, porém muito mais eficazes, de conservação comunitárias implementadas por povos indígenas, mulheres e comunidades locais na área. Não admira que a Rede Jovem de Biodiversidade Global esteja mobilizando sob o lema #stopthesame.

Mas um resultado melhor ainda é possível. Grandes movimentos de defensores dos direitos e outros observadores estão se mobilizando para pedir justiça na biodiversidade e uma transformação real. Um número crescente de países desenvolvidos têm apoiado suas causas para referências mais fortes para os direitos dos Povos Indígenas e das mulheres no GBF, e regulamentações obrigatórias para garantir que investidores, corporações, e consumidores não causem danos à biodiversidade. Eles também têm rejeitado abordagens baseadas em compensação de carbono e pediram por um regime mais igualitário pós-2022, que incluiria um acordo justo de dividir os benefícios de não apenas recursos genéticos, mas também de informações de sequência genética digital. Só podemos esperar que países e blocos regionais que se colocam como mediadores em negociações na biodiversidade estejam ouvindo e entendendo a necessidade de um novo paradigma de conservação da biodiversidade nesses dias sombrios antes do Natal.


Tradução de artigo original da Fundação Heinrich Böll em Berlim. Traduzido por Jeremy Smith.