O que está em jogo nas negociações sobre a biodiversidade na ONU?

Assinada por 196 países e ratificada por 168 destes, a Convenção da Biodiversidade Biológica (CDB) é um acordo internacional no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU) que possui três objetivos centrais: a) a conservação da diversidade biológica; b) a utilização sustentável de seus componentes e; c) repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização de recursos genéticos.

Discussões durante a COP

A cada dois anos, os países reúnem-se na Conferência das Partes para atualizar os temas referentes à Convenção e detalhar suas definições. Durante a Conferência, os temas são divididos em dois grupos simultâneos de discussão que debatem os pontos propostos pelo grupo técnico científico (SBSTTA), que subsidia a aplicação da Convenção da Diversidade Biológica e de seus protocolos (o de Cartagena sobre biossegurança, e o de Nagoya sobre acesso e repartição de benefícios) nos aspectos técnicos. A partir da posição técnica do SBSTTA, a Conferência toma as decisões políticas sobre os documentos propostos.

No mesmo momento da Convenção ocorrem a Conferência das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e a Conferência das Partes do Protocolo de Nagoya sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa de Benefícios decorrentes da sua utilização.

O contexto das negociações da biodiversidade e clima desde 2016 e a posição brasileira

Em 2020 haveria o 15º Encontro das partes da Convenção da Diversidade Biológica, na China. No mesmo momento, aconteceriam a 10ª Conferência das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e a 4ª Conferência das Partes do Protocolo de Nagoya sobre Acesso aos Recursos Genéticos e Repartição Justa e Equitativa de Benefícios decorrentes da sua utilização.

No entanto, a agenda foi transferida diversas vezes em razão da pandemia de Covid-19. Ocorreu uma primeira parte de forma híbrida (com participação por meio virtual da sociedade civil e delegações das partes com equipes reduzidas de forma presencial), em Kumming, na China, de 11 a 15 de outubro de 2021. Agora, a segunda parte ocorre em Montreal, no Canadá, de 07 a 19 de dezembro de 2022. De 02 a 05 de dezembro houve a discussão sobre o Marco Global de Biodiversidade pós 2020.

Nesta COP 15 ocorre a reavaliação das metas da década da biodiversidade (2010-2020), as chamadas Metas de Aichi. Em 2020, a Convenção sobre Diversidade Biológica atualizaria os marcos pós 2020 como trampolim para a Visão de 2050 de “Viver em harmonia com a natureza” (“Living in harmony with nature”).

Há uma série de críticas ao fracasso das Metas de Aichi e altas expectativas sobre se, de fato, haverá algum avanço na projeção e efetivação de novas metas globais.

Esta COP 15 também é importante pois é a primeira vez que o Brasil poderá votar e participar mais ativamente das discussões sobre o Protocolo de Nagoya. Antes, as posições do Brasil influenciavam o debate internacional, mas não o vinculavam.

Após 10 anos de assinatura no Brasil do Protocolo de Nagoya, o documento foi ratificado em agosto de 2020, num rápido processo de aprovação no Congresso Nacional com sanção do presidente da república. A ratificação do Protocolo se deu em um momento de pandemia pelo novo coronavírus, com uma forte pressão da indústria e sem a devida consulta e participação dos povos e comunidades tradicionais.

Em relação ao papel brasileiro, desde a 13ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica (COP 13), realizada em Cancun em 2016, não houve abertura de diálogo formal com a sociedade civil e com os movimentos sociais presentes na Conferência.

A posição oficial do país esteve alinhada com representantes e lobistas do agronegócio e de setores industriais. A votação do Brasil em algumas temáticas exemplifica a correlação de forças atual, especialmente nas discussões que se referem ao Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Com influências do agronegócio e de corporações internacionais, o Brasil permanece protagonizando posições de experimentação de novos organismos geneticamente modificados e objetiva flexibilizar as regulamentações sobre o tema – internamente e nos acordos internacionais. Tanto que o país foi contrário à moratória internacional sobre novas tecnologias de precisão e edição genética, como são os impulsores genéticos (gene drives), e também se posicionou de maneira recuada no tema de biológicas sintéticas.

Não é novidade que o retrato de ameaças à biodiversidade no mundo tem se agravado consideravelmente nos últimos anos. O Brasil é um dos países que apresenta escancaradamente com medidas que se configuram como tragédias à biodiversidade, sobretudo pelo governo de Jair Bolsonaro.

Este cenário já se expressava, em partes, na 14ª Conferência das Partes da Convenção da Diversidade Biológica (COP 14), ocorrida no Egito. A COP 14 revelou as disputas de interesses e uma nova configuração política na agenda internacional, especialmente com um realinhamento de países latino-americanos com políticas extremamente liberais e que confrontam a agenda de conservação da biodiversidade.

O Brasil, país ambientalmente megadiverso, tem papel central nas negociações e posições durante a Conferência, assumindo a ponta de lança de debates. E é potencialmente neste espaço, que se manifestaram as propostas já no governo de Michel Temer e que logo se alinhava com os interesses do governo Jair Bolsonaro – as quais representam inúmeros retrocessos na conservação da biodiversidade, especialmente nos direitos dos povos do campo, das águas e florestas brasileiras.

Com a vitória de Luis Inácio Lula da Silva neste ano de 2022, os olhos internacionais voltam-se a dimensionar alguma esperança no Brasil, especialmente pela abertura de diálogo e o posicionamento de adoção de medidas de proteção à biodiversidade, aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e à agricultura familiar.

Os temas “quentes” na CDB: biologia sintética, impulsores genéticos, conhecimentos tradicionais e digitalização de sequências genéticas

Além da COP 15 ser emblemática por si só, pois foi atrasada em dois anos, há pautas prioritárias de debate nos organismos internacionais bastante complexas e controversas, como a biologia sintética, os impulsores genéticos, a digitalização de sequência genéticas de organismos vivos, a biopirataria de conhecimentos tradicionais, o extermínio de insetos polinizadores, as alterações climáticas, entre outros. Trataremos de alguns poucos destes debates.

Biologia sintética

O grupo de técnicos e cientistas já havia considerado que pode haver efeitos adversos em relação aos três objetivos da Convenção sobre Diversidade Biológica no tema da biologia sintética. Definida na COP 13 em Cancun/2016, “a biologia sintética representa um novo avanço e uma nova dimensão de biotecnologia moderna que combina a ciência, a tecnologia e a engenharia para facilitar e acelerar a compreensão, o desenho, redesenho, fabricação e a modificação de materiais genéticos, organismos vivos e sistemas biológicos”.

As biologias sintéticas são formas de engenharia genética que podem construir partes e sistemas biológicos novos ou transformar organismos já existentes. Ainda há uma série de incertezas sobre os riscos de sua implementação em massa para a saúde e a biodiversidade. Várias empresas tentam caracterizar tais produtos como naturais, sem identificação de que são derivados de biologia sintética, manipuladas artificialmente, o que integra tais produtos à cadeia produtiva e alimentar sem a devida análise de possíveis riscos que possam causar e, assim, violam as informações aos povos e consumidores para que tomem as decisões sobre estes produtos.

A Via Campesina e o Comitê Internacional de Planejamento para a Soberania Alimentar alertam que a biologia sintética objetiva substituir e industrializar as práticas tradicionais e holísticas do “fazer agricultura”. Para os movimentos, é necessária a construção de um texto sólido, para proteção das comunidades locais, povos indígenas e camponeses, que são os verdadeiros especialistas na conservação e proteção da diversidade biológica.

O Brasil votou, durante a COP 14, pela não inclusão do monitoramento e análises dos organismos resultantes da edição genômica da biologia sintética, além disso, pela exclusão de processos e modalidades de análises prospectivas (horizon scanning, em inglês, ou análisis prospectivo, em espanhol), com monitoramento de biologia sintética com notificações periódicas ao grupo técnico de experts da Convenção da Diversidade Biológica.

Contudo, uma posição positiva do país foi a menção à necessidade de efetiva participação dos povos indígenas e comunidades locais nas discussões sobre biologia sintética no âmbito da CDB, já que podem sofrer as consequências não planejadas das aplicações de biologias sintéticas. Também houve a menção de que havia lacuna no documento sobre consentimento livre, prévio e informado dos indígenas e comunidades locais sobre o tema, como respalda a Convenção 169 da OIT para povos indígenas e tribais.

Gene Drives/Impulsores Genéticos:

Outra tecnologia abordada durante a COP 14 são os novos organismos geneticamente modificados por técnicas avançadas de engenharia genética, os impulsores ou condutores genéticos. Os impulsores genéticos são manipulações genéticas com técnicas que utilizam enzimas que “cortam e colam” (como a CrisPR/Cas9) genes de seres com reprodução sexuada, a exemplo de plantas como o milho, e insetos, como mosquitos, sem necessariamente introduzir genes de outros organismos ou sintéticos. Esta técnica tem o poder de transmitir suas características modificadas para a integralidade de seus descendentes. As características passadas podem ser irreversíveis ou incontroláveis e, inclusive, podem exterminar toda uma espécie.

A Via Campesina e o Comitê Internacional de Planejamento para a Soberania Alimentar (CIP), manifestaram que é imprescindível que as comunidades locais, camponesas e indígenas sejam consultadas, ouvidas e suas decisões sejam respeitadas em todas as etapas do processo de avaliação destas novas tecnologias. Para a Via Campesina, as tecnologias de condução ou impulsão genética são tecnologias de extermínio, que comprometem diretamente a soberania alimentar. “Depois do terminator”, se discute aqui o exterminator”, afirmava o discurso dos camponeses. Durante a Convenção, em conjunto com outras organizações da sociedade civil, pediu-se uma moratória internacional sobre os impulsores genéticos.

O documento final da COP 14 representou vitórias parciais dos movimentos sociais e organizações atuantes no tema, vez que estimula as partes a aplicar o princípio da precaução, tendo em vista as incertezas sobre os impulsores genéticos (gene drives), considerando a liberação no meio ambiente somente quando houver avaliação de riscos com fundamentos sólidos e caso a caso; que existam medidas de gestão de riscos para evitar efeitos adversos; e que se busque o consentimento livre, prévio e informado com participação dos indígenas e comunidades que podem ser afetados. Apesar desta posição, a moratória internacional que se pedia de regulamentação dos impulsores genéticos não foi aprovada.

Ainda, não há qualquer comprovação que as novas tecnologias de precisão possam contribuir na resolução de problemas sociais, alimentares e nutricionais. Ou melhor, podem haver aprofundamentos, mas não que alcancem os sujeitos diretamente afetados, como camponeses e povos e comunidades tradicionais, bem como todos os consumidores. O que já sabemos é que os organismos com manipulações genéticas podem causar impactos irreversíveis à sócio e à agrobiodiversidade. Além disso, podem ser consideradas como armas biológicas, com poder de extermínio de espécies inteiras. Os princípios de prevenção e precaução, que fazem parte da Convenção da Diversidade Biológica da qual o Brasil é signatário, foram completamente ignorados. Na última recomendação do órgão subsidiário de assessoramento científico, técnico e tecnológico (SBSTTA) há o reconhecimento de que tais tecnologias podem gerar efeitos graves ou irreversíveis à diversidade biológica, ameaçando espécies raras, habitats e ecossistemas complexos.

Além do mais, sem divulgação e sem a participação da sociedade civil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) aprovou, em janeiro de 2018, a Resolução Normativa (RN) 16/2018, a qual estabelece requisitos para a definição de novas biotecnologias com engenharia genética que diferem das técnicas utilizadas em transgênicos. A normativa aprovada abre lacunas jurídicas para que os organismos produzidos por essa nova tecnologia de alteração genética não sejam considerados Organismos Geneticamente Modificados (OGM). Assim, não estariam submetidos às implicações da Lei de Biossegurança (Lei nº 11.105/2005), como a avaliação de riscos ou de rotulagem para produção e consumo.

Em relação a Biossegurança os desafios e as recomendações ao Estado brasileiro estão em torno da reedição da Resolução Normativa 16/2018 da CTNBio em conformidade com a Constituição Federal, com a Convenção da Diversidade Biológica e com o Protocolo de Cartagena, com respeito à participação e avaliação da sociedade civil e comunidade científica sobre os riscos à soberania e segurança alimentar e nutricional brasileira. Ademais, a conformação da Lei de Biossegurança conforme o Protocolo de Cartagena, evitando-se manobras jurídicas que afastem as Técnicas Inovadoras de Melhoramento de Precisão de regulação e no âmbito internacional que haja regulação e limitação ao desenvolvimento e aplicação experimental dos condutores genéticos (gene drives), biofortificados, biologias sintéticas e demais mecanismos da engenharia genética.

Participação e Consentimento de Povos Indígenas e Comunidades Locais

Quanto aos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais, as partes foram convidadas para que, na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, se integrem os conhecimentos tradicionais de povos indígenas e comunidades locais em todos os objetivos do desenvolvimento sustentável pertinentes.

Os países também acordaram a elaboração de uma orientação metodológica relativa às contribuições dos povos indígenas e comunidades locais para a CDB. Assim, reconhece e inclui “plenamente os conhecimentos tradicionais, garantindo a complementaridade dos sistemas de conhecimento, a criação de condições para um diálogo eficaz entre os sistemas de conhecimentos”.

Por fim, acerca da proteção aos territórios e conhecimentos das comunidades campesinas, povos e comunidades tradicionais, os movimentos sociais pedem que se cumpra os procedimentos de consulta prévia e informada através de instituições representativas dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e dos agricultores familiares e camponeses, conforme o art. 8 “j” da CDB, da meta 18 de Aichi, do art. 6.1 “a” da Convenção 169 da OIT, especialmente no que tange ao acesso aos conhecimentos tradicionais associados e a respectiva repartição de benefícios. Nessa toada que seja garantido o direito a dizer “não” ao acesso aos conhecimentos tradicionais associados, vez que como é edificado na Lei 13.123/2015 o direito de veto ao acesso é impraticável e cumpra-se a legislação para garantir participação real dos povos indígenas, comunidades tradicionais e agricultores familiares no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN) com a viabilização, custeio e de assessoria técnica e jurídica aos representantes e comunidades envolvidas.

Digitalização de Sequências Genéticas

Outra questão abordada foi a digitalização de sequência genéticas de organismos, espécies vegetais e animais em um “banco” digital, que pode gerar uma série de consequências, como a ampliação do desenvolvimento de organismos artificiais e sintéticos, a apropriação privada do patrimônio genético dos povos e a dificuldade de repartição dos benefícios de biologias sintéticas que derivam de dados de espécies desenvolvidas por povos indígenas e comunidades tradicionais.

As organizações e movimentos sociais brasileiros haviam se posicionaram na COP 15, reivindicando: a) o reconhecimento de que todo sequenciamento genético contém informações que foram experimentadas e vivenciadas por povos indígenas e comunidades locais e agricultores familiares; b) as informações digitais de sequenciamento genético devem ser passíveis de repartição de benefícios com os detentores de conhecimentos tradicionais, povos indígenas, comunidades locais e agricultores familiares; c) a proteção dos territórios tradicionais de produção sustentável, para garantir a segurança alimentar e nutricional de povos indígenas e comunidades locais; d) a garantia do consentimento livre, prévio e informado aos povos indígenas e comunidades locais sobre os bancos públicos e outras formas de produtos das informações digitais das sequências genéticas; e) a construção de um programa eficiente e com participação dos povos indígenas e comunidades locais dos cadastros das informações digitais das sequências genéticas; f) a observância do princípio da precaução para a pesquisa, desenvolvimento e liberação de técnicas relacionadas à biologia sintética, bem como os impactos sociais e econômicos às comunidades que dependem destes recursos.

Na COP 14, neste tema, durante o debate oficial, esteve em evidência a posição do grupo africano e dos países megadiversos (este último representado pelo Brasil), que se posicionaram pela repartição de benefícios das biologias sintéticas, vez que os dados de sequenciamento genético se enquadram na CDB e seus protocolos. A União Europeia se posicionou pela necessidade de acesso aberto aos bancos de dados de sequenciamento genético, entendendo que isso poderia já se caracterizar como o compartilhamento de benefícios, o que viola os direitos coletivos das comunidades tradicionais e povos indígenas que desenvolveram o patrimônio genético a partir de seus conhecimentos tradicionais.

Como não houve consenso entre as partes acerca da temática, a posição acordada na conferência foi de abrir prazo que as Partes, outros Governos, povos indígenas e comunidades locais e organizações pertinentes e interessados diretos apresentassem opiniões a respeito da: a) terminologia adequada; b) usos comerciais e não comerciais; c) acesso, uso, geração e análise de informação digital. Nesse sentido, foi criado um grupo de experts técnicos com participação de indígenas e comunidades locais para avaliar os dados e posições coletadas e averiguar como as medidas nacionais têm abordado o tema, com relatório a ser avaliado nesta COP 15.

Mudanças Climáticas

No que diz respeito às mudanças climáticas as partes da conferência reconheceram, mais uma vez, a necessidade de redução das mudanças climáticas e de manter o aumento da temperatura mundial abaixo de 2ºC em relação aos níveis pré-industriais para preservação dos ecossistemas, da biodiversidade e especialmente dos territórios de comunidades tradicionais e indígenas.

Para tanto, reforçaram a necessidade de promover uma implementação coerente e integrada do Acordo de Paris, da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, a Convenção da Diversidade Biológica e o Plano Estratégico para a Diversidade Biológica 2011-2020, o futuro marco da diversidade biológica após 2020, a Convenção das Nações Unidas de Luta contra a Desertificação e outros marcos legais internacionais pertinentes, como o Marco de Sendai para a Redução do Risco de Desastres 2015-2030.

Contudo, há uma série de medidas e orientações voluntárias, não vinculantes, que foram esboçadas na Convenção. Já era de se esperar, conforme as posições do atual governo de Jair Bolsonaro, que houvesse pouca disposição do governo brasileiro em aderir às orientações voluntárias, especialmente no que concerne à proteção e integração de áreas protegidas e áreas de povos e comunidades tradicionais, que guardam e desenvolvem a biodiversidade local.

Novas tecnologias agrícolas

No que se refere aos transgênicos, o Brasil se destaca como um dos países com maior área cultivada com sementes geneticamente modificadas. São mais de 45 milhões de hectares e 96 variedades GM liberadas, sendo 80% destas milho, soja e algodão, a maioria resistente a um ou mais herbicidas de elevado impacto à saúde e ao meio ambiente. A partir da associação de sementes transgênicas aos agrotóxicos, o Brasil lidera o maior consumidor mundial de agrotóxicos com mais de 1 bilhão de litros ao ano. Fato que expõe a riscos irreversíveis à sua população e ao ambiente como um todo. Cerca de 30% dos mais de 500 ingredientes ativos de agrotóxicos autorizados no Brasil já foram banidos na Europa. O governo operou um desmonte da regulação sobre agrotóxicos, gerando forte contradição com as metas de Aichi.

Há uma expressiva aceleração da liberação comercial de organismos geneticamente modificados pela CTNBio sem o devido rigor científico, os ataques da indústria de alimentos ao direito de informação e à rotulagem de produtos transgênicos e a multiplicação de casos de contaminações genéticas e por agrotóxicos que violam os direitos dos agricultores e dos povos indígenas e das comunidades tradicionais. A CTNBio publicou, no início de janeiro de 2020, a Resolução Normativa nº 24 que dispõe sobre a liberação comercial e o monitoramento de OGMs e seus derivados, os transgênicos. O texto, aprovado em uma reunião realizada no apagar das luzes em dezembro de 2019, facilita a liberação desses produtos modificados, uma vez que deixa a cargo das próprias empresas que pretendem comercializar o transgênico encarregada de testar os possíveis riscos dele à saúde e ao meio ambiente. A exemplo disso, poderíamos citar as recentes disputas políticas e econômicas para aprovação do trigo transgênico no Brasil. O produto foi liberado recentemente para plantio na Argentina e o Brasil autorizou a importação da farinha de trigo transgênica, mesmo com forte oposição social e da indústria de panificados e massas.

As lutas prioritárias caminham na exigência que o Estado Brasileiro respeite a meta 3 de Aichi para eliminar ou reformular os incentivos nocivos à biodiversidade para minimizar ou evitar impactos negativos, em especial à remoção das isenções e benefícios fiscais aos agrotóxicos e qualquer modificação legal que facilite o uso, comercialização e liberação de agrotóxicos. Na realização de análise de riscos do impacto sinérgico de diferentes agrotóxicos que são parte do pacote tecnológico que acompanha certos OGMs, também eliminando qualquer possibilidade de mistura ou combinação de agrotóxicos. Que haja incorporação na avaliação de riscos da CTNBio os testes necessários para se realizar a análise dos impactos e efeitos adversos para o meio ambiente e à saúde do uso de agrotóxicos associados aos transgênicos e se aprove a Política Nacional de Redução de Agrotóxicos como Lei Federal.

Biopirataria

Quanto à biopirataria, o Brasil também enfrenta quadros preocupantes. A conservação da sociobiodiversidade depende da garantia do livre uso dos nossos territórios e da gestão autônoma dos sistemas tradicionais de conhecimento pelos povos indígenas, comunidades tradicionais e camponeses.

Entretanto, indiferente do disposto na Convenção da Diversidade Biológica e no Protocolo de Nagoya, a Lei brasileira 13.123/2015 ao qual versa sobre acesso e repartição de benefícios, denominada Lei da Biodiversidade, mas para os movimentos, organizações e redes como Lei da Biopirataria, apesar de alguns avanços textuais, viola direitos básicos de consulta livre prévia e informada e facilita, com vestes de legalidade, o processo histórico de biopirataria, pois não garante a rastreabilidade do acesso ao patrimônio genético e conhecimentos tradicionais e não promove um modelo de repartição de benefícios estabelecido, que esteja em conformidade com os anseios das populações campesinas, povos e comunidades tradicionais.

No âmbito do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), o qual conta com vinte conselheiros, apenas três conselheiros são detentores do patrimônio genético e de conhecimento tradicional, havendo uma série de dificuldades na garantia de direitos e no combate à biopirataria. A forte incidência das empresas e do agronegócio visa acessar os conhecimentos tradicionais, com atropelo às posições, tempos e direitos da representação da agricultura familiar, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais no CGEN. A imposição de sigilo sobre os processos/pedidos para acesso ao conhecimento tradicional associado acaba alijando esses representantes de assessoria técnica e jurídica, especialmente quando não contam com condições adequadas de trabalho e estando sob restrição ao debate com seus pares.

Todos esses mecanismos ampliam a desigualdade e facilitam a biopirataria e a expropriação do conhecimento tradicional associado à biodiversidade.

Posição dos movimentos sociais e organizações socioambientalistas

Diversos atores sociais brasileiros denunciaram, ainda na COP 14, um conjunto de riscos aos compromissos assumidos pelo Brasil para proteção da biodiversidade, das florestas, dos territórios indígenas e tradicionais. Alertando sobre a intensificação de “ameaças explícitas à biodiversidade brasileira e à política ambiental” pela estreita aproximação, no último período, da gestão pública com os interesses do mercado, em sobreposição à preservação do meio ambiente e garantia de direitos dos povos tradicionais.

Além, dos ataques à democracia, Bolsonaro representou, nestes quatro anos, ofensivas brutais à biodiversidade brasileira e à política ambiental, tais como: a exploração dos recursos naturais da Amazônia em parceria ou diretamente pelos setores privados; a recusa à demarcação de terras indígenas, à titulação de territórios de comunidades quilombolas e tradicionais; a negação da reforma agrária; a liberação massiva de agrotóxicos, dentre outras medidas em favor do avanço da fronteira agrícola e da indústria extrativista.

Lula enfrenta um país arraso, com um rombo orçamentário, ataques antidemocráticos e centenas de atos e contratos que enfraqueceram a sociobiodiversidade. Retomar as políticas sociais, ambientais, econômicas e culturais não será tarefa fácil.

Se já havia a indicação de que os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030 e as Metas da Biodiversidade 2020 (Metas de Aichi) poderiam fracassar se não houvesse freio aos retrocessos que se desenhava no Brasil, agravados por descaso e omissões em acordos multilaterais, de fato, o que ocorreu nestes quatro anos de mandato no Executivo federal foi um extremo ataque à biodiversidade brasileira e à soberania dos territórios tradicionais.

Para a COP 15 centenas de organizações da sociedade civil, em carta aberta, denunciam que vivenciam, nestes últimos anos “uma escalada de violência, morte e supressão dos povos tradicionais e da natureza. Os últimos quatro anos foram os mais trágicos da história brasileira, culminando em uma crise social, política, econômica, sanitária e ecológica que afetou sobretudo os mais empobrecidos. Lutamos ativamente contra o retrocesso, tentando frear a “boiada” que assolou a sociobiodiversidade brasileira”.[MM7] 

A sociedade civil também afirma que há esperança com a eleição de Luís Inácio Lula da Silva e que “este novo capítulo nos permite olhar com esperança para o futuro do país. Mas para reconstruir, é preciso medidas urgentes de combate à fome, à pobreza e em defesa da sociobiodiversidade. É preciso garantir os direitos dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, dos camponeses e dos agricultores familiares, especialmente à terra, ao território e aos mares”.

Lula enfrenta um país arrasado, com um rombo orçamentário, ataques antidemocráticos e centenas de atos e contratos que enfraqueceram a sociobiodiversidade. Retomar as políticas sociais, ambientais, econômicas e culturais não será tarefa fácil.

No entanto, ainda é a equipe de Jair Bolsonaro que comanda as negociações na COP 15 em Montreal, de forma que não é possível esperar posições firmes e avançadas da delegação brasileira oficial.

Deste modo, os desafios são vários. Os movimentos, organizações, redes, povos das águas, campo e florestas lutam e propõe, que ao ver o futuro nos caminhos da COP 15, haja primordialmente transparência e participação popular e democrática no processo de tomada de decisões que afetam seriamente o futuro mundial, especialmente da agricultura e proteção da biodiversidade. Se o governo brasileiro nega tais direitos, cabe a voz ativa social reverberar denúncias e alertas internacionais nestes espaços.