Cresce o foco em sistemas alimentares baseados em combustíveis fósseis

Há um ano, o artigo do The Guardian sobre a Conferência do Clima em Glasgow perguntava: “Por que ninguém fala sobre agricultura na COP26?”. Um relatório publicado em setembro mostra que até agora só três por cento do financiamento público do clima chegaram até os setores agrícola e alimentar[1]

 
Colheita com máquina agrícola em uma plantação de monocultura

Além da nova edição do dia oficial da adaptação à mudança do clima e à agricultura no dia 12 de novembro, teremos neste ano pela primeira vez um pavilhão oficial dedicado à alimentação e à agricultura, erguido, entre outros, pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, FAO. A importância do setor agrícola e alimentar para a contenção da e adaptação à crise climática tornou-se cada vez mais evidente, mas nem sempre acompanhada de resultados sustentáveis.

De acordo com um estudo científico publicado em 2021, em 2015 o sistema alimentar global era responsável por 34% das emissões de gases de efeito estufa[2]. E o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) parte da premissa que a participação do sistema alimentar nas emissões totais seja de 21 a 27 por cento[3]. Cerca de dois terços delas resultam da agricultura e pecuária, assim como do uso do solo como, por exemplo, por meio de desmatamento florestal para a lavoura ou para pastos. A isso somam-se os processos anteriores e posteriores, como: produção de combustíveis, processamento industrial, embalagem, transporte e gestão de detritos. Ao mesmo tempo, a agricultura global está sendo atingida de maneira particularmente severa pelas consequências da crise climática, como secas e enchentes.

Com razão, a pecuária (industrial) há muito tempo está no centro do debate em torno da contribuição da agropecuária para a crise climática. Um cálculo feito pela Agência Federal Ambiental alemã mostra que, em 2021, 66% das emissões oriundas da agropecuária e quase 5% do total de emissões na Alemanha se devem diretamente à pecuária. Elas são as principais responsáveis pelas emissões de metano resultantes da fermentação provocada pela digestão de ruminantes, principalmente bovinos. Além disso, o armazenamento e a distribuição de fertilizantes naturais liberam gás hilariante. Ao mesmo tempo em que a criação de animais com estrutura rural permite que os pastos também exerçam a função de coletor de carbono, as maiores emissoras da Alemanha e também globalmente são justamente as multinacionais de carne e leite: em 2020, as 20 maiores multinacionais de carne e leite europeias produziram mais toneladas de equivalentes CO2 que as produzidas pela gigante petrolífera ENI (e quase a metade das emissões de gases de efeito estufa das três multinacionais do petróleo que mais prejudicam o clima: BP, Schell e ExxonMobil). [4]

Fertilizantes nitrogenados como destruidores do clima e potenciadores da crise

Há um segundo acelerador da crise climática oriundo do setor agrícola que até então praticamente não foi discutido: fertilizantes nitrogenados sintéticos. Apesar de fertilizantes nitrogenados – diferentemente de fertilizantes fosfatados e de potássio – serem os que mais facilmente podem ser substituídos por meio do uso de leguminosas que fixam o nitrato, eles representam a maior parte dos fertilizantes usados em todo o mundo. Há aqui problemas graves: em primeiro lugar, o fato de que os excessos de nitrato a longo prazo resultam em danos ao solo e à água [5] Em segundo, os fertilizantes sintéticos são verdadeiros destruidores do clima: um estudo atual[6] revelou que só em 2018 a cadeia de valor agregado de fertilizantes nitrogenados foi responsável por 1,25 gigatoneladas de equivalentes CO2, ou seja, 2,1 por cento das emissões de gases de efeito estufa. Isso é mais do que a parcela emitida pelo tráfego aéreo global no mesmo ano. Destes, quase 39 por cento correspondem à produção, e quase 59 por cento às emissões de gás hilariante que se formam quando o nitrato não absorvido pelas plantas escapa para a atmosfera. Sendo que o gás hilariante é um gás de efeito estufa que causa cerca de 300 vezes mais danos ao clima. A produção de fertilizantes nitrogenados sintéticos produz emissões intensas porque o processo de síntese do amoníaco que forma a base destes fertilizantes – a assim chamada síntese de Haber-Bosch – tem de ser feito sob temperaturas e pressão extremamente altas. Isso faz com que nenhuma outra reação química gaste tanta energia – três a cinco por cento da produção global de gás natural são usados somente para a síntese de amoníaco. Uma ordem de grandeza exorbitante, não só diante das possíveis alternativas e da atual escassez de gás para necessidades existenciais como calor.

Um relatório publicado pelo Center for International Environmental Law (CIEL) em outubro sobre a conexão entre a indústria fóssil e a de fertilizantes[7] mostra como a indústria de fertilizantes reage a críticas aos danos causados ao clima diante desse pano de fundo, apresentando-se como sendo ela própria a personagem principal da transformação sustentável e que até lucra com a crise climática: isso significa que cada vez mais produtores de fertilizantes tentam aceder a subsídios para a captura e armazenamento de carbono. Como é necessário ter hidrogênio para a síntese do amoníaco, a obtenção de hidrogênio a partir de gás ou carvão realmente captura CO2. Se, por um lado, isso captura uma pequena parte de dióxido de carbono, em seguida reutilizada para a produção de ureia (fertilizante nitrogenado), por outro, o CO2 é liberado novamente quando a ureia se decompõe durante a aplicação em solos agrícolas. Mesmo assim, empresas de fertilizantes como CF e Yara atualmente estão instalando diversos locais de produção de hidrogênio com base em energia fóssil, porém com a ajuda de métodos CCS (“hidrogênio azul”) como base para o “amoníaco azul”. Essas iniciativas evidenciam a estreita relação entre a indústria de fertilizantes e a indústria fóssil e mostram os caminhos criativos de ambas as indústrias para se manter, apesar da crítica legítima e fundamental às medidas de greenwashing.

E, além dos danos causados ao meio ambiente e ao clima por fertilizantes nitrogenados sintéticos, um terceiro problema acaba de se revelar nitidamente: a dependência de fontes de energia fóssil para a produção de fertilizantes, a começar pelo gás natural, empurra os preços dos fertilizantes e, consequentemente, os dos alimentos enormemente para cima. Em um estudo de Dr. Gideon Tups[8] publicado pela INKOTA, o papel dos fertilizantes sintéticos na crise energética e alimentar nitidamente agravada pela guerra de agressão russa é evidenciado em detalhe. Dessa forma, estudos mostram que a duplicação dos preços dos fertilizantes levam a um aumento de, em média, 44 por cento nos preços dos alimentos. Quem sofre com essa crise de preços são principalmente os/as pequenos/as camponeses/as no continente africano que, por meio de diversos “programas educacionais” público-privados, nas últimas duas décadas se tornaram cada vez mais dependentes de sementes, pesticidas e, em especial, fertilizantes nitrogenados. Quando justamente esses/as camponeses/as não conseguem mais pagar os preços maiores, e também não têm como mudar para medidas agroecológicas de um dia para o outro, obviamente estarão ameaçados/as por perdas na colheita que contribuirão para a insegurança alimentar.

Mudanças estruturais se tornam necessárias

Responder à dramática crise alimentar global apoiando novamente a produção e a utilização de fertilizantes nitrogenados com subsídios não pode ser uma solução para o combate à crise climática, nem contribuir para um sistema alimentar resistente a crises. Em vez disso, as medidas de curto prazo deveriam, de um lado, focar a rápida redução do efetivo pecuário nos países com pecuária industrial, para assim liberar os cereais que alimentariam os animais para o consumo humano. Nesse caso, é claro que os/as camponeses/as do setor pecuário têm de receber apoio adequado para não acelerar a mortandade nas propriedades rurais. De outro lado, a produção e a distribuição – se possível, mais barata – de fertilizantes orgânicos (p.ex., obtidos de restos de plantas) deveria ser promovida seletivamente. Citando como exemplo: o governo senegalês já está reservando dez por cento do orçamento para fertilizantes para o fomento de biofertilizantes. Ambas as medidas favorecem tanto o clima quanto a segurança alimentar.

A médio e curto prazo, todos os caminhos passarão por uma transformação estrutural completa do sistema alimentar com foco na agroecologia. Concretamente isso significaria mais ou menos o seguinte: sistemas agrícolas que apostam no cultivo diversificado de leguminosas, aumentando a fertilidade do solo com sequências inteligentes de frutos e utilização de leguminosas, tornariam supérflua a utilização de fertilizantes sintéticos e pesticidas químicos, e eventualmente ainda poderiam combinar isso com árvores que dão sombra e armazenam carbono (os assim chamados sistemas agroflorestais).

Em vista das dúvidas referentes à segurança alimentar, um modelo do Instituto de Desenvolvimento Sustentável e Relações Internacionais (IDDRI) francês para a introdução da agroecologia na Europa, que mostra que, apesar de uma redução de até 35 por cento da produção total (em comparação com 2010), a demanda de alimentos dos europeus poderia ser atendida por meio de uma alimentação mais baseada em plantas e a total eliminação de combustíveis agrícolas[9]. Com a agricultura orientada por esse viés, as emissões de gases de efeito estufa poderiam ser reduzidas em 40 por cento em 2050 em comparação com 2010.

Tendo em vista a COP27, a Aliança para a Soberania Alimentar na África (AFSA) também apela aos/às negociadores/as para que priorizem a agroecologia com estratégia de adaptação, incluam pequenos/as camponeses/as (africanas) no debate e direcionem financiamento climático para projetos agroecológicos[10]. Mas, ao invés disso, a agenda do dia oficial da agricultura na COP27 propõe soluções apenas aparentes, como agricultura de baixo carbono ou a assim chamada agricultura climaticamente inteligente, na qual muitas vezes o preparo do solo sem aragem é acompanhado da aplicação de herbicidas como o Glifosato em grandes áreas. Por isso, os decisores/as deveriam ver essas sugestões com ceticismo e se empenhar na realização de um debate crítico e com participação de perspectivas e atores/as do Sul global.