A emergência da propaganda em rede e o Brasil em risco democrático

I.

Depois de 2018, poucos analistas seguiram perguntando quando seria a primeira “eleição da internet” no Brasil. Durante duas décadas de internet comercial no país essa era sempre uma pergunta feita na véspera dos pleitos, especialmente após as campanhas digitais de Barack Obama, nos Estados Unidos, na década de 2000. Assim, foi a eleição de um candidato a presidente sem os ativos típicos de vitoriosos apontados pela ciência política que escancarou transformações na forma como eleições são disputadas e vencidas.

Jornadas de junho - manifestações de 2013, Brasilia.

O esforço por decifrar a eleição de Jair Bolsonaro e de sua teia de apoiadores em 2018 é cercado de investigações e suposições sobre seu uso de plataformas de internet. Se os expoentes desse campo político não tinham acesso a recursos, mídias e máquinas tradicionais de campanha, as tecnologias digitais aparecem na base do seu desenvolvimento. A eleição da onda digital bolsonarista inovou em forma e conteúdo.

A forma de campanha digital que demonstrou força em 2018 foi a propaganda em rede. Pensar em propaganda em rede significa pensar a busca pelo voto a partir da construção de uma infraestrutura descentralizada de múltiplos componentes, de militantes a empresários, de rádios locais a grupos de WhatsApp. Os disparos em massa só frutificaram a partir de um construto com gente disposta a passar o conteúdo adiante, num exemplo de inovação sociotécnica. Ao buscar parcerias com influenciadores, canais de podcast e a linguagem dos “reacts”, as campanhas de 2022 já devem ter entendido que construir essa infraestrutura é tão importante quanto os palanques estaduais ou o tempo de TV.

O ex-capitão e sua família são nós na rede assim como seus distantes apoiadores, mas guardam uma posição privilegiada. Têm o poder de sinalizar, energizar, disciplinar de maneira especial (lembrando que também recebem sinais e disciplina do restante de sua rede). Porém, nas dobradiças da forma e conteúdo são muitas vezes síntese da própria mensagem.

No conteúdo, a marca foi a miríade de ressentimento, violência e moralismo, temperado nas cores nacionais. Ainda, como visto nos anos que se sucederam, o fortalecimento deste campo político também se construiu em contraposição ao formato centralizado dos meios de comunicação de massa, fomentando a desconfiança aos protocolos do jornalismo profissionalizado ou a outros intermediários especializados, como as universidades. O traço mais marcante da campanha que nunca terminou é o constante estado de “guerra” contra o pacto de 1988, incluindo seus sócios, suas instituições e os projetos populares que fermentaram neste ambiente constitucional. Assim, a “propaganda” em rede desse campo político não tem o mesmo significado de “propaganda” para os demais. Ela é “propaganda” num sentido menos corriqueiro e mais próximo do utilizado pelo filósofo Jacques Ellul quando este descreveu os militarescos esforços de técnicas psicológicas de influência na opinião pública das potências na Guerra Fria. Neste contexto, a comunicação é a arma dessa “guerra”. Para funcionar, segundo Ellul, a propaganda deve ser “total”.

II.

Na rebelião contra o pacto de 1988, a infraestrutura de propaganda em rede não se desfez com a eleição de Jair Bolsonaro e de seu front. Para analistas, ela continuou a pulsar como campanha eleitoral. Entendendo de um outro jeito, ela continuou a bombear contra os seus inimigos, mas em outro contexto.

Passado o pleito, as linhas de frente de defesa da Nova República passaram a ser ocupadas por instituições, seus prepostos e pela sociedade civil. Assim, a partir de 2019, a rede de propaganda total investiu contra eles, tratando de travar as batalhas comunicacionais contra seus inimigos usuais na cultura e em causas sociais, fundamentais para recrutar mais ressentidos e energizar diferentes elementos de sua coalizão, como os de matiz religiosa ou moral.

Ao ocuparem posições chave no arranjo de poder construído pelo pacto atacado, as cúpulas de poderes que rivalizavam com o Executivo rebelde emergiram como potenciais inimigos. Nos dois primeiros anos, os presidentes da Câmara e do Senado revezaram-se no lugar de alvos preferidos; durante os quatro, ministros do Supremo Tribunal Federal estiveram frequentemente na mira. Começava a ficar cristalino que a normalidade institucional estava ameaçada, ao menos na aparência, a partir de ameaças e incitações praticadas e fustigadas pela extrema direita. Chegavam nos trending topics e nas caixas de mensagens, memes, piadas, ameaças de morte e ataques a familiares. Umas legítimas, outras periclitantes.

A reação institucional à rebelião informacional viria num esforço múltiplo. Por um lado, a já atacada imprensa profissional não descansou em enquadrar os antidemocráticos, destinando-lhes tanto vexame quanto oxigênio. Por outro, as instituições procuraram nas suas competências armas para o enfrentamento: os inquéritos e o projeto de lei “das fake news”.

No plano judicial, os heterodoxos inquéritos “de fake news”, “milícias digitais” ou “atos antidemocráticos” foram a principal trincheira, um tratamento de choque na infraestrutura de propaganda em rede do bolsonarismo. Como cirurgias invasivas no Estado Democrático de Direito, foram remédio amargo e debilitante para as liberdades civis. Seus problemas procedimentais e de origem expuseram o Supremo como ponta-de-lança desguarnecido e por vezes contraditório. Entre as principais causas do movimento arriscado está a omissão celerada do Procurador Geral da República, que declinou de seus deveres de fiscal de atividade criminosa em face das instituições democráticas.

Em ritos acelerados em meio à pandemia, a liderança do Congresso também reagiu. Primeiro, uma Comissão Parlamentar de Inquérito, depois, o início a mais ambiciosa empreitada de regulação da internet no Brasil desde o Marco Civil da Internet. Na combinação de forças entre o establishment atacado e a esquerda derrotada em 2018 nasce o PL “das Fake News”. A crença era que regulando de múltiplas formas os intermediários digitais da propaganda em rede seria possível reduzir o poder de fogo da propaganda, em especial nas suas faces fraudulenta, como no uso de robôs. A versão aprovada a jato pelo Senado trazia a vigilância como método, em especial na proposta de retenção de registros sobre todas as mensagens trocadas no WhatsApp no país.

Entretanto, os fatos que sucederam abriram brechas de disputa neste processo legislativo. Seu caráter hermético e a difícil avaliação de pertinência e risco de suas soluções chamou à baila uma série de organizações da sociedade civil, muitas delas concentradas na Coalizão Direitos na Rede. Ainda, as oportunidades para criar embates econômicos com os gigantes da internet também invocou a atenção de grandes conglomerados de mídia e agências de publicidade. A partir do esforço de todos os interessados, o projeto de lei avançou para abarcar propostas consensuais e polêmicas. Positivamente, avança na crucial transparência das plataformas e cria obrigações para agentes públicos que as utilizam; perigosamente, blinda parlamentares que descumprirem os termos de uso dessas empresas e traz o debate sobre remuneração de conteúdo jornalístico na internet de modo simplista.

As grandes plataformas apostaram na mudança de liderança na Câmara para engavetar o processo, mas não obtiveram sucesso. Em 2021 e 2022, saíram em agonia para amainar os trechos que mais inviabilizaram seus modelos de negócio. Tiveram êxito quando seus interesses eventualmente coincidiram com o contraste entre a desarticulação da esquerda e do centro e a articulação do Executivo na matéria.

III.

Esta aliança, no entanto, foi eventual. Seis meses antes de uma vitória conjunta contra o PL das Fake News no plenário da Câmara, Bolsonaro e as plataformas de internet se enfrentaram nas vésperas do conflagrado 7 de setembro de 2021. Na véspera do feriado repleto de manifestações golpistas, o presidente editou uma Medida Provisória para limitar os poderes das empresas em moderar conteúdos de seus usuários. Para retirar qualquer conteúdo seria necessária uma “justa causa” definida em lista governamental, o que causou imediata revolta por impedir a imediata remoção de conteúdos como a desinformação sobre a vacina da Covid-19. Nesse momento, as plataformas e a sociedade civil correram juntas ao Supremo e ao Congresso para atacar a proposta, culminando em um duplo não à iniciativa de Bolsonaro, vindo dessas duas instituições.

O caso evidenciou a centralidade que as plataformas de internet, a arquitetura de seus produtos e suas atividades de moderação de conteúdo têm nesse cenário de disputa aguerrida. Por arquitetura de produtos entende-se como que cada serviço de mídia social é organizado em termos de design e de aplicação de espaços para interação de usuários e automatização. Já a moderação de conteúdo é a elaboração e aplicação de regras privadas sobre o que é produzido por usuários. Assim, mudanças na arquitetura (como o aumento de limite de membros em grupos no WhatsApp) ou na moderação de conteúdo (como a limitação de remoção de conteúdo emitido por algum grupo político) são objetos de discórdia entre vários lados dessa história.

Do ponto de vista do campo bolsonarista, busca-se a expansão das capacidades de distribuição de sua propaganda que, por muitas vezes, caminha pelas raias do discurso violento e desinformativo, este frequentemente em conflito com a moderação realizada pelas plataformas. De outro lado, a sociedade civil preocupa-se com a defesa dos direitos de usuários das redes de se informar sobre decisões que impactam sua expressão, bem como na expansão da transparência sobre como os serviços e regras privadas podem impactar direitos humanos.

Do ponto de vista do campo bolsonarista, busca-se a expansão das capacidades de distribuição de sua propaganda que, por muitas vezes, caminha pelas raias do discurso violento e desinformativo, este frequentemente em conflito com a moderação realizada pelas plataformas. De outro lado, a sociedade civil preocupa-se com a defesa dos direitos de usuários das redes de se informar sobre decisões que impactam sua expressão, bem como na expansão da transparência sobre como os serviços e regras privadas podem impactar direitos humanos. E não é só isso; outros grupos políticos pressionam as plataformas continuamente por uma série de questões (como mais ou menos remoção neste ou naquele ponto).

Ao se tornar um projeto de lei de regulação de plataformas de internet, o PL “das fake news” passou a abrigar esse grande fogo cruzado, contemplando duas camadas que operam por lógicas diferentes. Uma delas a da guerra da propaganda política, que vê nessa e em outras frentes regulatórias uma ameaça ou uma oportunidade para o controle do campo inimigo ou a diminuição de restrições sobre si. Outra, a camada da discussão sobre uma regulação que promova direitos, discutindo a legitimidade e o poder de enormes empresas movidas a conteúdo gerado por terceiros que a todo dia impactam direitos e princípios fundamentais. O que atores deste jogo defendem podem ter justificativas diferentes em cada camada - ou simplesmente ter a ver com apenas uma delas.

Por fim, entre as inúmeras questões sistêmicas e individuais no funcionamento global e industrial desses sistemas, um se sobressai no caso brasileiro ao atravessar ambas as camadas ao mesmo tempo. Qual será a reação da política democrática à tutela jurídica e ao jogo de interesses econômicos que estão envolvidos no tratamento de uma poderosa infraestrutura multiplataforma de propaganda antidemocrática em rede que caminha para deslegitimar a higidez do processo eleitoral no Brasil?


Este artigo faz parte da publicação “A democracia aceita os termos e condições? Eleições 2022 e a política com os algoritmos”, disponível para download gratuitamente aqui.