Disputas e desafios do modelo agrário brasileiro: quando novos instrumentos reforçam velhas desigualdades

Os últimos anos foram marcados pelo retorno da fome no país, os índices crescentes de insegurança alimentar da população, a liberação de novos agrotóxicos, a intensificação do desmatamento em nossos biomas e os desmontes institucionais de legislações, programas e políticas públicas. Todos estes foram temas que ocuparam os noticiários e a agenda política no campo agrário e agroalimentar. Se, por um lado, são nítidas ainda hoje as marcas da história no Brasil rural, por outro, como se (re) configuram na atualidade as disputas e os desafios deste modelo agrário e agroalimentar?

Pensando nisso, após três webdossiês que analisaram o desmonte da legislação socioambiental no Brasil a partir de 2016, a Fundação Heinrich Böll lança em parceria com o Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA) e o Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (Gemap), vinculados à Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, o webdossiê “Disputas e desafios do modelo agrário brasileiro: Quando novos instrumentos reforçam velhas desigualdades”. A publicação é composta por uma série de quatro artigos que analisam a fundo as temáticas da regularização fundiária, da financeirização da agricultura, do desmonte de políticas públicas para a agricultura e das desigualdades fundiárias, sob uma abordagem interseccional. Os artigos foram elaborados entre 2021 e 2022 por uma equipe de pesquisadoras e pesquisadores que nos últimos anos vem refletindo sobre os temas aqui apresentados.

Este dossiê busca observar aspectos sociais e ambientais a partir da lente do mundo agrário e do rural brasileiro. As publicações captam mudanças recentes no cenário agroalimentar e agroambiental, apontando tendências como a consolidação da regularização fundiária como pauta do setor do agronegócio que, na prática, regulariza terras historicamente griladas. Como consequência, médios e grandes proprietários que ocupam terras públicas são beneficiados por estas facilidades na regularização. Os impactos podem ser percebidos através do aprofundamento das desigualdades fundiárias, com nítidos recortes interseccionais: custos - econômicos, sociais e ambientais - são sentidos pelos grupos sociais mais vulnerabilizados e empobrecidos, ou seja, as populações negras, em especial as mulheres negras e indígenas. Elas têm menos direitos de acesso à terra e mais responsabilidades. Dados sistematizados e apresentados neste webdossiê também indicam que as novas dinâmicas de financeirização da vida, da economia e da política evidenciadas no século XXI promovem a expansão de um já poderoso setor do agronegócio e da mineração em associação com novos atores financeiros dominantes, a exemplo dos fundos de pensão e de investimentos; aprofundando, assim, as desigualdades dos mercados fundiários e as condições de acesso à terra. Além do aumento de poder do capital financeiro nas cadeias de commodities e no mercado de direitos sobre a terra, apresentam a arquitetura dos desmontes ocorridos em políticas públicas entre 2016 aos dias atuais, com a perda das capacidades estatais na agenda agrária e alimentar, como no caso apresentado do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Lançamos este dossiê, pois acreditamos que os temas abordados tocam em questões centrais para o Brasil nos próximos anos. Convidamos você para a leitura deste material, que compila dados e análises de forma a contribuir com o debate público sobre estratégias e políticas que revertam os retrocessos sofridos nos últimos anos. Acreditamos que publicações como esta contribuem para a divulgação do conhecimento e para processos de reconstrução de políticas e ações públicas orientadas para a realização da justiça social, ambiental e alimentar, a partir de caminhos que incorporem, inclusive, novos desafios resultantes dos processos gestados ou intensificados nos últimos anos.

Annette von Schönfeld e Emilia Jomalinis