Um passo atrás: a relevância do combate aos ilícitos de dados nas eleições

Um passo atrás: a relevância do combate aos ilícitos de dados nas eleições

1. DESINFORMAÇÃO, ECOSSISTEMA INFORMACIONAL E DISPAROS EM MASSA

Desde o escândalo Cambridge Analytica em 2018, as relações entre proteção de dados pessoais, processos eleitorais e democracia passaram a ser vistas com mais ênfase, cuidado e atenção.1 A possibilidade de extração de uma vasta quantidade de dados pessoais para construção de perfil psicométricos com alta capacidade preditiva, e possibilidade concreta de influência na escolha de um candidato a partir de técnicas de propaganda e modulação comportamental, trouxe um conjunto novo de preocupações, como a possibilidade de um partido apresentar “narrativas distintas” a partir da modulação por micro-targeting ou a extração ilícita de dados pessoais para “inferência de preferências políticas e sensíveis”2.

No Brasil, já se discutia, há quatro anos, que o Facebook não teria um papel central a desempenhar nas eleições, considerando a força monumental do Whatsapp e outras plataformas de comunicação. Os hábitos de uso de Internet e condições sociais dos brasileiros configuraram cenário distinto. Ao analisar a estratégia de campanha de Bolsonaro em 2018, Rafael Evangelista e Fernanda Bruno argumentaram que o atual presidente mobilizou uma “estratégia de comunicação específica”3, baseada no uso intenso de redes sociais, de grandes grupos de Whatsapp, de micro-targeting e desinformação para atingir diferentes grupos e uma combinação nem sempre coordenada com usos de múltiplas plataformas. Francisco Brito Cruz e Mariana Valente também ressaltaram a característica descentralizada de desinformação, que combina elementos de trabalho de comunicação profissionalizado (como produção de memes e vídeos e disparos automáticos de mensagens) e um conjunto amplo de “repassadores de conteúdos”4.

O “populismo digital”5 de Jair Bolsonaro tem se alimentado de um intenso uso do Whatsapp, da multiplicidade de grupos em operação e das relações desse com um “ambiente de mídia mais amplo”, como Facebook, Twitter, YouTube, Telegram e outras plataformas, como argumenta Letícia Cesarino. Tal populismo se alimenta, ainda, de um “ambiente entrópico” da própria Internet, na qual imagens, slogans e jargões circulam rápido, sem referência à fonte original, de forma ambígua e com eficácia performativa. O Whatsapp se tornou, assim, plataforma adequada para impossibilidade de discernimento entre “ironia e sinceridade, piada e conteúdo sério, conteúdo autêntico ou falso”6. Instrumento poderoso. Paradoxalmente, as regras eleitorais sobre “impulsionamento” de conteúdo eleitoral em 2018 foram construídas para plataformas como Facebook e ignoraram o papel desempenhado pelo Whatsapp, não obstante o alerta de pesquisadores.7

Uma das agendas de contenção da desinformação e da propaganda eleitoral irregular é a limitação do uso de bases de dados para disparo automático de mensagens e a combinação das regras da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018) com as normas sobre propaganda eleitoral. A premissa por trás dessa agenda é simples: é possível cortar pela raiz o mal da economia política da desinformação, durante o período eleitoral, por meio de uma atuação incisiva da Justiça Eleitoral na licitude no uso de dados pessoais. Para tanto, é preciso aprender com erros do passado.

2. AS LIÇÕES DE 2018

Em outubro de 2018, Patrícia Campos Mello revelou a operação de empresas de disparos automáticos de mensagens (Quickmobile, Yacows, Croc Services e SMS Market) que ofereciam serviços para mobilizar eleitores pelo Whatsapp. Por trás da engrenagem de desinformação, estava a utilização ilícita de bases de dados. Suspeitou-se, na época, que empresários como Luciano Hang, da empresa Havan, estariam alocando recursos nessas empresas para promover disparos automáticos de mensagens contrárias ao Partidos dos Trabalhadores.8

Na época, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) fez uma representação perante o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) para que ocorresse a abertura de inquérito civil e investigação sobre as violações dos direitos fundamentais dos consumidores. Dentre os pedidos, estavam o recebimento da representação, a abertura de inquérito com “oportunidade de participação de entidades civis especializadas e jornalistas que cobrem o setor de eleições e tecnologia”, a oitiva de representantes de empresas e ampla divulgação da abertura do inquérito civil e colaboração com outros órgãos de investigação.9 A representação mostrou-se infrutífera. Na época, a LGPD não estava em vigor. Tampouco existiam regras específicas de proibição do disparo   automático de mensagens, como ocorre atualmente com a Resolução n. 23.671/2021 do TSE.

Em fevereiro de 2020, em depoimento para a CPI das Fake News no Congresso Nacional, Hans River do Nascimento, ex-funcionário da empresa Yacows, admitiu que a empresa utilizou milhares de CPFs, sem consentimento dos titulares, para habilitação de chips de telefones celulares, que eram utilizados para disparos de mensagens.10

3. AS OPORTUNIDADES DE 2022

Após longo trabalho de incidência feito por organizações da sociedade civil, como InternetLab e Data Privacy Brasil, que defenderam um “regime de proteção de dados atento às especificidades do processo eleitoral”11, o Tribunal Superior Eleitoral atualizou as normas sobre propaganda eleitoral na Internet. Sob condução do ministro Edson Fachin, o TSE realizou audiências públicas para aprimorar as normas que regem as Eleições Gerais de 2022, formulando regras claras sobre a vedação de “doação ou cessão de dados pessoais” em favor de candidatos, partidos políticos, federações ou coligações, a obrigatoriedade de identificação completa do remetente de mensagens instantâneas, o direito de solicitação de descadastramento e eliminação dos dados pessoais, bem como o ilícito de “disparo em massa” sem consentimento por meio de serviços de mensagem ou provedor de aplicação na internet.

Tais normas dialogaram com as preocupações da sociedade civil, em especial: (i) a definição de competência da Justiça Eleitoral para aplicação da LGPD em atividades realizadas por candidatos e partidos,(ii) a criação de instâncias de cooperação entre Justiça Eleitoral e Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, (iii) a reformulação das normas sobre bases legais de tratamento de dados em processos eleitorais, (iv) a afirmação explícita de direitos dos titulares mediante propagandas eleitorais, (v) a aplicação do princípio da transparência, (vi) o redesenho do sistema de prestação de contas nas atividades de tratamento de dados nas campanhas, (vii) a obrigatoriedade de partidos possuírem programa de governança de dados e (viii) regras específicas sobre a indicação de encarregado.

Se o mesmo cenário denunciado por Patrícia Campos Mello em 2018 ocorresse hoje, a situação seria muito distinta. Primeiro, pois há o reconhecimento do direito constitucional à proteção de dados pessoais,12 atualmente previsto no art. 5º da Constituição Federal. Segundo, pois a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais está em vigor há dois anos, sendo internalizada em diversas resoluções do TSE, criando pontes entre os regimes jurídicos.13 Terceiro, pois os disparos automáticos de mensagens seriam imediatamente identificados como ilícitos eleitorais, nos termos do direito eleitoral. Quarto, pois há uma clara definição de competência da Justiça Eleitoral para analisar ilícitos de dados pessoais em contextos eleitorais. Cabe ao Ministério Público Eleitoral agir com tutelas de urgência para que o Judiciário possa determinar a eliminação dos ilícitos eleitorais.

A engrenagem dos disparos em massa consiste em obter amplas bases de dados de empresas por meio de data brokers e vazamentos por funcionários de grandes empresas, criar soluções em software para gestão de grupos de Whatsapp e Telegram, e venda de disparos pela quantidade de pessoas atingidas. Tais condutas são proibidas pelo direito. Agir em ato contrário ao direito implica em transgredir as normas, o que exige ação enérgica, ágil e eficaz da Justiça Eleitoral. Se avançarmos nesse ponto e fazermos as regras construídas democraticamente valerem nessas eleições teremos uma vitória coletiva. Evidentemente que isso não soluciona os problemas maiores da desinformação e do discurso de ódio. Porém, auxilia em processos comunicacionais íntegros e na contenção de mercados paralelos, baseados em usos ilegais de dados pessoais, que corrompem o processo democrático.

  1. BENNETT, Colin J.; LYON, David. Data-driven elections: implications and challenges for democratic societies. Internet Policy Review, v. 8, n. 4, 2019.
  1. BORGESIUS, Frederik Z. et al. Online Political Microtargeting: promises and threats for democracy, Utrecht Law Review, v. 14, 1, 2018, p. 87.
  1. EVANGELISTA, Rafael; BRUNO, Fernanda. WhatsApp and political instability in Brazil: targeted messages and political radicalisation. Internet Policy Review, v. 8, n. 4, p. 1-23, 2019.
  1. BRITO CRUZ, Francisco; VALENTE, Mariana. É hora de se debruçar sobre a propaganda em rede de Bolsonaro, El País, 18 de outubro de 2018.
  1. CESARINO, Letícia. Como vencer uma eleição sem sair de casa: a ascensão do populismo digital no Brasil, Internet & Sociedade, v. 1, n. 1, 2020, p. 91-120.
  1. CESARINO, Letícia. How social media affords populist politics: remarks on liminaritty based on the Brazilian case, Trabalho Linguístico Aplicado, Campinas, n. 59, v. 1, jan- abril, 2020, p. 420.
  1. SOLANO, Esther; BRITO CRUZ, Francisco; MARTINS, Helena; BRANT, João; VALENTE, Mariana; ZANATTA, Rafael. Secretos y mentiras: WhatsApp y las redes sociales en las eleciones presidenciales de Brasil en 2018, Centro de Estudios en Libertad de Expresión y Acceso a la Información, Universidade de Palermo, Mayo, 2019.
  1. BRITO CRUZ, Francisco; VALENTE, Mariana. É hora de se debruçar sobre a propaganda em rede de Bolsonaro, El País, 18 de outubro de 2018.
  1. IDEC, Representação para abertura de Inquérito Civil Público, São Paulo: Idec, 2018. Disponível em: http://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2018/10/PJ_22.10-I- dec.pdf
  1. VASCONCELLOS, Jorge; CALCAGNO, Luiz. CPMI das Fake News pede para MP investigar depoente, Correio Braziliense, 10 de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2020/02/14/interna_politica,827876/cpmi-das-fake-news-pede-para-mp-investigar-depoente.shtml
  1. INTERNETLAB et al. Proteção de dados pessoais e eleições: relatório de recomendações para o quadro brasileiro atual. São Paulo: InternetLab, 2021. Disponível em: https://www.internetlab.org.br/wp-content/uploads/2021/07/relatorio_recomendacoes_ok_23072021-1.pdf
  1. SARLET, Ingo Wolfgang; SAAVEDRA, Giovani Agostini. Fundamentos Jusfilosóficos e Âmbito de Proteção do Direito Fundamental à Proteção de Dados Pessoais. Revista Direito Público, 2020. ZANATTA, Rafael et al. Os Dados e o Vírus: Tensões jurídicas em torno da adoção de tecnologias de combate à Covid-19. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, v. 14, n. 1, p. 231-256, 2020.
  1. BRITO CRUZ, Francisco; MASSARO, Heloisa. Dados pessoais em campanhas políticas: a construção de uma ponte entre proteção de dados pessoais e regulação eleitoral, in: MENDES, Laura et al. Tratado de Proteção de Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021.