Em junho de 2021, um pai e uma filha debatem sobre as condutas do presidente brasileiro. A filha argumenta que o apoio a Jair Bolsonaro diminuiria fortemente após a confirmação de que o governo ignorou 81 e-mails da Pfizer com ofertas de vacinas para a Covid-19, informação divulgada quando as mortes na pandemia no país chegavam a 400.000. O pai responde desacreditando os fatos sobre as negativas as vacinas, afirma que no momento tudo que acontecia no Brasil era considerado culpa do chefe de Estado e que a imprensa não noticiava as ações positivas do governo. Como exemplo, ele cita o grande número de estradas construídas e reformadas por Jair Bolsonaro e mostra um vídeo. O mesmo vídeo circula em uma outra família em um grupo de Whatsapp, com o mesmo propósito de mostrar o que a “Globo não mostra”, expressão usada em memes políticos para reforçar a tese de que a grande imprensa persegue o governo vigente no Brasil.
O culto as estradas dos bolsonaristas é uma das narrativas eficientes que mantém mobilizados os apoiadores nas redes sociais. São imagens e relatos compartilhados no Whatsapp e Telegram e vídeos no Youtube mostrando o presidente trabalhando, embora a agência Aos Fatos tenha divulgado um estudo que afirma que 54% das ações comemoradas por Bolsonaro sobre as estradas no Twitter são legados de outros governos[i].
Faltando 70 dias para a eleição, talvez bem menos quando você encontrar este texto, essa história de desavença familiar passe longe da gravidade dos últimos acontecimentos, como o encontro (em 18 de julho) com embaixadores, convocado pelo presidente, que reafirmou, dessa vez para uma plateia internacional de alto escalão, desacreditar no sistema eleitoral brasileiro, sem mais uma vez apresentar provas. E o assassinato do guarda municipal petista Marcelo Arruda em sua festa de aniversário, cometido por um bolsonarista indignado com a temática da comemoração, o candidato Lula. Todos esses casos têm conexões com o cenário político em que está em jogo a democracia do Brasil e fazem parte elementos como negacionismo, desinformação, descrédito a imprensa e violência política.
Nesse sentido, a transformação na forma de fazer política impulsionada pela internet e pelo funcionamento das redes sociais tem um papel essencial. O presidente Jair Bolsonaro é um fenômeno tecnopolítico porque é um produto da dinâmica das redes sociais na qual o brasileiro passa boa parte do seu dia, consumindo e compartilhando informações. Segundo relatório da consultoria AppAnnie, em 2021, usuários no Brasil passaram quase 5 horas e meia por dia no smartphone, liderando o ranking mundial, empatados com a Indonésia[ii].
A consequência dessa mudança do modus operandi da política foi evidenciada com a vitória de Bolsonaro em 2018, que aconteceu sem ajuda dos determinantes clássicos de uma eleição, como tempo de televisão, alto financiamento, estrutura partidária e palanques estaduais. A conquista foi construída pelo domínio dos aparatos de comunicação ofertados pelas redes sociais. A campanha não só venceu as eleições em 2018, como ganhou a disputa na internet utilizando disparos em massa no Whatsapp, fake news e o bom uso da imagem e retórica do então candidato à presidente nas redes.
Os quase quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro e os muitos estudos sobre a algoritmização da vida não fazem com que as eleições de 2022 sejam disputadas com grandes vantagens de um aprendizado sobre essa nova forma de se fazer política. Os desafios permanecem e são muitos. Com a intenção de contribuir com o debate sobre como fortalecer a democracia, a Fundação Heinrich Böll convidou pesquisadores do campo dos direitos digitais e ciência política para refletirem sobre a conjuntura das eleições de 2022, utilizando a perspectiva de que as redes e os algoritmos têm um papel fundamental. O conjunto de artigos aponta caminhos e reforça a necessidade de que a sociedade civil compreenda como o ecossistema da internet funciona. Chamamos esta publicação de “A democracia aceita os termos e condições? Eleições 2022 e a política com os algoritmos,” como uma provocação sobre a inovadora forma de fazer política e como em geral não sabemos de fato no que estamos concordando quando dizemos sim na internet e é justamente essa opacidade que confunde e não dialoga com um valor fundamental para o exercício democrático: a transparência.
O pesquisador e professor da UFABC Sergio Amadeu abre nossa publicação com um artigo sobre como a operação dos algoritmos que regem as plataformas, nas quais circulam os dados, é invisível para quem as utiliza. Os sistemas algoritmos ditam a distribuição de mensagens que fazem parte da arena pública na qual são disputados os rumos políticos das sociedades. Publicada este ano, uma pesquisa realizada com mais de 2 milhões de tweets, em 7 países[iii], mostrou que o sistema algorítmico do Twitter recomendava ou amplificava mais mensagens de direita do que de esquerda. Será que estamos atentos o suficiente para a falta de transparência das regras que regem as plataformas?
Francisco Brito, do Internetlab, analisa as questões da complexa moderação das plataformas. Para ele o campo bolsonarista busca ampliar a distribuição de sua propaganda, muitas vezes usando narrativas violentas e desinformativas, o que pode esbarrar na moderação realizada pelas plataformas. Já parte da sociedade civil defende os direitos de usuários, como demandar transparência sobre como os serviços e regras privadas podem impactar os direitos humanos.
Gilberto Scofield, da Lupa, discute o fenômeno da desinformação e responde à pergunta: por que as pessoas acreditam naquilo que querem acreditar mesmo sendo mentira? No mundo da pós-verdade para deter a indústria da desinformação a checagem dos fatos é uma ferramenta importante. O autor analisa também o projeto de lei das fake news, argumentando que é uma resposta simples para problemas complexos. Mais que nunca a desinformação tornou-se uma estratégia política[iv].
O Instituto AzMina e Manuela D’Ávila discorrem sobre a representatividade das mulheres na política demonstrando como a violência de gênero é um impulsionador para a ainda pouca presença feminina nesses espaços de decisão. “Não se espera que alguém aceite um convite para uma experiência que sabe que lhe será dolorosa. Mas quando pedimos para que mais mulheres ocupem espaços de poder na política, é justamente isso que lhe oferecemos: uma experiência não só perigosa, mas violenta”, coloca o Instituto que assina de forma coletiva seu artigo. As mulheres temem pela segurança nas redes sociais e fora delas.
Para Manuela D´Ávila, no ambiente tradicional da política os homens disputam entre eles, mas quando surgem mulheres que ameaçam suas posições, há homens que partem para a ação violenta. Essa violência política de gênero acontece nos parlamentos, nas ruas e nas redes sociais. “A morte de Marielle alimenta os monstros na internet, os monstros na internet alimentam os agressores nas ruas,” afirmou a ex deputada, líder no recebimento de ataques mísoginos em 2020.
Em 14 de julho, o colunista do UOL Chico Alves noticiou que estão crescendo os ataques nas redes aos ministros do Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior Eleitoral por parte de influenciadores de extrema-direita, que apoiam o presidente Jair Bolsonaro. Os números são do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Internet e Política da PUC-Rio e as altas mais claras apareceram no YouTube e no TikTok[v]. Este fenômeno pode ser visto sob a perspectiva da cientista política Camila Rocha, autora do livro “Menos Marx, mais mises: o liberalismo e a nova direita no Brasil”. Para ela, na disputa pela atenção de um público desconfiado da mídia mainstream e saturado por um tsunami de informações, alguns conteúdos passaram a ganhar a competição por visualizações e cliques e a vantagem ficou com quem disparou primeiro: influenciadores direitistas. Esses criadores se colocam como anti-establishment e oferecem conteúdos com aparência jornalística, chamadas sensacionalistas e linguagem simples, mas muitas vezes fake news ou vídeos com montagens para um entendimento mentiroso do conteúdo.
Entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, onze canais do YouTube pró-Bolsonaro, que divulgavam informações falsas sobre urnas eletrônicas, arrecadaram mais de dez milhões de reais. A partir de acordos do TSE com as plataformas, vídeos foram retirados com ordem judiciais e alguns canais iniciaram um movimento de retirada de conteúdos desinformativos ou aqueles com claros ataques à segurança das instituições, representantes ou à democracia, temendo serem autuados pela justiça. Os canais que mais lucraram antes de serem bloqueados judicialmente foram o Folha Política, com 2,5 milhões de reais, e o youtuber Allan dos Santos, com 1,7 milhão de reais[vi]. A retirada dos vídeos por solicitação judicial ou feita pela decisão dos próprios criadores acontece em geral após eles se disseminarem em muitas redes e já terem recebido muitas visualizações e compartilhamentos.
Rodolfo Avelino, professor do Insper e especialista em cibersegurança, explica porque não são válidos os questionamentos sobre a segurança das urnas eletrônicas, apontando que os procedimentos que estão sendo realizados reforçam a tese de que os riscos estão mitigados, diferente do que afirma a narrativa bolsonarista. Por outro lado, Avelino reflete sobre uma outra séria questão pouco falada: dispositivos eletrônicos conectados à Internet apresentam vulnerabilidades que permitem acesso a informações. Assim, smartphones são os principais instrumentos de vigilância explorados por regimes autoritários para atingir ativistas de direitos humanos. Aplicativos como PhoneSpy e Pegasus são capazes de controlar um smartphone e acessar as informações de um celular de forma irrestrita. Ele alerta que não há no Brasil regulamentações sobre a venda ou transferência de softwares espiões. Essa falta de transparência no setor impede a responsabilização. A recomendação é que partidos e candidatos promovam medidas e mecanismos adequados para proteção legal e regulatória sobre este tema.
As eleições de 2022 acontecerão em um momento descrito por Caetano Veloso na música Anjos Tronchos, lançada em 2021. A letra afirma que nossa história está sendo contada em um “denso algoritmo” e sabemos que as que narram teorias da conspiração e provocam emoções como raiva e medo são mais impulsionadas nas redes. Nesse enredo, a música alerta sobre os “palhaços líderes que brotaram macabros", mas conclui que também “há poemas como jamais” houve. E assim como essa mensagem de esperança, acreditamos que há caminhos para fortalecer a democracia, mesmo com as assimetrias de poder reforçadas pelo funcionamento das redes.
Boa leitura.
[ii] Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-59974046
[iii] HUSZÁR, Ferenc et al. Algorithmic amplification of politics on Twitter. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 119, n. 1, 2022.
[iv] D'ANCONA, Matthew. Pós-verdade: a nova guerra dos fatos em tempos de fake news. Barueri: Faro Editorial, 2018