Há dez anos a popularização da internet e das redes sociais no Brasil alterou radicalmente a circulação de ideias na esfera pública. Em pouco tempo, jornalistas, intelectuais e celebridades tradicionais passaram a dividir espaço com mídias alternativas, youtubers e influencers.
Na disputa pela atenção de um público crescentemente desconfiado da mídia mainstream e saturado por um tsunami de informações, conteúdos diferenciados passaram a ganhar a competição por visualizações e cliques. E a vantagem nessa corrida ficou com quem disparou primeiro: influenciadores direitistas que mobilizam recorrentemente a política do choque.
A política do choque é uma estratégia utilizada por grupos marginalizados no debate público para chamar atenção. Tal estratégia pode ser utilizada à esquerda e à direita. Um exemplo à esquerda foi quando participantes das Marchas das Vadias, dentro e fora do Brasil, procuravam chamar atenção para suas demandas ao exporem seus seios em público. À direita, se tornou comum o uso de uma retórica agressiva, permeada de palavrões e humor ácido, o ‘politicamente incorreto’.
O recurso a tal estratégia se justificaria diante da impossibilidade de obter atenção de outro modo. Afinal, as pautas e demandas de quem usa a política do choque seriam menosprezadas, e até mesmo ridicularizadas, pela mídia e pela política tradicionais. Mas como discursos de direita podem ser considerados marginais em um país conservador como o Brasil?
Ao longo do tempo, o frágil avanço institucional e o debate público de mulheres, negros, LGBTQIA+, bem como a permanência do Partido dos Trabalhadores no poder após acusações de corrupção, desencadearam novos conflitos. Vários grupos passaram a reagir ao perder poder ou sentiram-se marginalizados no debate público, aumentando a demanda por influenciadores e políticos que ecoassem suas visões de mundo, como Jair Bolsonaro, deputado extremista que se tornaria a principal liderança de direita no país.
A figura de Bolsonaro se popularizou na internet principalmente por conta de páginas e perfis relacionadas ao político no Facebook como “Bolsonaro Zuero” e “Bolsonaro Opressor 2.0”. Permeadas por sátiras ácidas, palavrões e críticas agressivas a adversários políticos e minorias em formato de memes, as páginas também circulavam imagens de Bolsonaro em atividades cotidianas bem como suas falas mais polêmicas, com um tratamento irônico. Inclusive, o apelido de “mito”, que passou a ser utilizado entre apoiadores de Bolsonaro, é atribuído aos vídeos veiculados na página "Bolsonaro Zuero”, nos quais óculos escuros pousavam no rosto de Bolsonaro quando falava algo polêmico e chocante. Em pouco tempo, os rapazes responsáveis pelos conteúdos passaram a fazer parte da equipe de comunicação do então deputado, que em 2015 lançou sua candidatura à Presidência da República[1].
Em 2017, um ano antes das eleições presidenciais, Bolsonaro já liderava em números de seguidores e reações no Facebook, quantidade de interações no Twitter, e total de curtidas no Instagram. Para efeito de comparação, na época, Bolsonaro contabilizava 4,7 milhões de seguidores e 3,2 milhões de reações no Facebook, enquanto o segundo colocado, Lula, ex-presidente do Partido dos Trabalhadores que deixou o governo com mais de 80% de aprovação popular, contabilizava 3 milhões de seguidores e 1 milhão.
Em grande medida, isso ocorre porque criadores de conteúdo e influenciadores pró-Bolsonaro se apresentam como marginais e anti-establishment. Em sua visão, o establishment teria passado a ser permeado pelo que consideram ser uma ‘hegemonia esquerdista’ que representaria ameaças iminentes a suas visões de mundo e modos de vida. Daí o aumento da circulação de conteúdos com aparência jornalística, chamadas sensacionalistas e linguagem simples que apontem a necessidade de que é preciso procurar informações fora da imprensa tradicional ‘esquerdista’. Dessa forma, ao mesmo tempo que a demanda por tais conteúdos é renovada permanentemente, crescem as possibilidades de ganhos financeiros para criadores de conteúdo digital por meio de anúncios, envio de dinheiro durante a transmissão de lives e venda de objetos.
Tal dinâmica de produção e consumo de conteúdo teve continuidade após Bolsonaro ter sido alçado à Presidência do país. A diferença é que, agora, ações coordenadas em maior ou menor grau entre membros do governo e influenciadores possibilitaram a construção de narrativas homogêneas sobre diversas pautas, inclusive no que diz respeito a ataques explícitos a instituições democráticas. No entanto, apenas bolsonaristas menos poderosos foram punidos por tais ataques. Isso ocorreu por terem cruzado a tênue fronteira que divide a aceitação da política do choque como parte do exercício democrático de ataques diretos ao estado de direito.
Casos exemplares nesse sentido foram os de Roberto Alvim, ex-secretário da Cultura, do deputado bolsonarista Daniel Silveira e de diversos influenciadores bolsonaristas investigados no inquérito das fake news. Alvim foi exonerado ao fazer um discurso com referências nazistas. Já Silveira foi condenado à prisão ao divulgar um vídeo no YouTube em que xingava a Supremo Tribunal Federal, ameaçava os juízes com violência e elogiava medidas da ditadura militar. Os influenciadores bolsonaristas investigados no inquérito das fake news, por sua vez, foram obrigados a apagar vídeos em seus canais de YouTube.
De acordo com levantamento da Novelo Data, desde janeiro de 2022, mais de 10 mil vídeos foram removidos dos 450 maiores canais pró-Bolsonaro temendo prejuízos judiciais ou econômicos. Em alguns casos, os valores angariados ultrapassavam centenas de milhares de reais. Entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, onze canais de YouTube pró-Bolsonaro que divulgavam informações falsas sobre urnas eletrônicas arrecadaram mais de dez milhões de reais. Os canais que mais lucraram antes de serem bloqueados judicialmente foram o Folha Política, com 2,5 milhões de reais, e o youtuber Allan dos Santos, com 1,7 milhões de reais[2].
Contudo, o impacto disso na circulação de ideias antidemocráticas ou informações falsas, ou mesmo no número de influenciadores e produtores de conteúdo que os circulam de forma implícita ou explícita é questionável[3].
Em primeiro lugar, a verificação dos conteúdos, seja judicial ou realizada pelas próprias plataformas, é demorada pois ainda dependem de interpretação humana e análise de contexto. Ou seja, até um conteúdo ser apagado, este já foi compartilhado milhares de vezes. E os próprios influenciadores, ao saberem das regras, já modulam seus discursos ou apagam suas produções originais sabendo que, ao atingir milhares de pessoas ao mesmo tempo, tais conteúdos também podem ser salvos e/ou replicados de diferentes formas posteriormente.
Em segundo lugar, existe um alinhamento entre diferentes espaços de circulação de conteúdos. Como aponta a antropóloga Letícia Cesarino, no Brasil ocorre uma dinâmica que também pode ser encontrada em países como a Alemanha, em que grupos subterrâneos fechados se alinham a influenciadores em plataformas abertas ou mesmo na mídia tradicional. Isso possibilita a criação de uma rede que amplifica a distribuição de conteúdos que estão baseados nas mesmas fontes e referências. Ou seja, médicos negacionistas que condenam o uso de vacinas contra Covid-19 e são citados em grupos fechados também podem ser entrevistados por jornalistas ou mídias tradicionais alinhadas ao governo, ou ainda figurarem em produções profissionais cujos conteúdos são acessados mediante assinaturas.
Em terceiro lugar, a criação de uma narrativa bolsonarista homogênea facilita a circulação de determinadas ideias de forma implícita entre influenciadores ligados a nichos específicos. Cristãos conservadores, grupos antifeministas, setores ligados ao Exército e às polícias, trabalhadores e empresários do agrobusiness, artistas sertanejos, gamers, defensores de criptomoedas e profissionais de classe média e alta ligados ao mercado financeiro são exemplares nesse sentido.
Por fim, a própria dinâmica de compartilhamento de conteúdos nas plataformas incentiva a produção de determinados conteúdos em formatos específicos. Afinal, teorias da conspiração e conteúdos que provocam emoções como raiva e medo são incentivados por seus algoritmos, o que faz com que o público de tais influenciadores seja mais amplo do que a parcelas da população brasileira que de fato apoiam Jair Bolsonaro.
Diante de tal cenário, não são incomuns demandas de maior restrição e controle do que circula na esfera pública com a intenção de ‘purificar’ o debate público. No entanto, na ânsia de se livrar de fenômenos considerados incômodos, corre-se o perigo de jogar fora o bebê com a água do banho.
Este artigo faz parte da publicação “A democracia aceita os termos e condições? Eleições 2022 e a política com os algoritmos”, disponível para download gratuitamente aqui.