Fundação Heinrich Böll faz 21 anos no Brasil: envolver-se é a única forma de enfrentar a realidade

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Foi em 2000, no Rio de Janeiro, que a Fundação Heinrich Böll abriu seu escritório no Brasil. Um Brasil que vivia o primeiro período de fato de estabilidade democrática pós-ditadura militar, com fortalecimento das esquerdas e da centro-direita e a consolidação da sociedade civil.  De lá pra cá são 21 anos de trabalho, tendo da nossa janela a agradável visão da Baia de Guanabara. Ela nos inspira na tarefa de fortalecer o diálogo entre forças políticas e contribuir para desenvolver a democracia e os direitos humanos. Nesse caminho buscamos incansavelmente defender a preservação do meio ambiente com suas populações, alicerçando sempre nossas atividades e políticas a partir da perspectiva de equidade de gênero e de raça no Brasil.

Foi um longo caminho, com muitos encontros. Gente comprometida com a pauta dos direitos passaram por nossas salas e eventos. Tivemos muitas conversas divertidas, sérias, críticas e muitas delas geraram parcerias políticas que conduziram a processos de mudança nas políticas públicas, ao florescimento de novos pontos de vista, a defesa de um território em disputa e muitos casos mais.

A Fundação conta hoje com 33 escritórios internacionais e sua atuação alcança 60 países.  Entender o ideário de uma geração forjada no pós-guerra nos ajuda a explicar o que a organização faz pelo mundo. Nos anos 1970-1980 criou-se na Alemanha uma corrente política formada pelo movimento ambientalista e o pacifista, o movimento de mulheres e o movimento LGBT (como era conhecido na época). Alguns dos integrantes optaram por fundar um partido político nos anos 1980 e é nesse caldo político, feito desses movimentos, que surge o Partido Verde alemão conseguindo definitivamente cadeiras no Parlamento naqueles anos e se consolidando nos anos 1990. 

Na Alemanha um partido só entra no Parlamento com o mínimo de 5% de votos e tem assim o direito de formar uma fundação para atuação nacional e internacional. Essas fundações são uma mescla entre instituições de formação política, think tanks e cooperação política-financeira. Trabalham com dinheiro público e são administrativamente independentes dos partidos. O Partido Verde então tomou emprestado o nome do escritor Heinrich Böll, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 1972 e formou sua fundação.

Continuamos envolvidos em muitas dessas pautas históricas, pois mudanças estruturais, aquelas legadas para outra geração, necessitam de atenção e empenho constante. Na inauguração do escritório no Rio de Janeiro, em 2000, o evento de abertura falava sobre as falsas soluções trazidas pelos transgênicos, tema que iniciava seu percurso no Brasil. O trabalho da Fundação foi de sensibilização da Europa de que os transgênicos significavam mais áreas desmatadas, inclusive na Amazônia, e que com isso as florestas estavam sob ataque. Hoje, infelizmente, os transgênicos estão em boa parte da alimentação dos brasileiros, mas a pauta da alimentação saudável ganha mais força a cada dia. Para nós na Fundação “comer é um ato político” por isso estamos junto com organizações e movimentos que defendem o acesso à comida de qualidade no campo e na cidade a partir do fortalecimento da agroecologia.

Mas foi a partir da emergência da crise climática, nas diversas Conferências das Partes da Convenção do Clima e naquelas da Diversidade Biológica (COP) promovidas pela ONU que o tema das florestas voltaria com força. A Fundação impulsionou os debates sobre a financeirização da natureza, em especial a inclusão das florestas no combate às mudanças climáticas, implícita na maioria das iniciativas privadas e públicas. Consequentemente mantemos também um olhar crítico sobre as propostas da economia verde, sobretudo no que se espera no pós-pandemia. Questionamos até que ponto são essas propostas inclusivas e promotoras de mudanças estruturais. Ou ainda, o modelo de desenvolvimento baseado unicamente no crescimento está sendo questionado? Nos atentamos aos riscos dessa onda ser o mais do mesmo, só um pouco pintada de verde?

Amazônia também é uma região onde os modelos de desenvolvimento para toda América Latina se chocam: um que leva em consideração os povos tradicionais, indígenas e quilombolas, e população ribeirinha, que está voltado para garantir a floresta em pé, como se diz naquela região; outro no qual os interesses de grilheiros e desmatadores levaram a conflitos de terra acarretando o assassinato de centenas de defensores e defensoras de direitos ao longo dos últimos anos. A Fundação apoia projetos nessa região desenvolvido por organizações de defesa de direitos.

Durante a preparação e realização dos megaeventos no Brasil (Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016) denunciamos para um público internacional, levando as vozes de um conjunto de atores da sociedade civil, de que havia graves violações de direitos humanos acontecendo no país. Fizemos e apoiamos relatórios e campanhas que denunciavam as remoções forçadas, endividamento público, estádios que virariam elefantes brancos, modelos de mobilidade urbana que teriam vida curta, gestores públicos e empresas atuando com pouca transparência. E olhando retrospectivamente muitas dessas denúncias foram confirmadas.

Monitoramos também ao longo desses anos o fortalecimento das alianças entre grupos ultraconservadores e religiosos fundamentalistas. Esses grupos tanto nas redes sociais quanto nos espaços de poder político têm atuado de forma coordenada para retroceder os direitos das mulheres e da população LGBTQI+ e espalhar discursos de ódio. Ao mesmo tempo que os direitos dessas populações avançaram houve uma forte reação contrária e o anti-feminismo alcançou um outro patamar. Mas também houve vitórias, como a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), da lei contra o feminicídio (Lei nº 13.104/2015), da lei contra importunação sexual feminina que passou a ser considerada crime (Lei nº 13.718/ 2018).

Apoiamos cotidianamente os movimentos de mulheres, em seus diversos matizes. Por exemplo, junto às organizações do movimento de mulheres negras apoiamos desde o início o Julho das Pretas, uma série de debates e oficinas que acontecem anualmente. No intuito de preservar os saberes tradicionais apoiamos as raizeiras do cerrado que praticam a medicina tradicional a partir do uso da biodiversidade local e também contribuímos para fortalecer as feiras agroecológicas e contra a violência do movimento de mulheres quilombolas e camponesas. Além disso, ao longo desses anos nos aliamos às entidades que trabalham com formação política, com projetos de acompanhamento do parlamento brasileiro no tema dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, de autocuidado, contra a violência doméstica e institucional. Em comum no que apoiamos está a valorização dos modos de vida e saberes locais, a denúncia e monitoramento das políticas públicas para as mulheres.

Outro tema em que atuamos desde a instalação do escritório em 2000 é a violência policial no Brasil, tendo como exemplo os assassinatos de jovens negros nas periferias das cidades cometidos por agentes públicos. Marca indelével do racismo, deixada como legado da escravidão, moradores desses bairros são vistos como indesejáveis, descartáveis, sem direitos. A Fundação tem apoiado o fortalecimento de organizações e atores locais para o diálogo com a sociedade e gestores públicos, para promover uma cultura de respeito aos direitos e que ao mesmo tempo possa mostrar como esses espaços possuem experiências inovadoras e potentes.

Nos últimos três anos nos deparamos também com um contexto de avanço intenso e acelerado da digitalização da vida, o que impacta em vários de nossos temas.  Nos aliamos aos movimentos e organizações que defendem o desenvolvimento, regulação e uso das tecnologias sob uma perspectiva de direitos humanos. As tecnologias não são neutras e carregam em seus códigos as contradições da sociedade reproduzindo muitas vezes o racismo e o machismo. Paralelamente aos processos de transformação digital, é necessário trabalhar para compreender e corrigir as assimetrias de poder que a tecnologia reproduz.

Em todos os apoios e alianças com organizações, pesquisadores, jornalistas e parlamentares o compromisso é propor um outro modelo de sociedade, feminista, antirracista e que respeite os limites da natureza, que admita as diferenças, abrace a diversidade de corpos e saberes e esteja aberta ao diálogo político. Sabemos que ainda há muito a fazer e muitas vezes os retrocessos são desoladores, mas a capacidade de adaptação, inovação e potência da sociedade civil brasileira nos inspira e nos move diariamente a construir um futuro mais justo e democrático. Agradecemos a todes que estão conosco nessa jornada e esperamos seguir unidos pelos próximos 21 anos.

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