Descaminhos do meio ambiente: nove meses do governo Bolsonaro

Pela primeira vez, desde o processo de redemocratização do País, um candidato à Presidência da República assumiu, em relação à pauta ambiental, um discurso explicitamente negativo: em clima de intolerância e polarização, a questão ambiental foi apresentada como obstáculo ao desenvolvimento do País. Extinguir o Ministério do Meio Ambiente (MMA), acabar com a “indústria da multa” e com o ativismo do Ibama, do ICMBio e de ONGs ambientalistas, não mais demarcar terras indígenas e retirar o País do Acordo de Paris foram algumas das promessas dessa campanha.

Os dias que antecederam a posse do governo reforçaram as mensagens da campanha. O Chanceler escolhido afirma ser a mudança do clima um dogma e o Brasil anuncia a decisão de não sediar a próxima Conferência das Partes da convenção sobre mudança do clima (COP-25). Após resistência da parcela esclarecida do agronegócio, o MMA não foi extinto mas todo o processo de transição na área ambiental bem como a escolha do novo Ministro foram conduzidos pelos ruralistas.

Toras de madeira extraídas ilegalmente da Terra Indígena Manoki apreendidas pelo Ibama

Mudanças institucionais profundas

No primeiro dia de mandato, concretizaram-se várias das promessas eleitorais. Embora mantido, o MMA saiu enfraquecido técnica e politicamente, dele desaparecendo competências como a condução das políticas sobre mudança do clima, combate ao desmatamento, recursos hídricos e ordenamento pesqueiro, entre outras.

Além de competências, o MMA perdeu duas importantes unidades vinculadas, essenciais para a condução de uma política ambiental integrada e coordenada: a Agência Nacional de Águas (ANA) e o Serviço Florestal Brasileiro (SFB). Em ambos os casos, essas unidades foram deslocadas para ministérios que, pela própria natureza de suas atividades, impactam a existência e a sustentabilidade desses recursos, águas e florestas.

Os sinais de enfraquecimento da área ambiental não aconteceram apenas no MMA. Devoto do negacionismo climático, o titular do Itamaraty extinguiu a Subsecretaria de Meio Ambiente, Energia, Ciência e Tecnologia e suas divisões de Clima, de Recursos Energéticos Novos e Renováveis e de Desenvolvimento Sustentável, áreas de histórico protagonismo internacional do País e hoje consideradas ameaças, agora diluídas em uma Secretaria que atende pelo vago nome de Soberania Nacional e Cidadania.

A participação social sofreu vários reveses na nova administração, particularmente na área ambiental. O primeiro a ser atingido foi o Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), colegiado com marcante atuação para a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA) desde 1981, quando foi criado, e que sempre teve na participação social um dos seus pilares. As mudanças na sua composição reduzem os espaços de diálogo da sociedade civil e privilegiam o setor privado, que teve seu peso reforçado.

Além das mudanças no Conama, um decreto presidencial extinguiu todos os colegiados da administração pública federal. De um dia para o outro, deixaram de existir vários colegiados de ampla representatividade da sociedade, fundamentais para a coordenação de políticas na área ambiental.

Esse mesmo decreto extinguiu o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (COFA), dando sequência a uma série de denúncias e críticas desprovidas de fundamentação concreta, o que gerou paralisia na gestão de um fundo de governança exclusivamente nacional, que já recebeu aportes de mais de R$ 4 bilhões e cujos recursos alocados apoiam, na sua maior parte, ações governamentais, essenciais diante da grave crise orçamentária atual. A ausência de clareza do governo federal, na prática, está implodindo o Fundo e causando insegurança entre os seus principais doadores, que têm manifestado publicamente sua discordância a mudanças que vêm sendo sugeridas sobre governança e novos usos dos seus recursos.

Na esfera da execução da política ambiental, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) têm sido as principais vítimas do desmonte dessa política. Em gestões caracterizadas pela intimidação dos servidores e pela falta de transparência, as ações dos dois órgãos têm perdido força e têm sido desacreditadas e desautorizadas, com repercussão negativa entre seus servidores e com sinalização de que há, agora, não há rigor em relação à proteção ambiental.

Num contexto em que a situação fiscal do País levou a um forte contingenciamento em todas as áreas do governo, os programas de fiscalização e combate a incêndios florestais, sofreram severas restrições orçamentárias. Curiosamente, essas duas ações têm recebido apoio do agora desacreditado Fundo Amazônia, acusado de não atender aos interesses nacionais.

De todas as mudanças na condução da política ambiental nos últimos meses, a mais danosa é certamente a mensagem de tolerância e leniência com o crime ambiental. Não por acaso, o número de multas aplicadas pelo Ibama, neste ano, é cerca de um terço inferior ao verificado no mesmo período no ano anterior, segundo dados do próprio Instituto. Há indícios de que a queda no número de multas esteja ligada exatamente aos sinais emitidos pelo governo federal sobre supostos excessos na fiscalização, “indústria da multa” e a trocas de profissionais em postos-chave do Ibama e ICMBio.

Um dos efeitos colaterais dessa tolerância com o crime ambiental foi prover impulso político, no Congresso Nacional, para uma série de propostas com impacto negativo na política ambiental, entre elas o enfraquecimento do licenciamento ambiental, mudanças no Código Florestal, desafetação de unidades de conservação e permissão de mineração em terras indígenas.

Escalada do desmatamento e incêndios florestais

É difícil dissociar os discursos e ações do governo daquilo que acontece hoje com florestas, unidades de conservação e terras indígenas.

Dados preliminares indicam que a taxa do desmatamento da Amazônia em 2019 será muito maior do que a de anos anteriores. A primeira reação do governo a esses números foi desqualificar os dados oficiais para monitorar o desmatamento e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a instituição governamental que os divulga, reconhecida internacionalmente pela seriedade da sua ciência e pela robustez de seus sistemas de monitoramento.

De acordo com especialistas, há forte vínculo entre o aumento do desmatamento e o número crescente de focos de calor neste ano, havendo indícios de que ao menos um terço dos focos de calor ocorreu para a “limpeza” da área desmatada ou para “expansão” do pasto sobre a mata.

As tardias respostas do governo no momento em que as queimadas na Amazônia se tornaram preocupação no Brasil e no exterior, contudo, estiveram focadas apenas na redução dos focos de incêndio, não se detendo nos fatores que os causaram. Na Amazônia, as queimadas costumam ser a última etapa de um processo de destruição da floresta. Assim, enquanto o governo mobilizou até as forças armadas para combater os incêndios, o desmatamento, menos visível do que as queimadas, continuou a subir. O número de alertas de desmatamento divulgados pelo Inpe se mostrou, até o mês de agosto, cerca de 50% superior ao mesmo período do ano passado.

Não há sinais de que o governo esteja atuando de maneira efetiva no combate preventivo ao desmatamento. Os planos integrados e estruturantes de combate ao desmatamento na região foram interrompidos a partir deste ano. As políticas preventivas de comando e controle, com maior ênfase na fiscalização, foram esvaziadas, ao tempo em que não surgem propostas para a geração de renda na região. À falta de vontade política se juntam o corte orçamentário por que passam as agências ambientais e a contínua redução no número de servidores do Ibama e ICMBio, quadro sem perspectivas de equacionamento a curto ou médio prazo.

Reações em cadeia

O deliberado desmonte da política e dos órgãos ambientais brasileiros não tem acontecido sem reação. Diversos segmentos da sociedade, nacional e internacionalmente, vêm reagido de maneira veemente, alertando para os danos ambientais, a imagem do Brasil e os riscos de perdas econômicas. De maneira atabalhoada, parte do governo reage admitindo mera falha de comunicação em todo o processo, enquanto outra continua a negar a gravidade da crise ou estimulá_la.

 

A explosão das queimadas na Amazônia em agosto exacerbou as reações. No Brasil, servidores da área ambiental, organizações da sociedade civil, Ministério Público e imprensa têm sistematicamente chamado a atenção para as mazelas da política ambiental brasileira.

No exterior, à reação ao descompromisso do Brasil com a área ambiental tem sido também contundente: crescem entre governantes, empresas privadas, fundos de investimento, consumidores, e sociedade civil, especialmente nos países europeus, restrições ao comércio e ameaças de boicote a produtos brasileiros. Nenhum negócio quer ver seu nome associado ao desmatamento, temendo as reações dos consumidores.

Não por acaso, setores do agronegócio nacional já se manifestam preocupados sobre o impacto que possam sofrer as exportações de seus produtos. Os possíveis impactos sobre a economia, mais do que as reações da sociedade, produziram as primeiras respostas do governo, bem como uma mudança no discurso do Presidente e do Ministro do Meio Ambiente. As respostas, porém, não se provaram consistentes nem se traduziram em medidas concretas para reversão do estrago feito até o momento nas instituições e políticas da área ambiental.

Baseado no equivocado diagnóstico de que o problema se limita a falhas de comunicação, o Ministro do Meio Ambiente partiu para os Estados Unidos e Europa com o objetivo de mudar a imagem do Brasil na área ambiental. Investir em comunicação, contudo, não parece ser o problema, porque a mensagem não encontra respaldo nos fatos. Por onde passa, o ministro vem colhendo forte reação contrária da população, de representantes governamentais e da imprensa estrangeira. Sua agenda no exterior privilegia contatos com o setor privado, com um discurso de que a Amazônia precisa de “soluções capitalistas”, percebido como diversionista e vazio, e sem oferecer as respostas a que se propunha nessa turnê.

Essa reação mundial, que coloca o Brasil na posição de um pária ambiental, parece ser o preço a pagar pela decisão de implodir 40 anos de política ambiental brasileira. Setores muito distintos da sociedade, forças políticas de todos os espectros, agentes econômicos e governos de diversos matizes políticos e econômicos têm expressado sua insatisfação. A reação contrária é tão forte que até produz a esperança de que haja forças suficientes para impedir o aprofundamento do desastre ambiental, que, vale dizer, tem repercussões globais.