Articular os direitos de pessoas trans- e homosexuais é uma questão de sobrevivência para Paulo Victor, pois implica defender seu direito de existir. A Fundação Heinrich Böll encontrou com ele durante a produção da webserie “Pense no seu voto”. Em vídeos e artigos apresentamos as histórias de seis jovens que têm visões críticas do mundo e são comprometidos com mudanças em suas localidades - cada um de seu jeito. Toda semana vamos apresentar uma dessas pessoas inspiradoras.
A indicação chegou de surpresa e prometeu realizar um sonho antigo. A ocupação Que Legado, uma manifestação artística sobre as contradições do legado dos megaeventos para a cidade do Rio de Janeiro, concorreu à premiação mais prestigiada do teatro no Brasil, o Prêmio Shell. O Grupo Atiro, que tinha participado da ocupação, indicou Paulo Victor Lino para representá-lo na premiação. No dia da cerimônia, em março, Paulo Victor acordou cedo para cortar e trançar o cabelo. Foi à casa de dois amigos para pedir emprestado uma roupa social e andou muito até pegar o ônibus que ia levá-lo à Copacabana. Os troféus iam ser entregues no Copacabana Palace, um dos hotéis mais nobres do país. Para Paulo Victor, foi a primeira vez que entrou no hotel, e estava com um sentimento de excitação e expectativa.
Lugar onde a cultura brota
Paulo Victor Lino tem 23 anos e mora na Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré. O complexo se estende ao longo da Avenida Brasil, onde um fluxo contínuo de carros vai em direção a Duque de Caxias, Petrópolis e São Paulo. Na mídia, este território é descrito como um dos lugares mais violentos do Rio de Janeiro. Mesmo assim, Paulo Victor gosta de morar na favela: “Eu consigo encontrar as minhas belezas dentro deste lugar.” O que não se vê de fora é a grande variedade de projetos culturais que brotam na Maré, grupos de música, teatro e dança.
Paulo Victor Lino é ator, negro e gay. Afirma que identificar-se como ator e como homossexual dentro da favela é um desafio. O primeiro, porque muitas pessoas não reconhecem a atuação como uma profissão. E o segundo devido ao conservadorismo e à homofobia que se fazem sentir de forma mais cruel na favela. “Eu acho que me entender como gay dentro deste território foi um processo difícil”, disse Paulo Victor. Ele faz uma pausa, olha para o teto da sala onde a entrevista está acontecendo, procurando as palavras certas. “A dinâmica de uma bicha dentro da favela é outra. A gente vive numa outra realidade e está lidando com outras redes.”
Pense no seu voto! Eleições 2018 - Paulo Victor Lino - Fundação Heinrich Böll Brasil
Watch on YouTubePessoas LGBTs - cada vez mais estigmatizadas
Apesar de reconhecer formalmente os direitos básicos de pessoas LGBTs, o Brasil é um país no qual essas pessoas são cada vez mais estigmatizadas, lamenta a Anistia Internacional. É um país onde alguns políticos e juízes defendem terapias de reversão sexual e no qual exposições de arte LGBT são atacadas e fechadas. Paulo Victor lembra muito bem do que aconteceu em junho deste ano: ele participou da organização do festival “Corpos visíveis” no Rio de Janeiro, onde ia ser apresentada uma peça que mostrava Jesus Cristo como travesti. “Faltando uma semana para o evento o Crivella [prefeito do Rio de Janeiro] cancelou tudo”, conta ele. Não foi articulado oficialmente, mas Paulo Victor tem certeza que foi a peça controversa que incentivou o cancelamento das atividades artísticas. Para ele, é só mais uma forma como o conservadorismo religioso tenta retirar a legitimidade da pauta LGBT.
Segundo um levantamento recente do Grupo Gay da Bahia, 445 lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) foram mortos em 2017 em crimes motivados por homofobia no Brasil. O número de casos relatados aumenta cada ano. Mesmo assim, Paulo Victor acredita que são muito mais assassinatos do que os dados oficiais mostram. “Esses dias aqui na comunidade uma pessoa bicha foi morta, mas não é anunciado, essa noticia não circula”, diz ele. Nas favelas, há uma ausência de uma instância que proteja os diretos básicos, até a vida, das pessoas LGBTs. A polícia não atua na Nova Holanda, onde Paulo Victor mora, e o monopólio do tráfico de drogas é acompanhado por atitudes machistas e homofóbicas. Paulo Victor afirma: “a gente acaba sofrendo muito porque não tem para quem recorrer.” A isso soma-se uma falta de atenção para esta realidade. “Tem pesquisas, mas não chegam à favela. Então a gente acaba sendo sumido do mapa. A gente morre. A população LGBT tem sido assassinada, e na população da favela nem é registrado.”
Enquanto Paulo Victor fala sobre isso, ele está sentado numa sala na laje do prédio onde se encontra a ONG Conexão G que oferece um espaço de intercâmbio para pessoas LGBTs dentro da favela. Faz alguns meses Paulo Victor se juntou ao grupo, que lhe dá a segurança e o reforço de compartilhar experiências com pessoas que estão “no mesmo barco”, como ele descreve. Na Conexão G, Paulo Victor participa na organização de eventos, como um seminário sobre a violência contra pessoas transsexuais em junho e uma parada LGBT na Maré no final de agosto. No entanto, o lugar onde Paulo Victor mais gosta de articular seus direitos como cidadão negro, favelado e gay, é o palco.
O sonho da vida: Um reconhecimento em bronze
Quando ele tinha 14 anos, Paulo Victor entrou pela primeira vez numa oficina de teatro. “Gostei, me identifiquei, e é nisso que trabalho até hoje.” Ele é membro de dois grupos de teatro, o Grupo Atiro e o Grupo Pantera. O último é formado por pessoas homo- e transsexuais e trabalha esta temática nas favelas. Já naquele tempo, quando Paulo Victor começou sua jornada como ator, o jovem sonhava com o prêmio Shell, o maior prêmio de teatro brasileiro. Conquistá-lo um dia era a meta da sua vida. Em março, parecia que Paulo Vitor iria atingi-la. A ocupação cultural, da qual o Grupo Atiro tinha participado, foi nomeada como melhor inovação. Como integrante do grupo, Paulo Victor foi à cerimônia. Mas a partir do momento que ele entrou no Copacabana Palace, o sonho de sua vida, o de sentir o peso do prêmio na sua mão, foi se desmoronando como um baralho de cartas.
“Era muito surreal”, conta Paulo Victor, avaliando alguns meses depois. “Eu cheguei e a primeira coisa que vi era o quanto eu sou pobre.” Na sala enfeitada, Paulo Victor enxergou pouquíssimas pessoas negras – apesar do tema do prêmio deste ano, ter sido “diversidade”. O jovem ator escutou discursos nos quais diretores brancos, beneficiados com patrocínios de grandes empresas, reclamavam da escassez de recursos para a classe artística. “Mas eles não sabem o que é não ter financiamento!”, diz Paulo Victor. “A gente realiza nossos trabalhos sem dinheiro nenhum, só em busca de parcerias, tendo que dar conta de mil coisas pra realizar nossa arte.” Naquela noite, Paulo Victor foi para casa sem o prêmio – e sem ilusão. Ele não acredita mais que vá ganhar o prêmio algum dia.
“E ao mesmo tempo que eu saí de lá muito chocado com essa realidade muito distante da minha, eu saí de lá com muito mais vontade de fazer o que eu faço”, resume Paulo Victor. “Eu acredito que o que eu faço é muito potente, é muito forte.”