A Amazônia ocupou as manchetes dos jornais e foi tema de discursos de políticos e celebridades desde o final de agosto por conta de mais uma arbitrariedade do ilegítimo governo Michel Temer: o Decreto nº 9147/2017, que extinguiu a Reserva Nacional do Cobre e seus Associados (Renca), nos estados do Pará (PA) e Amapá (AP), abrindo para atividade minerária uma área com mais de 4 milhões de hectares, composta por sete Unidades de Conservação e duas terras indígenas¹.
Depois da forte pressão de ambientalistas, manifestações e protestos de movimentos sociais, populações indígenas e artistas, e da repercussão internacional, Michel Temer voltou atrás e revogou a extinção da Renca, através de outro decreto (nº 9.159/2017), publicado no diário oficial da União no último dia 26 de setembro.
Foi lindo e comovente ver tanta mobilização em prol da preservação da Amazônia. Quiçá fosse assim com relação a todos os grandes projetos que ameaçam não somente a floresta, mas todos os povos que dela dependem.
A Amazônia brasileira historicamente tem vivenciado diversos ciclos desenvolvimentistas. A bola da vez são as chamadas commodities, matérias-primas que são exportadas em estado bruto com pouco valor agregado e livre do pagamento de impostos (Lei Complementar 87/96 – denominada Lei Kandir). Nesse bojo, incluem-se soja, minérios e energia.
Santarém, Mojuí dos Campos e Belterra, municípios localizados no Oeste do Pará, tiveram boa parte de suas terras tomadas pelo monocultivo de soja. Conforme informações do Sindicato Rural de Santarém (Sirsan), para 2017 os produtores estimam a colheita de aproximadamente 200 toneladas de grãos. E para escoar a produção, cresce a demanda por logística de transporte. Portos, rodovia, hidrovia e ferrovia são pensados e começam a sair do papel para atender aos interesses dos sojicultores, já que a rota do Tapajós representa custo reduzido em relação ao porto de Paranaguá (PR) e Santos (SP). Na região de Miritituba (distrito de Itaituba/Pará) há a previsão de construção de 20 terminais portuários.
Contudo, esses grandes projetos econômicos, que apresentam o discurso do “desenvolvimento” como seu principal atrativo, tem se configurado como uma reedição do velho modelo desenvolvimentista que tenta impor à região amazônica a permanência de sua condição colonial. Os empregos gerados são parcos e se dão, sobretudo, no momento inicial dos empreendimentos. Depois, os postos de trabalho são reduzidos e aos operários locais restam aqueles com baixa remuneração. As hidrelétricas de Belo Monte, em Altamira (PA) e Santo Antônio do Jirau, em Rondônia, bem como o porto da Cargil, em Santarém (PA), são exemplos claros disso.
Além da frustração com a falaciosa promessa de geração de emprego e renda, a Amazônia herda também danos ambientais irreversíveis, expropriação de territórios de comunidades indígenas, quilombolas, de pescadores e agroextrativistas, contaminação por agrotóxicos, bem como o inchamento das periferias das cidades, explosão da especulação imobiliária e o crescimento da demanda por políticas públicas urbanas provocadas pelo vertiginoso adensamento populacional.
Diante desses fracassados ciclos desenvolvimentistas, uma questão nos instiga: a Amazônia precisa mesmo de desenvolvimento? Para os não amazônidas, pode parecer um tremendo desperdício que a abundância dos recursos naturais não seja exaustivamente explorada, afinal temos tanta madeira, tanta água, tantos minérios, tanta terra. Por que não lucrar com a comercialização de toda essa riqueza?
Porque o que os outros vêm como recursos a serem saqueados, nós vemos como bens comuns a serem protegidos. Nosso tesouro é outro. Nosso tempo não é aquele marcado pelo veloz ponteiro do relógio do capital. Por aqui, o tempo é definido pelo compasso do ir e vir das canoas na mansidão do rio; pela serena compreensão de que, entre o período do plantio e o da colheita, há o necessário tempo do respirar da terra; o embrenhar-se na mata para a coleta dos frutos ou apenas para revigorar-se pela suprema energia da floresta; as reuniões e as festividades comunitárias para celebrar as conquistas e também para discutir as demandas coletivas; a contemplação do pôr-do-sol, da sinfonia dos pássaros, o respeito às tradições culturais, aos sagrados e à memória dos ancestrais.
Nossa ideia de acúmulo é outra. Acumulamos trabalho coletivo, experiências de solidariedade no repartir do peixe, na troca da farinha pelo açaí (quem tem mais partilha com quem não tem), no diálogo de saberes entre professores acadêmicos e mestres das comunidades, na generosa rede de acolhimento tecida pelas mulheres, na escola da resistência e combatividade tão bem ensinada pelos povos indígenas e quilombolas.
Ah, então a Amazônia está ótima, não precisa de nada? Precisa sim. Precisa que suas potencialidades sejam fomentadas e recebam investimentos públicos. Por que uma região que é tomada por exuberantes paisagens naturais, como a badalada praia de Alter-do-Chão², não aposta no turismo de base comunitária para garantir a geração de renda? Por que a pesca artesanal, a agricultura familiar, os artesanatos indígenas, os traçados do Arapiuns³ não merecem um quarto dos recursos destinados ao agronegócio? Por que as políticas habitacionais não observam que o calor dos trópicos não nos permite morar em casinhas de pombos, como as do programa Minha Casa, Minha Vida? Por que a política de transporte não vê que os nossos rios são as nossas principais vias de acesso entre comunidades e cidades? Por que os produtos vendidos nas feiras, oriundos da agricultura agroecológica não entram na conta na economia da saúde?
A Amazônia precisa ser vista a partir do olhar de seus povos e não pela ambiciosa lente do capital. Precisa da responsabilidade de seus agentes políticos na defesa e proteção do território e dos direitos das populações locais. Precisa do compromisso dos estudiosos com a produção de um saber que dialogue com as especificidades regionais, colaborando na sistematização das vocações produtivas. Precisa do engajamento das lideranças populares e dos movimentos sociais na luta pela defesa do meio ambiente e dos seus modos organizativos, de viver e produzir. Precisa da proteção dos órgãos do Estado para que nossos militantes e ativistas não continuem sendo assassinados pelos latifundiários e grileiros. Precisa da solidariedade e apoio de todas e todos que compreendem que a preservação dos rios e das matas são essenciais não apenas para os amazônidas, mas para o planeta como um todo.
Como se vê, o conceito de desenvolvimento tão apregoado pelos defensores do agronegócio não nos serve. A Amazônia precisa mesmo é de ENVOLVIMENTO. Oxalá a comoção provocada nas pessoas das demais regiões do Brasil e até de outros países por conta da extinção da Renca, seja um auspicioso sinal do seu envolvimento e comprometimento com a defesa do bem viver dos povos amazônidas. Que nos ajudem a romper a lógica colonialista que trata a Amazônia como almoxarifado do mundo e passe conceber toda a sua biodiversidade como bens comuns que devem ser protegidos e manejados de modo equilibrado, a fim de que garantir o bem estar de todo o planeta. Que colaborem nos processos de internacionalização das nossas lutas, sobretudo na aliança com os demais países pan-amazônicos. Que se envolvam na defesa do Xingu, do Madeira, do Teles Pires e do Tapajós – rios amazônicos que não servem para hidrelétricas nem tampouco para corredor de exportação porque suas águas são as veias que fazem pulsar a vida de seus povos.
[1] Artigo publicado originalmente no site do Instituto Teológico Franciscano (aqui), e republicado pela Fase (aqui).
[2] Localizada na margem direita do Tapajós, distante cerca de 30 km de Santarém, por estrada pavimentada (PA-457). Em Alter do Chão existem belas praias de areias brancas, banhadas pelas águas transparentes do rio Tapajós. A vila de Alter do Chão oferece ainda a tradicional Festa do Sairé, conhecida por apresentar uma mistura de elementos religiosos e profanos, com grande participação popular.
[3] Grupo formado por artesãos de Urucureá, localizado no rio Arapiuns, município de Santarém (PA), garante o sustento de moradores locais com a venda de trabalhos em cestaria. É um projeto de artesanato de trançado de palha de uma palmeira chamada tucumanzeiro.