Porto Maravilha: as transformações urbanas na região portuária

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em cerimônia que marcou o início das obras do Porto Maravilha, região portuária da capital

Em outubro de 2009 a cidade do Rio de Janeiro foi escolhida para sediar os Jogos Olímpicos de 2016 e, como parte da preparação da cidade para o evento, no final de 2011, foram iniciadas as obras da Operação Urbana Consorciada da Região do Porto do Rio de Janeiro (OUCPRJ)[1]. O objetivo dessa operação, segundo a prefeitura, é o de qualificar o sistema de infraestrutura de saneamento, de iluminação pública, de telecomunicações, de mobilidade urbana, prover a região com equipamentos públicos e estimular a construção de imóveis comerciais e residenciais. 

A OUCPRJ ocupa uma área de 5 milhões de m², onde residem cerca de 30 mil pessoas distribuídas nas favelas do Morro da Providência, Pedra Lisa, Morro da Conceição, Morro do Livramento, Morro do Pinto, São Diogo, os bairros Saúde, Gamboa, Santo Cristo, Central do Brasil, Cidade Nova e São Cristóvão. A maioria das famílias que vivem na região tem baixos rendimentos e reduzido poder de influenciar nas decisões políticas e na administração pública. Mais de 50% dos moradores/as, conforme pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) de 2010, possuem renda mensal domiciliar per capita inferior a um salário mínimo, ou seja, 216 €, e 26% dos/as moradores/as, de um a dois salários mínimos.

O projeto “Porto Maravilha”, não obstante a importância do petróleo e do turismo para a economia da cidade, se ajusta à crescente financeirização da economia em escala global e ao ideário da mercantilização e privatização dos espaços urbanos, equipamentos e serviços públicos. Portanto, seguindo esta senda, o “Porto Maravilha” se viabilizou lançando mão de dois mecanismos sintonizados a esse contexto: (i) emissão de Certificados de Potencial Adicional de Construção (CEPACs)[2] e (ii) o estabelecimento de Parcerias-Público-Privadas (PPPs).

Para obter parte desses recursos e dar início às obras, a prefeitura emitiu títulos que foram colocados no “mercado de valores mobiliários” (6,4 milhões de CEPACs) e arrematados por R$ 3,5 bilhões pelo Fundo de Investimento Imobiliário do Porto Maravilha (FIIPM), criado com recursos do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço (FGTS), uma espécie de garantia pecuniária dos trabalhadores e administrado pela Caixa Econômica Federal (CEF)[3]. Com isso, a CEF ao adquirir todos os CEPACs, passa a ter a exclusividade para negociar esses títulos no mercado imobiliário, além de ter prioridade na aquisição de parcela do solo da área da OUCPRJ. A maior parte da área do “Porto Maravilha” é pública, pois 6% pertencem ao estado do Rio de Janeiro, 6% ao município do Rio de Janeiro, 63% à União, o que dá um total de 75% de área pública e apenas 25% são propriedades privadas. 

Para a execução das obras e dos serviços, estabeleceu-se uma PPP entre a Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro (CEDURP)[4] e a concessionária Porto Novo (consórcio formado pelas construtoras OAS Ltda., Norberto Odebrecht Brasil S/A e Carioca Christiani-Nielsen Engenharia S/A). Um contrato de 15 anos que vai de 2011 a 2026, pago pelo FIIPM e administrado pela CEF. Esta intervenção urbanística, conhecida como “Porto Maravilha”, em valores de junho de 2011, totalizou investimentos de R$ 8 bilhões.

Inicialmente, no perímetro do projeto “Porto Maravilha”, estariam os imóveis que serviriam como vila de alojamento dos árbitros e dos profissionais da mídia, que atuariam nos Jogos Olímpicos. Mas, a partir da alteração do projeto original, a região portuária não terá mais nenhum equipamento ligado diretamente aos Jogos Olímpicos. A prefeitura informou que essa mudança teve o propósito de reduzir gastos. 

Faltando poucos meses para a abertura dos Jogos, é possível verificar as mudanças na região portuária. Quem chega à Praça Mauá, por exemplo, sofre o impacto visual da arquitetura moderna do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio de Janeiro. Os que optam por circular pela região, podem ver a finalização das obras do aquário marinho, o Áqua Rio, e a conclusão das obras do Veículo Leve sobre Trilho (VLT). Além desses equipamentos, há as atividades culturais que aproveitam a tradição de uma das regiões onde o samba nasceu no início do século XX. Toda essa transformação urbana aumenta as dificuldades para que as pessoas compreendam o quanto os investimentos públicos da segunda cidade mais rica do país são realizados de maneira extremamente seletiva privilegiando os “negócios” em vez do interesse público, sobretudo daqueles que mais precisam. Mesmo com tantas obras, ainda é possível ver a precariedade de serviços essenciais para assegurar moradia digna, por exemplo.

Jogos Olímpicos e a privatização da cidade

Os Jogos Olímpicos, desde a experiência da cidade de Barcelona (local dos Jogos Olímpicos de 1992), tornou-se a panaceia para alavancar o desenvolvimento socioeconômico das cidades. Os grandes eventos esportivos passaram a ser uma das principais justificativas para que o ideário urbano neoliberal pudesse transformar material e ideologicamente as cidades em um ativo importante para a reprodução do capital. Nesse sentido, os agentes políticos, responsáveis pela administração da cidade, em aliança com os agentes econômicos encontraram nos megaeventos esportivos a oportunidade de dotar a cidade de estruturas atrativas que alavanquem o valor de troca do espaço urbano, em detrimento do valor de uso dentro de uma perspectiva pública, adequada a um projeto de desenvolvimento urbano includente.

Qualquer pessoa que passe na região portuária tende a avaliar positivamente o resultado das mudanças ocorridas.  É difícil com um olhar de chofre, mesmo para quem vive ou viveu o cotidiano das obras, ignorar o quanto os equipamentos culturais, as ruas pavimentadas e iluminadas, o sistema de drenagem, as ciclovias, o transporte coletivo adequado aos padrões internacionais de sustentabilidade ambiental como os VLTs, as vias arborizadas, etc, são importantes para a cidade e para o embelezamento local. No entanto, esse mesmo embelezamento acaba produzindo grandes zonas de sombra que escondem os efeitos perversos dessas transformações. Só é possível avaliar os efeitos deletérios de tantas mudanças, que acabam provocando um sentimento de deslumbramento, ao se efetuar uma mirada de conjunto.

Fica cada vez mais evidente com o desenvolvimento das obras, que é o interesse econômico o que move o “Porto Maravilha”. Das atividades culturais mais simplórias às transações comerciais que fazem parte da tradição da região, quase todas são colonizadas pela lógica da reprodução do capital. As diferentes dimensões da vida são tragadas pela racionalidade econômica.  

De acordo com essa perspectiva, orientada pelo urbanismo crítico, são diversas e complexas as questões que merecem análise, mas destacamos ao menos duas: a (i) incapacidade do projeto “Porto Maravilha” de enfrentar a questão do déficit habitacional[5] e (ii) a inexistência de canais consistentes de transparência e diálogo entre o poder público e os diferentes grupos de interesses que vivem, trabalham ou atuam na região.

Esse é o caso quando se toma conhecimento que durante as obras do “Porto Maravilha” 675[6] famílias foram deslocadas da região quebrando o vínculo de vizinhança e de trabalho. Muitas dessas famílias ou foram removidas para bairros distantes do centro da cidade ou estão em dificuldades financeiras e em precárias condições de habitação tendo que depender do “aluguel social”[7]. Em toda a área do “Porto Maravilha”, das oito ocupações que se constituíram apenas o Quilombo das Guerreiras conseguiu um terreno público dentro da área da OUC para a construção de 119 unidades em condomínio residencial no bairro da Gamboa. Todas as demais foram destruídas de forma violenta, sem alternativa de continuarem a viver onde construíram sua história e asseguram muitas vezes o seu sustento.

Ao lado do déficit habitacional na região portuária, cujos números desse déficit dentro do perímetro das obras do “Porto Maravilha” nunca são anunciados pelo poder público, existe uma expressiva quantidade de imóveis vazios que poderiam ser usados para habitação popular. Inclusive, como boa parte do solo da região é público, a prioridade, consoante à legislação urbana vigente no país, seria utilizá-lo junto com os imóveis que só servem à especulação imobiliária, para reduzir o déficit habitacional. O máximo que a prefeitura fez foi elaborar, com a participação dos moradores e organizações sociais, um plano de habitação de interesse social. Nele, sem a clareza para indicar as fontes, as áreas e o cronograma, se projeta a construção de cinco mil unidades habitacionais de interesse social. Uma quantidade considerada tímida para uma região que após as obras e incentivos governamentais, se estima chegar a ter mais 70 mil moradores/as. Enquanto isso, atualmente, milhares de famílias, na falta de alternativa, seguem morando em velhos casarios, em cortiços, em moradias improvisadas ou com péssimo padrão construtivo.

A capacidade de o poder público dialogar com os diferentes interesses presentes na região é extremamente limitada. Caso exemplar foram os projetos desenvolvidos na favela do Morro da Providência e a exclusão do bairro do Caju da OUCPRJ.

No Morro da Providência os/as moradores/as tiveram seus direitos violados: casas foram demolidas, áreas de lazer destruídas, como a Praça Américo Brum – a principal área de lazer dos/as moradores/as -, para a instalação do teleférico e do plano inclinado. Os/as moradores/as da favela do Morro da Providência nunca foram consultados/as e informados/as para avaliar se a construção desses equipamentos de mobilidade eram obras prioritárias para eles/as.  A obra do teleférico foi concluída, mas com a mobilização dos/as moradores/as, as obras do plano inclinado, que seria feito na escadaria histórica do morro, foi paralisada. Em 2012, a Justiça determinou que enquanto a prefeitura não apresentasse o relatório de impacto de vizinhança e ambiental e o projeto da obra, ela teria que ser interrompida. Até março de 2016, a prefeitura não cumpriu a determinação da Justiça.

O bairro do Caju, com cerca de 20 mil moradores/as distribuídos/as em favelas e bairros e com uma infraestrutura urbana mínima, foi retirado do projeto e sem que os moradores fossem consultados. O Caju é uma das principais áreas de sacrifício ambiental da cidade e está localizado na região portuária. Parte do bairro é ocupado por depósitos de contêineres que desembarcam e embarcam em navios com produtos primários e manufaturados. Parece que as autoridades públicas e agentes econômicos viram que ali a prioridade é melhorar as condições de alocação de contêineres e das empresas da indústria de offshore. Não é, portanto, uma área que interesse a indústria imobiliária e não foi alvo de melhorias para a população.

Os bairros mencionados são alguns casos que mostram como o projeto é realizado de maneira autoritária. Não há um espaço constituído, cujos/as participantes tenham sido eleitos/as democraticamente, representando os diferentes setores e segmentos sociais que vivem na região e possam debater os rumos do projeto “Porto Maravilha”. O principal espaço que o poder público municipal e a CEDURP utilizam é o Conselho Comunitário de Segurança da Região Portuária, que não possui essas características.

Segundo Walter Benjamin, em um dos seus ensaios sobre a história da fotografia, Bertolt Brecht afirmou que nenhuma fotografia de uma fábrica é capaz de apresentar como se desenvolve o cotidiano das relações entre patrão e empregados em seu interior. Pode-se inferir analogamente que por mais que equipamentos culturais, como museus, VLT, praças arborizadas, ruas pavimentadas, etc, que embelezam e dão praticidade à região portuária, capturados e congelados em cartões postais e fotografias para a exposição em redes sociais, nunca serão capazes de mostrar os dissabores de milhares de famílias que vivem na região ou foram removidas violentamente para dar passagem ao capital.

 

[1] A OUC é um dos instrumentos urbanísticos da Legislação Federal conhecida como “Estatuto da Cidade”.  Em 23/11/2009 a prefeitura sancionou a Lei Complementar nº 101 que modifica o Plano Diretor e institui a Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da região portuária.

[2] Os CEPACs (Certificados de Potencial Adicional de Construção) são valores mobiliários emitidos pela Prefeitura do Município do Rio de Janeiro e negociados na Comissão de Valores Mobiliários, utilizados como meio de pagamento de contrapartida para a outorga de Direito Urbanístico Adicional dentro do perímetro de uma Operação Urbana Consorciada. Cada CEPAC equivale a determinado valor de m2 para utilização em área adicional de construção ou em modificação de usos e parâmetros de um terreno ou projeto.

[3] A Caixa Econômica Federal, instituição bancária pública, é responsável por financiar habitação e saneamento no Brasil. Majoritariamente os recursos da CEF advêm do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). Este é formado pela soma do valor correspondente a 8% da folha de pagamento mensal que o empregador é obrigado a depositar na conta do FGTS de cada empregado contratado sob o regime da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Nos últimos anos, parte dos recursos dos trabalhadores tem sido utilizada na criação de fundos de investimento em projetos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que não se restringem a obras de saneamento e habitação.

[4] A Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região do Porto do Rio de Janeiro, instituída pela Lei complementar nº 102, é a gestora da prefeitura na Operação Urbana Consorciada Porto Maravilha. Cabe à CEDURP a articulação entre os demais órgãos públicos e privados e a Concessionária Porto Novo - que executa obras e serviços nos 5 milhões de metros quadrados da Área de Especial Interesse Urbanístico (AEIU) da Região do Porto do Rio.

[5] O déficit habitacional na região metropolitana do Rio de Janeiro, conforme estudo da Fundação João Pinheiro com informações do ano de 2011-2012, é de cerca de 290 mil domicílios. FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Déficit habitacional no Brasil 2011-2012. Belo Horizonte, 2015. Disponível em http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/docman/cei/559-deficit-habitacional-2011-2012, acesso em 20/04/2016.

[6] COMITÊ POPULAR DA COPA E OLIMPÍADAS DO RIO DE JANEIRO. Dossiê Megaeventos e violações dos direitos humanos no Rio de Janeiro,  Olimpíadas Rio 2016: os Jogos da Exclusão. Rio de Janeiro, 2015.

[7] Durante o processo de remoção o poder público tem utilizado das seguintes modalidades para retirar as famílias de suas moradias: indenização, quando se paga um valor por benfeitorias realizadas pelo morador/a; aquisição assistida, na qual o poder público acompanha a compra e paga pelo novo imóvel que será ocupado pela família removida; aluguel social, provimento à família removida de um determinado valor por certo tempo para ficar em um imóvel até que a nova unidade habitacional esteja pronta. De maneira geral, em todo o Brasil, são raras as ocorrências na modalidade “chave a chave”, ou seja, quando a família é transferida imediatamente para o imóvel novo em bairros próximos ou distantes da antiga moradia. Dentro do “Porto Maravilha” essa modalidade ainda não ocorreu.