O reverso da medalha: Megaeventos no Brasil e o direito à cidade

Enquanto sistemas sociais e de saúde são sub financiadas no Brasil, bilhões de reais financiam a construção de novos estádios e centros esportivos para a Copa do Mundo e agora, as Olimpíadas.

Um ano antes da Copa, durante a Copa das Confederações, em junho de 2013, milhões de brasileiros foram às ruas. Em protesto contra a Copa mais cara de todos os tempos em seu próprio país, ostentavam cartazes com palavras de ordem como "queremos escolas e hospitais padrão Fifa" ou "quando seu filho ficar doente, leve-o a um estádio". É raro um brasileiro ser contra o futebol, mas enquanto o governo apresentava o Brasil como grande potência econômica, os preços das passagens dos transportes públicos caóticos e insuficientes subiam, as crianças não aprendiam o básico nas escolas públicas e os hospitais padeciam escassos recursos públicos. Embora não fosse o que estava escrito nos cartazes, o fato é que, além de novas formas de representação política, as pessoas estavam exigindo o respeito aos seus direitos econômicos e sociais. Afinal, a própria política-social bem-sucedida dos governos Lula e Dilma os encorajara a tal atitude.

Antes das Olimpíadas, os protestos voltaram a se disseminar pelo Brasil - mas, desta vez, no centro das disputas estava a queda do governo Dilma Rousseff. A presidente foi afastada do cargo, e está em curso um processo de impeachment. Como pano de fundo, um imenso escândalo de corrupção em torno da gigante do petróleo, a Petrobras, está envolvendo, entre outras empresas, as grandes empreiteiras. E isso nos leva diretamente às Olimpíadas. Os preparativos para os Jogos de 2016 deram sequência a casos de franca agressão à lei, falta de transparência e ao leilão de bens públicos iniciados antes mesmo da Copa de 2014. Para muitos, princípios olímpicos como honra, justiça e participação não têm valor algum. Pois, o que orienta o atual modelo não é a convivência ou a solidariedade, nem a diversidade ou condições de vida dignas para a população em um ambiente coletivo. Ao contrário, este tipo de megaevento tenta "vender" a cidade enquanto localização e "empreendimento", na busca global por investidores, turistas e serviços. Em resumo, o que dita este modelo é o valor de troca em vez do valor de uso, o princípio de investimento no lugar do princípio do direito, o interesse privado em vez do interesse coletivo.

Megaeventos custam muito dinheiro - e cada vez mais. Isso custa a perda de direitos, ou da oportunidade de concretizá-los. A Copa de 2014, a mais onerosa de todos os tempos, foi contabilizada em R$ 27,8 bilhões, dos quais 80% eram recursos oficiais. Para os Jogos Olímpicos do Rio, o orçamento é de R$ 39 bilhões, segundo informações oficiais.  Somem-se a isso custos ocultos de valor considerável. Assim como a Fifa, o Comitê Olímpico Internacional, o Comitê Olímpico Nacional e as empresas fornecedoras receberam isenção de impostos sobre importações, produtos industrializados, imposto de renda e imposto sobre circulação de mercadorias. As autoridades brasileiras calculam que os tributos não pagos cheguem a R$ 3,8 bilhões – seis vezes a soma que deixou de ser arrecadada pelo fisco brasileiro durante a Copa do Mundo. As empresas que trabalham nas Olimpíadas são favorecidas por créditos a juros mais baixos de bancos públicos, os quais, no entanto, vão buscar os recursos a juros de mercado. Essa diferença também é paga pelo contribuinte, além de vultuosas somas adicionais decorrentes de despesas com segurança.  Finalmente, os numerosos feriados adicionais podem até fazer a alegria de alunos e trabalhadores, mas para a economia nacional significam prejuízos incalculáveis.

Os ganhadores dos megaeventos são as grandes empreiteiras. No Brasil, isso diz respeito a quatro das "cinco irmãs": Odebrecht, Andrade Gutierrez, OAS e Camargo Corrêa (a quinta é a Queiroz Galvão). O apelido revela a estrutura cartelizada e a forma de atuação desses conglomerados multinacionais brasileiros em licitações. Pelo menos duas das quatro empresas participaram direta ou indiretamente em praticamente todos os grandes projetos de infraestrutura na cidade do Rio de Janeiro nos últimos anos, muitas vezes associadas em consórcio. As "cinco irmãs" participam de dez megaprojetos para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas, num valor total de cerca de R$ 10 bilhões. No curso das investigações contra corrupção em torno da Petrobrás foram presos altos funcionários das "irmãs" e de outras empreiteiras e empresas. O ex-presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrecht, foi condenado a uma pena de prisão de 19 anos em março de 2016. 

As empreiteiras são, de longe, os maiores doadores de políticos e de partidos de todos os matizes. Sem esses recursos, os políticos brasileiros em todos os níveis não conseguiriam financiar suas campanhas eleitorais. A partir do primeiro dia em seus cargos, no entanto, os eleitos se tornam devedores de seus doadores. E assim o modelo " cidade-empresa" se expressa também no sistema de financiamento dos partidos.

A opinião pública já sabe que esses megaeventos significam altos custos para a coletividade. Para que a população os aceite, portanto, é preciso haver melhorias para a grande maioria, além da diversão com os esportes. Mas essas melhorias não se realizam tão facilmente. Os prometidos efeitos econômicos positivos não acontecem - por exemplo: não se criam novos empregos adicionais duradouros - ou são mínimos, como é o caso no turismo. Restam os legados nas áreas dos transportes públicos urbanos e de infraestrutura. Com a Copa de 2014, as autoridades olímpicas aprenderam que cinco dos 12 estádios da Copa entram para a história como "elefantes brancos": megaprojetos bilionários que ninguém mais usa, mas cuja manutenção custa muito aos cofres públicos municipais.  Já os espaços de competição olímpicos no Rio poderão tanto beneficiar as modalidades esportivas de competição e de lazer como serem desmontados. As unidades habitacionais na Cidade Olímpica já foram parcialmente vendidas. Não só foi ampliada a rede de metrô, como foram construídos quatro BRTs. Como eles se situam basicamente na zona oeste, isso melhora as condições de tráfego para milhões de cariocas em uma região tradicionalmente negligenciada. No centro da cidade, como em muitos outros lugares do mundo, o bonde está renascendo.

Até aqui, tudo muito bem. Examinando de perto, entretanto, o quadro muda. Os trajetos de BRT ligam os aeroportos e hotéis aos locais de competição em vez de terem sido projetados de acordo com as necessidades da população. Duas linhas estão em operação e já bateram no limite de sua capacidade. A segurança de tráfego, pelo visto, foi negligenciada, pois em pouco mais de dois anos houve 22 mortes e quase 200 feridos. Uma ampliação forçada do metrô é - ou melhor, seria - o caminho correto. Depois de 37 anos de construção, no entanto, a rede subterrânea do Rio mede apenas 41 quilômetros. A ampliação do trajeto ao longo dos bairros mais ricos significa uma prioridade digna de debate. O caos no transporte público deu origem aos protestos nas ruas de 2013. Gente que passa diariamente quatro, cinco ou mais horas no trânsito, geralmente em pé, vê diminuir as horas e a energia para cuidar da própria educação ou da dos filhos, de investir na família e muito menos de participar da vida cultural. Diferentemente do que ocorre na Ásia ou na África, as grandes cidades brasileiras já não crescem mais - ou apenas marginalmente. Se a omissão da ação governamental tem tais consequências para a vida e as oportunidades de milhões de pessoas, está na hora de discutir as políticas de transporte público sob a ótica dos direitos humanos.

Já a expulsão de pessoas de suas casas sem que sejam informadas e indenizadas adequadamente e no prazo correto é uma agressão indubitável aos direitos humanos. Foi o que aconteceu com milhares de pessoas no Rio e em outras cidades-sede da Copa do Mundo. Inúmeras famílias perderam seus lares para dar lugar aos trajetos do sistema BRT. Para os planejadores do Parque Olímpico, que abrigará as disputas de 16 modalidades esportivas, a Vila Autódromo era uma pedra no meio do caminho. A resistência dos moradores se tornou mundialmente conhecida. Muitos detinham títulos de propriedade por terem sido assentados ali pelas próprias autoridades nos anos 1990, depois de terem sido removidos de outras favelas. Em parceria com a UFRJ, moradores fizeram um plano de desenvolvimento alternativo prevendo tanto o Parque Olímpico quanto a permanência do assentamento e uma modernização de acordo com critérios ambientais, a preços bem mais reduzidos. O plano ganhou o prêmio da Urban Age Award da Fundação Alfred Herrhausen do Deutsche Bank, mas foi ignorado pela administração municipal. Das quase 600 famílias, apenas cerca de 30 permanecem na Vila. Grande parte dos moradores saiu voluntariamente,  sendo reassentados em uma habitação social próxima. Alguns poucos receberam uma boa indenização por parte da municipalidade, tudo de acordo com as regras do direito internacional em caso de remoções forçadas. Outros sofreram pressão por parte das autoridades que jogou o entulho das unidades vizinhas demolidas na porta de suas casas e receberam propostas de indenização bem inferiores ao valor do mercado. A maioria das famílias removidas no Rio de Janeiro foi para pequenas unidades na periferia, a 40 km do centro da cidade, já com fissuras nas paredes.

A modernização dos transportes públicos foi uma das promessas das Olimpíadas de 2016. A segunda, a limpeza da Baía de Guanabara. A antiga jóia da cidade há muito se transformou em cloaca e estacionamento de plataformas de petróleo e grandes petroleiros. Além da metrópole de 6 milhões de habitantes, as águas da baía são margeadas por 14 cidades, refinarias e milhares de empreendimentos industriais. É lá que, em agosto, serão realizadas as competições a vela. O Comitê Olímpico brasileiro prometera reduzir a poluição em 80% até o início das competições. O governo estadual iniciou um grande programa de saneamento da baía já em 1994. Doze anos - e R$ 4 bilhões - depois, continuam sendo despejados na baía 18 mil litros de esgoto não-tratado por segundo. Quantidades incalculáveis de lixo sólido flutuam na superfície das águas poluídas por bactérias. A maior parte dos recursos foi investida na construção de estações de tratamento de esgoto (ETE's). Acontece que a maioria continua parada por falta de interligação com as redes de canalização. O governo estadual fez as estações de tratamento, mas os municípios não construíram nem as redes de canalização, nem os acessos. Resultado: sem uso, as novas ETE's estão se deteriorando. De acordo com dados oficiais, 66% do esgoto doméstico é canalizado, mas o fato é que igualmente 66% do esgoto de 6,6 milhões de pessoas são despejados sem tratamento na baía, porque somente 34% das casas são servidas por redes de canalização que conduzem até uma ETE. Portanto, a meta dos 80% ficou adiada oficialmente para um futuro ainda bastante incerto.

Houve avanços no tratamento do lixo, que é mais um problema ambiental da baía. Grandes lixões a céu aberto, que costumavam despejar toneladas de lixo na baía, foram fechados. Quatro grandes estações de tratamento de lixo foram abertas desde 2008. Parece até tragicômico o fato de o governo estadual ter enviado algumas "ecobarreiras" e 10 pequenos "ecobarcos" para retirada de lixo flutuante por parte de voluntários. Em vista de 346 quilômetros quadrados de superfície d'água, essa medida no máximo pode ser considerada como ação de marketing.

O que a maioria conservadora no Congresso brasileiro não foi capaz de aprovar na época da Copa do Mundo, a primeira lei antiterrorismo brasileira, conseguiu agora, às vésperas da Olimpíada. Não raro, relações sociais entre indivíduos e classes são violentas no Brasil, mas a verdade é que a violência política extremada ainda é estranha ao país. Até agora, mesmo no clima político atual, polarizado e aquecido, não houve pancadarias ou atos de violência mais radicais entre partidários e adversários do governo. Já no caso do futebol, enfrentamentos violentos entre hooligans não raras vezes resultam em mortos. Mesmo assim, o Congresso achou que o Brasil precisava de uma legislação antiterror. Pelo jeito, os protestos de 2013, quando milhões foram às ruas querendo mandar todos os políticos para casa, deixaram marcas profundas. Naquela época, grupos radicais enfrentaram uma polícia despreparada, que fez o que pôde: lançar mão de uma violência desproporcional.

A lei de 16 de março de 2016 definiu o terrorismo de maneira vaga e ampla como "a prática, por um ou mais indivíduos dos atos previstos neste artigo, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”. A pena de reclusão fica entre 12 e 30 anos. Há quem tema que, assim, a oposição política possa ser classificada como ato criminoso, se isto convier a algum governo, o que significaria uma possível criminalização do protesto político. Trata-se de mais uma lição dos megaeventos esportivos: outro ganhador costuma ser sempre o chamado setor de segurança: câmaras de vigilância cobrem o espaço público, tentando limpá-lo dos chamados "elementos indesejáveis". A política e o exército recebem novas incumbências (que, depois, já não são mais limitados) e se armam fortemente com as chamadas armas não-letais, como taser, balas de borracha e gás lacrimogêneo. Num país em que partes da polícia representa um considerável risco de segurança - e não apenas para homens jovens e negros - esta não é uma boa notícia.