As Raizeiras do Cerrado lutam pelo direito de prosseguir praticando a medicina tradicional através do uso das plantas disponíveis naquele que é o segundo maior bioma da América Latina. Através do conhecimento no manejo de mais de 300 espécies de plantas e ervas, esse grupo, formado em sua maioria por mulheres, faz o uso sustentável da biodiversidade na produção e na venda de medicamentos terapêuticos. Além disso, a medicina tradicional insere as comunidades locais em um grande plano de inserção sociocultural. Farmacinhas comunitárias funcionam sob a lógica de que o pagamento para os medicamentos, vendidos a baixo ou nulo custo, é a cura. As Raizeiras também produzem conhecimento enquanto pesquisam as plantas e os métodos de sua medicina. O movimento luta para se tornar um Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e no Dia Internacional do Meio Ambiente, a Fundação Heinrich Böll entrevistou Jaqueline Evangelista, coordenadora técnica da Articulação Pacari, uma de nossas parceiras e especialista em plantas medicinais no Cerrado.
Böll Brasil: O trabalho das Raizeiras do Cerrado é um projeto de valorização e conservação do bioma e também de inserção sociocultural das pessoas que vivem na região. De que forma isso acontece?
Jaqueline Evangelista: Acreditamos que esse trabalho de conservação dos ecossistemas está diretamente relacionado com o uso dos conhecimentos tradicionais. Sem a biodiversidade o conhecimento tradicional vai se acabando. E sem o conhecimento tradicional também não há um uso sustentável da biodiversidade. As Raizeiras utilizam diversas espécies do Cerrado, são mais de 300 espécies de plantas medicinais prioritárias em conservação para o uso medicinal que as raizeiras identificam no Cerrado e esses recursos são utilizados na medicina tradicional. Elas fazem remédios caseiros e esses remédios são feitos em farmacinhas comunitárias que fazem atendimentos de saúde às pessoas da comunidade em geral. Há uma grande preocupação das Raizeiras tanto para fazer a coleta sustentável das plantas usadas, que compreende conhecer os ambientes em que as plantas ocorrem, as relações ecológicas e relação das plantas com os animais, a questão da conservação das nascentes e as ameaças, como uma forma de monitoramento que elas vão tendo com seus lugares de coleta. Elas dependem dessa fonte de recursos naturais da biodiversidade para darem continuidade ao trabalho da medicina tradicional e também de geração de renda através da venda dos remédios caseiros. As Raizeiras do Cerrado têm um papel social imprescindível pra gestão e monitoramento dos territórios.
Böll Brasil: Qual a importância do Protocolo Biocultural do Ofício de Raizeiras e Raizeiros do Cerrado e como está o processo de registro e reconhecimento das Raizeiras do Cerrado como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil?
Jaqueline Evangelista: O Protocolo é um instrumento político que as raizeiras construíram e precisa ser mais visibilizado, pois serve para inserir em espaços políticos a defesa da prática da medicina tradicional. Ele foi levado para o Comitê da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e é um instrumento que as outras redes que trabalham com plantas medicinais no Brasil querem multiplicar e querem fazer protocolos comunitários por biomas para aí chegar a um protocolo nacional que possa defender a prática da medicina tradicional e preparação e comercialização dos remédios caseiros. O Protocolo é um marco inicial para ser modificado e fortalecido politicamente por outras organizações e movimentos sociais na conquista de uma legislação específica que defenda a prática da medicina tradicional e a comercialização de remédios caseiros. O processo está em andamento. Recentemente houve uma nova conversa com o IPHAN [Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional], que tem interesse de dar procedimento ao processo de reconhecimento. Estamos em um momento que nós vamos ter que reforçar e retomar alguns pontos que ainda ficaram fracos no levantamento preliminar do Ofício, pois temos que entender a fundo a identidade social das Raizeiras e como elas fazem uso dos recursos naturais da biodiversidade.
Böll Brasil: O grupo das Raizeiras do Cerrado é bastante grande e inclui mulheres e homens. Sobre o aspecto da temática da igualdade de gênero, qual a importância da projeção desse tema e porque do nome raizeiras no feminino para representar o coletivo?
Jaqueline Evangelista: A prática da medicina tradicional é feita por homens e mulheres, por raizeiras e raizeiros do Cerrado. Como a luta é política, pelo reconhecimento da identidade social de quem pratica a medicina tradicional do Cerrado, e que vem sendo encampada na maior parte de sua composição por mulheres, responsáveis pela prática de conhecer os ambientes do Cerrado, por conhecer as plantas, por fazer a coleta sustentável e por fazer principalmente um trabalho de saúde comunitária junto às pessoas de sua comunidade, a gente vem destacando a importância de manter esse identitário no feminino. Pelas mulheres serem as protagonistas dessa luta de reconhecimento da identidade desse coletivo que vem a ser uma das coisas cruciais com reconhecimento da prática da medicina. A gente entende que não tem como reconhecer a prática da medicina tradicional sem reconhecimento da identidade de quem faz essa luta política e por isso priorizamos o papel das mulheres.