Humilhação e criminalização a cada visita

Campanha pelo fim da revista vexatória
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Após um ano de campanha, revista vexatória está proibida em dez estados

A revista vexatória nos sistemas prisional e socioeducativo brasileiro     

Finalmente entrou em vigor no Rio de Janeiro a lei que extingue a revista vexatória em presídios do estado (Projetos de Lei nº 77/2015 e 76/2015). Aprovados na Assembleia Legislativa os projetos tinham sido vetados pelo governador Luiz Fernando Pezão sob a alegação de que o fim da revista vexatória colocaria em risco a segurança do sistema penitenciário. Objeto de constantes denúncias de ONGs nacionais e internacionais, a revista vexatória submete familiares em visita às pessoas privadas de liberdade a passarem por uma inspeção sem roupas feitas por agentes penitenciários. Clara violação de direitos humanos o procedimento degradante será substituído por detectores de metal e sensores, como raio-X e scanners.

                                                                                                                                                             

A revista vexatória, hoje ainda presente em grande parte dos estados brasileiros, consiste no desnudamento de familiares de presos diante de um espelho para realização de inspeção em sua genitália feita por agentes carcerários. Sendo forçados a fazer isso a cada visita no presídio, crianças, mulheres e idosos passam por esse procedimento degradante e atentatório à dignidade humana todos os dias no país: em torno de 3.5 milhões de revistas vexatórias foram realizadas apenas no estado de São Paulo em 2012. Estima-se que em torno de meio milhão de pessoas tenham que passar semanalmente por este processo no Brasil.

Os relatos coletados pela campanha “Pelo fim da Revista Vexatória”[1], promovida pela Rede de Justiça Criminal, da qual a Justiça Global faz parte, coletam depoimentos em forma de carta destes familiares e apontam o sofrimento e traumas deixados por aqueles que passam pelo procedimento. A.C., mãe de detento, do Rio de Janeiro denuncia que a medida é aplicada também a bebês, na qual agentes pedem para que as mães retirem as fraldas e abram os órgãos genitais das crianças para realizarem  inspeção,  o mesmo se passa com as idosas que a fazem diante de um espelho, sendo insultadas de “porcas” e “fedorentas” por agentes do estado. A ausência de denúncias formais se dá por medo de impedimento das visitas, ou então, por receio de que os detentos passem por maus tratos e torturas.  J.A. irmã de um detento, afirma que diversas vezes é possível ver mães e esposas de presos chorando por saberem que a hora do procedimento está próxima. G.S., esposa de um preso, afirma que foi exigida que  fizesse vinte minutos de contração abdominal durante o procedimento, sendo liberada após uma série de perguntas, já aos prantos. Segundo J.A. outra mulher que não realizou o procedimento exatamente da forma que as agentes queriam foi agredida e  afirma que “se arrependeu de ter entrado”. Mulheres são o grupo mais afetado pela medida.

A revista vexatória atenta contra diversos princípios do direito constitucional e penal brasileiro, além de tratados e convenções internacionais de direitos humanos, sendo considerada tratamento desumano e cruel, podendo caracterizar até tortura. Inicialmente é contrária ao direito penal que afirma que a pena não pode ultrapassar aquele condenado pelo crime. Além da própria prática ser claramente utilizada para penalizar os familiares, ainda é marcada por um discurso de criminalização, no qual durante o procedimento são comumente interrogados a respeito do porque mantém relacionamento com os apenados e que provavelmente teriam grandes chances de levarem ilegalmente produtos ilícitos ou não autorizados para os presídios. Essa argumentação falaciosa busca fazer parecer que a manutenção da revista é a única forma de garantir a segurança dentro do sistema penitenciário e esconde que o real motivo de sua subsistência é a crença do Estado brasileiro de que presos e familiares devem ser alvos de políticas sistemáticas de violações a direitos humanos. Ao invés disso, o Estado deveria compreender que seu dever é ainda maior em garantir o respeito aos direitos para aqueles que estão sob sua custódia, conforme amplo precedente estabelecido em órgãos internacionais[2].

Esta leitura desumanizada dos familiares dos presos feita pelo Estado, disfarçada de uma “proteção à ordem”, tornou-se evidente quando observamos o processo de aprovação na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ)[3] dos Projetos de Lei 77 e 76 de 2015, que proíbem a revista vexatória. Aprovadas, as medidas receberam veto do Governador do Estado do Rio de Janeiro, sob a alegação que colocaria o sistema carcerário estadual em risco. No mesmo sentido, foi emitida uma nota pelo Sindicato dos Servidores do Sistema Penal-RJ tentando convencer os deputados da não derrubada do veto. As duas iniciativas argumentavam que caso os projetos fossem aprovados levariam o caos ao sistema penitenciário nacional já que originaria “[n]uma desordem sem precedência de rebeliões e, motins com mortes e fugas constantes como jamais visto no país”[4]. No entanto, os dados apontam justamente o contrário: das 3.5 milhões de revistas feitas em São Paulo, apenas 0,02% delas de fato originaram a apreensão de qualquer material ilícito ou celular. Ademais, o próprio presidente da ALERJ já havia se comprometido a doar parte da verba da Assembleia para realização de um edital que garantisse a compra de scanners para que a revista pudesse passar a ser feita de forma mecânica. Na realidade, o que este argumento quer preservar não é a segurança do sistema carcerário, que não está em cheque ou ameaçado com a abolição da revista vexatória, mas sim a manutenção de um dispositivo que reforça o racismo e a violência contra mulheres, expondo familiares de presos diariamente a um procedimento que claramente possui semelhanças à violência sexual. Após a derrubada dos vetos aos PLs, uma portaria do Executivo estadual, diversas decisões judiciais e a aprovação dos dois projetos de lei, finalmente a revista vexatória está proibida no estado do Rio de Janeiro.

Em um voto recente o Desembargador Sérgio Verani, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, entendeu ser uma medida absolutamente ilegal qualquer prova adquirida por intermédio de revista vexatória, por considerar que a medida viola “direito fundamental à intimidade e à dignidade da pessoa humana”[5].

O subcomitê de Prevenção à Tortura da ONU, em 2012, no seu relatório para o Brasil já expôs a necessidade de leis que impeçam a revista anal e vaginal, garantindo que as revistas em presídios e no sistema socioeducativo respeitem a dignidade humana, a salubridade, com base nos critérios da razoabilidade, necessidade e proporcionalidade[6]. Em nossas visitas de monitoramento das condições de privação de liberdade  registramos diversos relatos de  presos que pedem para seus familiares pararem de visitá-los por conta da prática ou os próprios familiares não conseguem mais fazê-lo pelo nível de violência que representa para as mulheres e crianças. Mães e avós decidem não expor seus filhos à revista vexatória e por isso não os levam mais para visitas. Conforme colocado pela Pastoral Carcerária de São Paulo: “Quando as mulheres tem filhos ou netos precisam ‘escolher’ entre a saudade e a revista vexatória”[7].

Além da eliminação da revista aos familiares é importante também que se vetem as revistas vexatórias que atingem as pessoas privadas de liberdade. Em nossa atividade de monitoramento do respeito aos direitos humanos e socioeducativas, temos sistematicamente ouvido relato de diversos abusos por parte de agentes penitenciários e socioeducativos. No sistema socioeducativo[8] do Espírito Santo, já ouvimos relatos de adolescentes informando que durante o “procedimento”[9] agentes examinavam seus pênis e anus.

A revista vexatória já foi abolida em nove estados[10], seja através de decisões judiciais, portarias administrativas ou leis. No entanto, ainda é longo o processo para garantir a eficácia prática. De acordo com organizações não governamentais de São Paulo, apesar da lei que veta a realização da revista ter sido aprovada, ainda se mantém como prática em diversas penitenciárias do Estado[11]. Em nível federal, um projeto de lei tramita no Congresso (PLS 7764 /201)[12] proibindo a revista em todos os presídios do país. Esse já foi aprovado na Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, por unanimidade, e aguarda votação na Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado. A aprovação de legislações que vetem a prática é um passo político importante, no entanto, sozinha não ocasiona uma mudança no quadro atual.

 


[2]CIDH. Informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas, 2011Parr.49, disponívelem< http://www.oas.org/es/cidh/ppl/docs/pdf/PPL2011esp.pdf&gt;

[5]TJRJ. 5ª Câmara Criminal,Apelação nº 0123573-24.2010.2.19.0001, decisão de dia 08.11.2012

[8] Sistema socioeducativo é composto pelas instituições que internam adolescentes acusados de cometer atos análogos a crimes.

[9] Forma como são chamadas as revistas ou encaminhamento para castigo

[10]Paraiba, Goias, Minas Gerais, Espirito Santo, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rondonia.