Foi durante o governo de coalisão de verdes e socialistas, que em 2002 a Alemanha aprovou a LProst (Lei de Prostituição), uma legislação que legalizou o trabalho sexual. Antes de 2002, esse trabalho não era ilegal nem proibido: as pessoas que o exerciam tinham que pagar impostos, mas ao mesmo tempo, a atividade era considerada imoral e sem valor jurídico numa disputa entre clientes e profissionais do sexo.
Durante a Copa do Mundo de 2006 na Alemanha uma manchete recorrente na imprensa foi que 40 mil prostitutas invadiriam as cidades alemãs vindas do Leste Europeu. A manchete alarmista, que mostrou-se falaciosa, fez ressurgir discursos discriminatórios e preconceituosos contra trabalhadoras do sexo, e impôs o debate sobre prostitutição e migração. Veronica Munk, ativista e pesquisadora do tema, afirma que "para o Movimento de Prostitutas e Simpatizantes, a LProst de 2002 foi o primeiro passo para o reconhecimento dos direitos civis e trabalhistas de trabalhadores do sexo na Alemanha".
No Brasil, com a realização da Copa ressurgiu o debate sobre a regulamentação do trabalho dos profissionais do sexo. O exemplo alemão nos dá algumas pistas para entendermos os avanços e desafios em relação ao tema.
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Apesar do seu reconhecimento como profissão desde 2002, trabalhadores do sexo na Alemanha ainda estão sujeitos à discriminação, moralismos, incertezas e mal entendidos. Mesmo assim, o reconhecimento formal significou um avanço em termos de direitos humanos. Um avanço que só existe em quatro outros paises da União Européia. Em 20 deles não há legislação própria, e na Lituania e Romenia a prostituição é proibida.
A Alemanha tem 82 milhões de habitantes. Estima-se que entre 100 mil e 300 mil mulheres, homens e transsexuais exerçam o trabalho sexual. Pelo fato de não existirem estudos científicos, esta estimativa se refere a pessoas que exercem este trabalho de forma integral ou parcial, num período de um ano.
Estima-se também, que cerca de 70% são estrangeiros, sendo que a maioria neste grupo é de cidadãos da própria UE, sobretudo búlgaros, romenos, poloneses, húngaros, tchecos e lituanos. A expansão da UE em 2004 e 2007, que abriu as fronteiras e o mercado de trabalho, estimulou o movimento migratório e trouxe mudanças visíveis, também na prostituição.
A Lei de Prostituição de 2002
A prostituição na Alemanha foi legalmente regulamentada a partir de janeiro de 2002. O trabalho sexual, antes de 2002, não era ilegal nem proibido: as pessoas que o exerciam tinham que pagar impostos, mas ao mesmo tempo, a atividade destas pessoas era considerada imoral e portanto, sua palavra não tinha valor jurídico.
O objetivo da Lei de Prostituição (LProst) de 2002 foi o de abolir a imoralidade da atividade, criar regras jurídicas para o seu exercício e assim melhorar as condições de trabalho daqueles que o exerciam. A LProst é composta de três pontos somente:
1. Trabalhadores do sexo têm o amparo da lei para cobrar o pagamento por serviços prestados e não quitados;
2. Podem escolher entre trabalhar como empregados ou autônomos. Em ambos os casos com obrigações e direitos a benefícios sociais como de qualquer outra atividade laboral;
3. Foi abolida a lei que considerava como ‘promoção da prostituição’ o fato de bordéis oferecerem boas condições de trabalho ou ter, por exemplo, preservativos à disposição dos clientes.
Para o Movimento de Prostitutas e Simpatizantes, a LProst de 2002 foi o primeiro passo para o reconhecimento dos direitos de trabalhadores do sexo na Alemanha. Um passo extremamente importante e significativo, mas somente o primeiro de vários outros passos, que se incumbiriam de garantir a descriminalização total do trabalho sexual. Estes outros passos, entretanto, até hoje não foram dados.
Os avanços
A regulamentação da prostituição foi o passo que permitiu que o trabalho sexual saísse do limbo. A Lei é um instrumento concreto na defesa dos direitos das pessoas que exercem ou queiram exercer esta atividade e, ao mesmo tempo, é uma base legal contra a discriminacação.
Outro fator positivo da LProst é o fato dela ser uma regulamentação ‘voluntária’, isto é, ela não obriga uma pessoa a declarar oficialmente que é prostituta ou michê. Isto é vantajoso para aqueles que receiam a estigmatização ainda existente.
E o fato da prostituição ter sido legalizada, fez com que cidadãos da União Européia possam trabalhar como empregados ou autônomos sem maiores obstáculos burocráticos.
As pendências
De acordo com a avaliação oficial sobre o impacto da LProst, feita em 2005 pelo Instituto de Estudos de Ciências Sociais da Mulher (Freiburg), a Lei teve, entretanto, um impacto limitado, por duas razões:
n as legislações periféricas, como as que regem tributação, autonomia ou vínculo empregatício, imigração, uso de bares e restaurantes, contravenção e outros crimes, não foram modificadas ou adaptadas de acordo com a LProst;
n A LProst, apesar de federal, não é aplicada de forma igual em todo o país. Na Alemanha, um país federativo, onde cada um dos 16 Estados pode aplicar ou interpretar leis de formas diferentes, faz com que autoridades tenham diferentes visões de um mesmo assunto e consequentemente, diferentes formas de lidar com ele.
Esta situação dificulta, traz incertezas e insegurancas tanto para aqueles que exercem a prostituição, como para as autoridades responsáveis pela aplicação da lei. Apesar da LProst, da legalidade e do reconhecimento, as contradições existem:
Criminalização: o trabalho sexual ainda é criminalizado, principalmente o de rua, que é proibido em determinadas áreas de algumas cidades como Dortmund, Hamburgo e Munique, e ultimamente tem vindo acompanhado da penalização de clientes. Cada vez mais cidades adotam estas medidas.
Estigmatização: pessoas que exercem o trabalho sexual ainda são discriminadas. Geralmente, prostitutas não são convidadas, como seria de se esperar, a participar de discussões ou decisões que dizem respeito a elas.
Impostos: a cobrança de impostos varia de acordo com o Estado ou até a cidade. Existem cidades onde existe um pagamento antecipado diário, que pode ir de 15 a 30 euros por dia (de 45 a 90 R$), recolhido pelo dono ou administrador do bordel. Há, entretanto, outras cidades onde isso não existe.
Lei de Imigracão: uma pessoa de fora da União Européia não pode requisitar um visto de trabalho e residência com o intuito de trabalhar na prostituição. Isso pode propiciar dependência e exploração de migrantes por terceiros.
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Falam as putas...
A Associação Profissional de Serviços Eróticos e Sexuais (Berufsverband erotische und sexuelle Dienstleistungen, www.sexwork-deutschland.de), criada em Frankfurt, em outubro de 2013, é da seguinte opinião:
Punição de clientes
Rejeitamos todo e qualquer tipo de punição de clientes de prostitutas, por isso levar a atividade à clandestinidade, o que comprovadamente aumenta a violência contra prostitutas, a dependencia de terceiros e a insegurança.
Autonomia
Queremos que trabalhadores do sexo sejam tratados como qualquer outro trabalhador autônomo, tanto em relação a impostos como a direitos trabalhistas. Prostituição é uma atividade legal e não necessita de impostos especiais.
Registro compulsório
Rejeitamos o registro compulsório por isto forçar uma identificação nem sempre desejada.
Regras para estabelecimentos
Rejeitamos a regulamentação de estabelecimentos como forma de controle sobre profissionais do sexo. Queremos profissionalismo e condições de trabalho adequadas.
Abolição das áreas proibidas
Queremos soluções pragmáticas, onde os interesses dos trabalhadores do sexo, dos moradores e dos comerciantes sejam igualmente respeitados e considerados. Cada trabalhor do sexo tem o direito de escolher a sua forma de trabalhar: se na rua ou dentro de casas.
Consultoria
Queremos a inclusão de trabalhadores do sexo como consultores em discussões, decisões políticas, trabalhistas e legislativas sobre prostituição.
Exames médicos
Rejeitamos a re-introdução do exame médico compulsório para prostitutas, abolido em 2001. Queremos a extensão da rede dos serviços médicos gratuitos e anônimos do Ministério da Saúde.
Trabalho sexual e tráfico
Rejeitamos a mescla destes dois temas, quando sob a argumentação de que todos aqueles que trabalham na prostituição são vítimas de tráfico, exploração e violencia, e que só se pode combater o tráfico ao se abolir a prostituição. Esta argumentação é falsa, irreal e manipulativa. Prostituição é trabalho, enquanto tráfico, exploração e violencia são crimes.
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A oposição
É claro que também existem na Alemanha vozes contra o reconhecimento da prostituição como trabalho. Vozes estas que afirmam não existirem mulheres que escolham trabalhar na prostituição por livre e espontânea vontade; que todas que o fazem são coagidas e/ou vítimas de tráfico humano e outras violências, que o trabalho sexual é uma afronta à diginidade da mulher e portanto não deve existir.
Este grupo usa números que, comprovadamente, não têm nenhuma base científica, e baseiam suas discussões em argumentos puramente moralistas. A solução proposta para acabar com a prostituição é a criminalização dos clientes como forma de coibir a demanda por serviços sexuais.
Eles intensificaram suas demandas no final de 2013, quando do lançamento de um livro que defende a abolição da prostituição. Isto trouxe uma onda de discussões e mostrou que ainda existem muitos clichês na sociedade, mesmo depois da legalização.
A resposta das prostitutas
Apesar de existirem algumas organisações locais, não havia na Alemanha uma organisação nacional de prostitutas. A criação de uma estava no entanto latente há algum tempo, e em meados de 2013 um grupo de 40 trabalhadores do sexo fundou a Associação Profissional de Serviços Eróticos e Sexuais.
Ela veio num momento muito propício, quando as vozes por mais repressão contra a prostituição começaram a ficar mais fortes. Este grupo tem sido extremamente ativo na mídia e em palestras pelo país afora, ao explicar a realidade de sua perspectiva e assim combater a vertente moralista.
Não que não exista coerção, tráfico e violência, mas a maioria dos trabalhadores do sexo o faz por decisão própria. Só através do reconhecimento de seu trabalho, estas pessoas poderão se defender contra a violência e exigir seus direitos humanos.
A repercussão da lei alemã no Brasil
A Rede Brasileira de Prostitutas (www.redeprostitutas.org.br) tem cerca de 30 organisações filiadas. Há mais de 30 anos elas lutam pelo reconhecimento de seus direitos, mas até agora sem maiores resultados.
Atualmente tramita na Câmara dos Deputados do Brasil um projeto do deputado Jean Wyllys, do PSol, o projeto Gabriela Leite, que regulamenta a atividade dos profissionais do sexo.
Essa não é a primeira tentativa de regularizar a situação das prostitutas brasileiras. Em 2003, o então deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), baseando-se na lei alemã de 2002, tentou tirar a proposta do papel, mas o projeto foi arquivado pela Mesa Diretora da Câmara. No ano seguinte, o hoje ex-deputado petista Eduardo Valverde (RO) também apresentou proposta semelhante, mas a ideia teve o mesmo destino.
Em novembro do ano passado, a Comissão de Direitos Humanos recebeu o Projeto n° 4.211/2012, do deputado Jean Wyllys. Ele pretende enfrentar a forte resistência contra a proposta, mas reconhece que a trincheira conservadora, especialmente dos parlamentares religiosos, é um empecilho expressivo. (http://jeanwyllys.com.br/wp/lei-da-prostituicao-divide-camara)
A Copa de 2006 na Alemanha
A Copa de Futebol no Brasil está perto e prostituição é sempre tema quando se trata de grandes eventos públicos.
Na Alemanha, um ano antes do início da Copa do Mundo, começaram a circular informações sobre a vinda de 40 mil mulheres, todas forçadas a trabalhar na prostituição durante o evento. A mídia explorou a idéia de ‘Futebol = Homens = Sexo’ somado à fórmula ‘Prostituição = Coerção = Tráfico’. Armou-se um circo histérico, propício para ações que justificassem repressão e discriminação contra migrantes e prostitutas.
Duas ativistas - uma prostituta e uma socióloga - criaram então a campanha FairPlay (www.freiersein.de), para aproveitar um evento essencialmente masculino e, através da ironia, mostrar que prostitutas devem ser respeitadas, que elas têm direitos e que sexo seguro é um must.
A campanha foi realizada nas doze cidades sedes de jogos. As ações eram feitas antes dos jogos, nas cercanias dos estádios ou dos ‘public viewing’. O que chamava a atenção eram os preservativos gigantes, muito coloridos, enquanto eram distribuidos cartões postais com as ‘10 Regras de Ouro para Clientes de Prostitutas’ e preservativos.
Como esperado, a horda feminina não compareceu, e as mulheres reclamavam dos negócios.
“Apesar de haver mais homens nas ruas, eles não querem nada. Eles gastaram seu dinheiro na viagem para a Alemanha e nas entradas para os jogos. O que sobrou é para cerveja...” (Uma prostituta de Hamburgo)
Todos os relatórios da polícia alemã depois da Copa confirmaram o que disseram as ONGs desde o início: não houve aumento do número de prostitutas nas cidades sedes de jogos, o movimento não foi diferente de quando há algum evento especial na cidade, e não houve nenhum caso especial de tráfico de mulheres.
Para organizações de prostitutas e ativistas na Alemanha, o positivo desta Copa foi que, desde 2002, quando da legalização da prostituição, foi a primeira vez que houve novamente uma mobilização nacional em torno do tema.
Por isso a experiência da Copa foi tão importante: fez com que houvesse na Alemanha um fortalecimento das NGOs e ativistas em torno da luta pelos direitos de pessoas que se prostituem. Isso foi a base da qual se servem hoje para enfrentar de forma mais coesa as dificuldades políticas e sociais.