Com o lema histórico do movimento feminista “somos mulheres, não somos mercadorias” um campo do feminismo está se contrapondo a um projeto de lei apresentado pelo deputado federal Jean Wyllys, que regulamenta o trabalho dos profissionais do sexo. No Brasil a prostituição não é crime, apenas a exploração por terceiros e associação para sua ação e é justamente esse caráter que o projeto pretende mudar, tornando as casas de prostituição estabelecimento legais, além da possibilidade da prostituta ter um piso mínimo de ganhos quando trabalhando nesses estabelecimentos. Uma argumentação do deputado para pedir celeridade na aprovação do projeto é a realização dos megaeventos, uma grande oportunidade para essas profissionais. Além disso, para o deputado é “fato que muitas pessoas entram na prostituição por necessidade, como também é fato que muitas entram por vontade própria, porém, o fundamental é que independentemente da motivação, direitos serão reconhecidos e isso é um ganho para todas as pessoas que exercem a prostituição.” Nessa entrevista o deputado Jean responde a perguntas sobre o projeto e reafirma a distinção entre exploração sexual e a prostituição.
1) Quais os pontos principais do projeto? E quais as vantagens da regulamentação da prostituição?
O PL regulamenta a prostituição para garantir os direitos dos/as trabalhadores/as sexuais e busca fazer uma clara distinção, na lei, do que é trabalho sexual voluntário - praticado por pessoas adultas - da exploração sexual de adultos, bem como de crianças e adolescentes. É importante ressaltar que a expressão prostituição infantil é equivocada, ela não existe. Quando se trata de crianças e adolescentes, estamos falando de exploração sexual, e isso é crime! O PL define como profissional do sexo "toda pessoa maior de dezoito anos e absolutamente capaz, que voluntariamente presta serviços sexuais mediante remuneração". O profissional do sexo poderá prestar serviços como trabalhador autônomo ou em cooperativas, e as "casas de prostituição" são permitidas desde que não ocorra exploração sexual. O projeto prevê a fixação de um percentual de ganho dos intermediadores, que não poderá ser superior a 50% do recebido pelo programa, do contrário configurará crime; aposentadoria dos profissionais do sexo após 25 anos de contribuição previdenciária, conforme ocorre com outras profissões de alta periculosidade e insalubridade, dentre outros.
Vantagens da regulamentação da prostituição. A legalização da casa de prostituição, uma das principais reivindicações da categoria, é fundamental para tirar o seu funcionamento da clandestinidade, ou seja, passar de um funcionamento manejado arbitrariamente pela corrupção dos órgãos de fiscalização, para uma regulamentação objetiva e com mecanismos de controle que possam ser acionados. Em qualquer cidade do Brasil, grande parte das pessoas sabe onde fica a casa de prostituição. Negar isso é uma grande hipocrisia. Elas existem e funcionam na clandestinidade, sem o controle do Estado. Como qualquer atividade econômica, se você não regulamenta, ela é regulamentada de fato pelas agências do Estado que tem a capacidade para permiti-la ou proibi-la na prática. Não é nada diferente do que acontece com o aborto ou com as drogas. A criminalização impede o aborto? Não. Impede o tráfico de drogas? Não. Mas a criminalização faz com que o comércio de drogas e a prática do aborto se realizem na clandestinidade, reguladas pela corrupção policial e política. E as vítimas disso são as mulheres pobres, os usuários de drogas e os trabalhadores que fazem parte do escalão mais baixo do varejo do tráfico. Com as casas de prostituição acontece o mesmo : a ilegalidade não impede que elas existam, mas impede que as prostitutas tenham qualquer chance de terem seus direitos respeitados, permite os abusos dos cafetões e cafetinas, os abusos da polícia, a propina, a repressão, a violência, e, além disso, não existindo qualquer regulamentação que separe trabalho sexual de exploração sexual (inclusive de crianças a adolescentes), tudo fica regulado pelo mesmo sistema perverso. Por isso, a primeira reivindicação das prostitutas era legalizar as casas e regulamentar seu funcionamento, garantindo algumas questões básicas. Na legalidade, as casas deverão se enquadrar nas regulamentações nacionais, estaduais e municipais que dizem respeito às condições do ambiente de trabalho (higiene, controle sanitário, condições de infraestrutura do local, segurança, saúde etc.). Essa é a principal lógica: tirar da clandestinidade e marginalidade para que direitos básicos possam ser garantidos e reivindicados.
2) O projeto de Lei Gabriela Leite é apenas uma parte do processo de regulamentação. Como vai funcionar de fato a regulamentação da atividade das profissionais do sexo? Muitas estão sonhando em ter carteira assinada, por ex. Será dessa forma?
Esse foi um dos pontos em que houve unanimidade. Nas discussões com as representantes desse segmento, sempre foi ponto comum que a autonomia é fundamental. Pelas peculiaridades da profissão, não é possível o sistema da CLT. Citando um exemplo muito recorrente, como você vai cobrar de uma prostituta quarenta horas semanais de trabalho? Como isso é controlado? Como seria a produtividade? Entrar nessa discussão inviabilizaria o projeto, por isso as experiências internacionais bem sucedidas também foram levadas em consideração. As prostitutas que trabalham nas casas poderão negociar as condições em que o fazem, como trabalhadoras autônomas ou em cooperativas. Esse ponto é importante porque aumenta as possibilidades delas decidirem quando trabalham, em que horários, quais clientes aceitam atender e quais não, o que fazem e o que não fazem e quanto cobram pelo serviço. Enfim, dessa forma elas possuem mais liberdade e autonomia. Outra contradição relacionada à questão da criminalização é que a prostituição não é crime, mas a associação para a prostituição sim, e isso impede a organização em cooperativas, que podem ser auto geridas. O projeto também estabelece um limite sobre a porcentagem do lucro que pode ser repassado para a casa e deve ser menor de 50%, ou seja, estabelece um piso de ganho para as prostitutas e um teto para terceiros. Isso significa que a prostituta pode ficar com até 100% do ganho, o que não pode são terceiros se apropriarem de mais de 50%, proporcionalmente, esses terceiros podem ficar com 40%, 30% e até com nada, dependendo da dinâmica, dos acordos e das condições negociadas. Existem casas em que o ganho é indireto, ou seja, através da entrada, consumação no bar, aluguel de quartos etc, onde as prostitutas ficam com 100% do ganho, em outros casos existem acordos de passagem de um percentual para o dono do estabelecimento manter as contas da casa, limpeza, toalhas, preservativos, entre outros gastos. Nesse contexto, um dos objetivos das prostitutas organizadas que auxiliaram na elaboração do projeto é passar a trabalhar em cooperativas e administrar elas mesmas as casas. Mas isso não é fácil e nem sempre possível, por isso a importância da possibilidade de administração por terceiros, abrindo o espaço para o pagamento ou não de uma porcentagem. Ressalto que a proposta não diz que o pagamento de uma porcentagem do lucro seja a regra, porém uma possibilidade, desde que não seja igual ou superior a 50%. Diante dessa diversidade percebemos que esse poderia ser um ponto de partida para reiniciar o processo de debate sobre a regulamentação. Nada impede que seja aperfeiçoado ao longo do tempo e da prática.
3) Uma crítica ao projeto afirma que ele só atende uma parcela das profissionais do sexo, mais escolarizadas e com situação financeira mais estáveis e não atende àquelas mais empobrecidas e que declaram não estarem na profissão por escolha e sim, por condicionantes sociais/culturais. O projeto sinaliza uma melhora nas condições de vida dessas mulheres?
O projeto sinaliza uma melhora nas condições de vidas de todas as mulheres, homens, travestis e transexuais que exerçam a prostituição a partir do momento que sairão da invisibilidade, ilegalidade e marginalidade e terão um marco legal para aperfeiçoarem sua organização política e reivindicarem cada vez mais melhores condições de trabalho. É fato que muitas pessoas entram na prostituição por necessidade, como também é fato que muitas entram por vontade própria, porém, o fundamental é que independentemente da motivação, direitos serão reconhecidos e isso é um ganho para todas as pessoas que exercem a prostituição, principalmente as mais vulneráveis, que são as que estão mais sujeitas à violência e exploração. Por isso a discussão se assemelha a da descriminalização do aborto e das drogas.
4) Outra crítica se concentra na possibilidade da regulamentação da prostituição ser mais uma forma de atender ao capitalismo patriarcal, pornográfico e hegemônico que naturaliza e legitima a exploração dos corpos das mulheres. Como você responde a isso?
Essa é uma crítica muito recorrente de um segmento do movimento feminista. Digo isso, pois existem movimentos feministas onde determinados grupos são favoráveis à regulamentação e outros contrários, assim como existem pessoas de esquerda, do movimento LGBT, e de outros segmentos do movimento em defesa dos direitos humanos contrários e favoráveis. Enfim, falar de sexo continua sendo tabu. A regulamentação da prostituição divide esses movimentos, isso ocorreu também nos países onde a prostituição foi regulamentada. O mandato procurou ouvir o maior número de vozes, mas é fato que elegeu apoiar o projeto construído pelas prostitutas que se organizaram para debatê-lo, as maiores interessadas na discussão, pois vivem diariamente os efeitos negativos do não reconhecimento de fato, da discriminação e marginalização.
Volto ao que disse no início da entrevista: a regulamentação da atividade, que existe independentemente dos juízos de valores, sempre é melhor do que a “regulamentação” informal e arbitrária que a polícia e o baixo clero da política fazem. É o mesmo critério do debate sobre as drogas e sobre o aborto, e que a esquerda de modo geral sempre defendeu, da mesma maneira que o projeto também segue outro critério que é princípio da esquerda: o de estar do lado dos trabalhadores, e as pessoas que exercem a prostituição são trabalhadoras, aceite o movimento feminista abolicionista (aquele que quer abolir a prostituição por considerar um subproduto do capitalismo), ou não. Esse discurso é equivocado, pois a prostituição existia antes do capitalismo, sem falar que todos os trabalhadores são mercadoria e vendem sua força de trabalho, utilizam o corpo para executar esse trabalho. A luta contra a exploração dessa força de trabalho sempre será nossa, mas não pode ser por isso que negaremos a uma categoria direitos trabalhistas.
Outra contradição desse discurso de parte dos feminismos, é que ele reivindica a autonomia da mulher em relação ao seu corpo ao mesmo tempo que critica o direito da mulher de se prostituir por livre e espontânea vontade, dizendo que ela não tem o direito de prestar um serviço sexual com seu corpo. Existe um segmento considerável de prostitutas que não se vitimiza, que grita com autoridade aos quatro cantos sua escolha e gosto pela prostituição. Existem professores, trabalhadores da construção civil, domésticas e profissionais de tantas outras profissões que não escolheram estar naquela profissão que exercem, mas isso não quer dizer que eles não mereçam ter seus direitos trabalhistas reconhecidos e garantidos, bem como viverem com dignidade, na legalidade.
Fico me perguntando por que determinados critérios são aceitos sem tanta polêmica por grupos de esquerda e feministas quando falamos sobre o aborto e as drogas, mas são tão polêmicos quando falamos sobre a prostituição. Em minha opinião, isso acontece por que há preconceitos morais sobre o sexo e sobre o uso do corpo, sobretudo o corpo da mulher, que têm fundamento no machismo. Esse machismo ainda tem muito peso inclusive no discurso de muitas militantes feministas de esquerda, que sequer se dão conta disso.