Justiça ambiental e a economia dos comuns frente a economia verde e o desenvolvimento sustentável

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Esta apresentação foi realizada durante o “Seminário Ecologia em Movimentos: mais além da Economia Verde e do Desenvolvimento Sustentável”, promovido pelos institutos EICOS, Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED) e Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI-IBICT) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e ocorrido dia 22 de janeiro de 2014, no Campus Praia Vermelha.

Boa tarde a todas/os.

Minha apresentação tem por objetivo problematizar a discussão da economia verde como um novo paradigma de crescimento com preocupação ambiental e fazer uma contraposição a partir de elementos da justiça ambiental e da economia dos comuns. Para isso, vou explorar quatro dimensões deste debate, que não o esgota propriamente, mas ajuda a avançar no entendimento da questão.

Primazia do economicismo

A primeira dimensão diz respeito a um breve resgate sobre a primazia da economia nas grandes discussões internacionais e na tomada de decisões sobre temas ambientais.

Durante pouco mais de vinte anos, o debate ambiental ganhou vigor nos debates internacionais, na academia, no setor governamental, no mundo corporativo, na política internacional e teve como um de seus momentos-chave a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento – Rio-92, que trouxe como pedra angular o conceito de desenvolvimento sustentável. Digo vigor, porque como algo relevante, ele já aparecia durante a década de 1960, seja no relatório do Clube de Roma sobre Os Limites do Crescimento (1) , seja na publicação do livro “Primavera Silenciosa” (2) e de artigos como a “Tragédia dos Bens Comuns”(3) , entre outros marcos que influenciaram a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, também denominada Conferência de Estocolmo, de 1972.

Um dos embates ocorridos na Conferência de Estocolmo foi a crítica que os países em desenvolvimento tinham em relação a um possível impedimento de seu desenvolvimento por medidas de proteção ambiental. Assim, era fundamental criar bases de convencimento que aliassem a preocupação ambiental com o direito ao crescimento. E assim surgia o conceito de desenvolvimento sustentável.

Mas o desenvolvimento sustentável, dividido em três pilares de igual peso – social, ambiental e econômico – nunca aconteceu como tal, e o peso do pilar econômico foi o maior, tirando a credibilidade do termo e deixando-o mais como um princípio norteador do que algo passível de se pôr em prática. Fazia sentido então novamente, mais de 20 anos depois, criar um novo termo que pudesse captanear os acúmulos do desenvolvimento sustentável e aceitar de fato que a economia deveria sim ter sua primazia, mesmo no trato da questão ambiental. Eis que surge então o conceito de economia verde.

De acordo com o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (PNUMA), a “economia verde é aquela que melhora o bem estar humano e a equidade social, reduzindo significativamente os riscos ambientais e a escassez ecológica. Na sua expressão mais simples, uma economia verde pode ser pensada como de baixo carbono, eficiente de recursos e socialmente inclusiva”(5).

Essa economia de baixo carbono, expressão que virou um mantra global, vem se traduzindo na prática em uma nova fase de acumulação primitiva do capital sobre aqueles componentes da natureza, ate então fora do mercado. Para qualquer novo negócio, é necessário criar um lastro, e enfim ter-se uma garantia. O estabelecimento de novas mercadorias, títulos, entre outros, com os componentes da biodiversidade demonstra a lógica de transformação dos bens comuns – inalienáveis por ‘natureza’ – em mercadorias privatizadas, passíveis de compra e venda, que possam integrar a proposta de economia verde, de economia de baixo carbono.

Isso aconteceu com a terra, as sementes, a água e outros componentes da natureza já privatizados. “A privatização é a primeira forma da economia de mercado de lidar com a questão da escassez dos recursos.(6)” Em “Tragédia dos Bens Comuns”, a privatização dos componentes da biodiversidade já era apontada como uma das soluções para evitar o que o próprio nome do artigo apontava.

A Declaração do Capital Natural, assinada por CEOs de diversas instituições financeiras internacionais e lançado durante a Rio+20, em 2012, portanto 20 anos depois, demonstra factualmente este ponto. Ao reafirmar a importância do capital natural (7) – entendido como o estoque e fluxo dos serviços ecossistêmicos da Terra providos por solo, água, ar, flora, fauna – para a manutenção de uma economia global sustentável, os signatários respondem ao chamado de construir a economia verde buscando “criar as condições necessárias para manter e reforçar o Capital Natural como um ativo crucial, do ponto de vista econômico, ecológico e social”.

Neste sentido, a criação de métricas ou valores é fundamental para definir modelos, políticas e arcabouços legais para a construção da economia verde, como veremos na segunda dimensão.

Arquitetura para se construir a economia verde

A segunda dimensão diz respeito a arquitetura necessária para transformar os componentes da biodiversidade em ativos financeiros que dão base para a economia verde, e só é possível criar uma nova classe de ativos financeiros se existir pesos e medidas.

Para isso, novos mecanismos, leis, reformas e contratos revestidos de preocupação ambiental vêm sendo construídos de forma a adequar o sistema a esse novo mercado. No âmbito internacional, esta arquitetura vem sendo delineada em parte pelos mecanismos e instrumentos financeiros estabelecidos na Conferência Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (UNFCCC) e na Conferência de Biodiversidade (CDB). Os mecanismos de flexibilização do Protocolo de Kyoto como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), a abordagem de Redução de Emissões por Desmatamento e Degração Floresta (REDD+) e a Economia dos Ecossistemas e da Biodiversidade (TEEB).

No caso brasileiro, o Legislativo tem papel essencial. Atualmente existem 24 proposicões no Senado relativas a novas leis sobre a matéria, bem como 48 Projetos de Leis na Câmara dos Deputados. O Novo Código Florestal e a Política Nacional de Mudanças do Clima também ajudam a cimentar essa arquitetura. Medidas como a criação de um Mercado Brasileiro de Redução de Emissões (MBRE), a ser operacionalizado em bolsas de mercadorias e futuros, bolsas de valores, através da negociação de títulos mobiliários representativos de emissões de gases de efeito estufa evitados, os chamados títulos verdes (8). Na cidade do Rio de Janeiro foi lançada em 2012 a Bolsa de Ativos Ambientais , que negocia títulos representativos de direitos de característica ambiental e em sua descrição aponta como princípio “a visão de que mecanismos de mercado são instrumentos eficientes de execução de políticas públicas ambientais e de desenvolvimento sustentável.(9)”

O Novo Código Florestal (Lei nº 12.651/2012) aprovou a Cota de Reserva Ambiental (CRA), um título que representa 1 ha de floresta nativa que poderá ser comprado e vendido para compensar a Reserva Legal exigida por lei em bolsas de valores. Também presente no Novo Código, em seu artigo 41, se encontra o Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), que estabelece categorias para os componentes da biodiversidade, a serem compartimentados e comercializados por meio de contratos privados ou públicos realizados entre as populações indígenas e tradicionais, os agricultores familiares e camponeses etc. denominados ‘fornecedores de serviços ambientais’ e as empresas poluidoras e compradoras de autorização para continuar poluindo, as chamadas compensações ambientais. O modelo é inspirado no mercado de carbono e suas métricas. Há um PL 792/2007 específico em tramitação na Câmara para estabelecer a Política Nacional de PSA e o Sistema Nacional de PSA.

Este sistema de PSA está associado à criação de um mercado mundial de serviços ambientais. Por isso, a redução das práticas tradicionais e dos modos de vida das populações a um ‘serviço’ mensurável e vendável segue na contramão da afirmação dos direitos dos agricultores/as que precisam sim receber o preço justo e ter acesso a políticas públicas estruturantes, mas estas não devem passar, sob nenhuma condição pelas vontades e especulação dos mercados (10).

Por fim, o mais recente item desta arquitetura são os projetos de Conservação em Escala de Paisagem (12) , abordagem estabelecida na Inglaterra no início dos anos 1990 e que atualmente vem fazendo pressão para ser incluída nas negociações da UNFCCC. A abordagem busca integrar a política dos múltiplos usos da terra, incluindo aí agricultura, água, floresta, como reforço para mitigação e adaptação às mudanças climáticas.

Esquizofrenia do crescimento sustentável

Dado que o conceito de crescimento passou a desempenhar um lugar central na economia e que a ideia de que se ajustássemos um “parafuso aqui e outro acolá seria possível reduzir os problemas e consequências ambientais do crescimento econômico, e assim manter o sistema da forma como está”(12), a terceira dimensão diz respeito à esquizofrenia por trás da concepção de um crescimento infinito em um planeta de recursos naturais limitados.

O paradigma do crescimento econômico carrega em si uma simbologia tão pesada e naturalizada que seja na direita, no centro ou na esquerda, se transformou em um discurso único onde somente sua busca e parcial alcance significam mais que meio caminho andado para o enfrentamento das grandes mazelas que assolam nosso mundo, do enfrentamento da pobreza até a questão ambiental.

Como não se toca no quase sagrado crescimento econômico, o caminho conforme já apontado na primeira dimensão, foi trazer para este crescimento a abordagem verde que faltava. O problema é que o sistema é doente por natureza, não querendo parafrasear. Não tem remédio, por mais que o mundo virtual ou a tecnologia se encarreguem de buscar soluções mirabolantes para ele. Como se evitar a poluição em um lugar pudesse limpar em outro que continua em poluição permanente, ou como se conservar uma área de Reserva Legal amazônica em Alta Floresta (MT) e assim, pudesse continuar transformando o município de Lucas do Rio Verde, também do MT, em um grande sojal sem nenhum impacto para o ecossistema do bioma. O imaginário do crescimento a qualquer custo é tão forte nos corações e mentes que mesmo quando o mercado ainda não está pronto para solucionar o problema existe a possibilidade de pronta entrega, ou mercado “spot”. Isso já é possível para contratos de cotas de reservas ambientais para entrega em momento futuro, já que a oferta das mesmas, por exemplo, ainda não tem ‘volume’ suficiente. Além disso, a lógica da compensação que está por trás destes mecanismos e abordagens é tão profundamente injusta que o bem viver de uma comunidade ou indivíduo que possa se beneficiar de um destes mecanismos está fundado no mal viver dos que vivem na área poluída, desmatada, degradada, destruída.

Mas como romper então com um modelo econômico, social e individual que se compreende com a cultura do permanente crescimento interminável para além dos próprios limites? Harald Welzer, em seu livro Infra-estruturas mentais aponta a necessidade de dar um basta nesta “onipresente cultura do crescimento”. Segundo o autor, se por um lado, precisamos buscar novas representacões mentais que nos guiem para sairmos da tríade “progresso, bem-estar, crescimento”, por outro, precisamos transformar uma vida plena em algo que não demande constantemente algo novo. E é a partir dessa reflexão que aponto a última dimensão de minha apresentação.

A aliança entre a economia dos comuns e a justiça ambiental

Na tentativa de buscar outras representações mentais e nos aprofundarmos no debate, me detive em duas propostas em especial, que não se esgotam nelas mesmas, mas se conectam com outras tantas: a justiça ambiental e a economia dos comuns.

A justiça ambiental é entendida como o tratamento justo e o envolvimento pleno de todos os grupos sociais, independente de sua origem ou renda, nas decisões sobre o acesso, ocupação e uso dos recursos naturais em seus territórios (13).

Bens comuns são entendidos não somente como bens da natureza, mas como construções sociais. Processos que devem ser pensados em um longo tempo histórico e em sua complexidade espacial. Podem possuir uma dimensão econômica clara, mas que se completa com outras dimensões sociais, políticas, culturais. Isso porque nos territórios dos bens comuns vivem pessoas e há também um conjunto de regras que são fruto da vivência e da história destes grupos. Além da própria estratégia de sobrevivência das populações nos territórios, elas ainda são responsáveis por parte do nosso futuro ao proteger e defender estes bens comuns (14).

Neste sentido, o debate sobre o reconhecimento dos que cuidam dos bens comuns é fundamental para pensar políticas públicas que cheguem aos territórios e valorizem as práticas dessas populações e povos tradicionais que atuam na manutenção da vida. Mas esta valorização não deve ser sequestrada pelo economicismo do mercado, ou pela primazia do crescimento econômico, ou pela falsa retórica da economia verde. Ela pode ter sim sua dimensão econômica, dentro de uma economia dos comuns, mas não dentro de uma economia mercantilizada e financeirizada.

Por que não, então, ir à fundo na conservação e uso sustentável dos recursos naturais por meio da garantia o direito à terra e ao território, a partir da reforma agrária, da soberania alimentar e da agroecologia, da democratização do acesso e uso do solo rural e urbano e dos recursos naturais? Por que não proteger os conhecimentos comunitários pelo seu direito ao livre uso da biodiversidade e da agrobiodiversidade, respeitando as características dos bens comuns e implementando na prática a justiça ambiental?

A carta de preparação para a Cúpula dos Povos, evento paralelo à Rio+20 (15), que conseguiu juntar organizações e movimentos sociais de todo o mundo em 2012, apontava uma demanda neste sentido. Isso quer dizer, o compromisso pela mudança radical no atual modelo de produção e consumo, que consolidasse o direito dos povos a se desenvolverem com modelos alternativos baseados nas múltiplas realidades e vivências, respeitando os direitos humanos e coletivos, em harmonia com a natureza.

Construir coletivamente a economia dos comuns com justiça ambiental é reafirmar esse compromisso; é defender conquistas democráticas e civilizatórias como, por exemplo, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) (16) que já completa 10 anos . Devemos exigir que as escolhas políticas sejam baseadas em novos paradigmas de transição para uma outra sociedade, que assegure o direito à vida das gerações futuras e crie um contraponto à manutenção do status quo do crescimento ilimitado.

Notas:

1.      Ver Resumo executivo em: http://www.bibliotecapleyades.net/sociopolitica/esp_sociopol_clubrome6…

2.      Publicação original Silent Spring, de Rachel Carson, de 1962. Foi um marco para a sensibilização sobre os impactos do uso de pesticidas para o meio ambiente e para o início do movimento ambientalista internacional.

3.      O artigo foi escrito por Garrett Hardim, em 1968, e se transformou em uma referência mundial no debate sobre a finitude dos recursos naturais. Disponível em http://eesc.columbia.edu/courses/v1003/lectures/population/Tragedy%20of%20the%20Commons.pdf

4.      Disponível em: http://www.unep.org/greeneconomy/aboutgei/whatisgei/tabid/29784/default.aspx

5.      PACKER, Larissa.  Não ao PSA, sim aos direitos dos agricultores. In Visões alternativas ao Pagamento por Serviços Ambientais. Caderno de Debates nº 1. Rio de Janeiro: FASE, 2013.

6.      Disponível em http://www.naturalcapitaldeclaration.org/wp-content/uploads/2012/04/natural_capital_declaration_port.pdf

7.      Disponível em Quem ganha e quem perde com REDD e Pagamento por Serviços Ambientais. http://br.boell.org/sites/default/files/downloads/documento_redd_carta_de_belem_nov_2011.pdf

8.      Disponível em http://www.bvrio.org/site/index.php/abvrio

9.      PACKER, Larissa.  Idem.

10.  Disponível em European Landscape Convention http://www.coe.int/t/dg4/cultureheritage/heritage/landscape/default_en.asp

11.  Welzer, Harald. Infraestruturas Mentais. Berlim: Heinrich Böll Stiftung, 2011. Disponível em http://br.boell.org/sites/default/files/downloads/Ecologia_InfraestruturasMentais.pdf

12.  Disponível em Rede Brasileira de Justiça Ambiental, http://www.justicaambiental.org.br/_justicaambiental/pagina.php?id=229

13.  Leroy, J.Pierre. Uma outra economia e os comuns. In Visões alternativas ao Pagamento por Serviços Ambientais. Caderno de Debates nº 1. Rio de Janeiro: FASE, 2013.