Conferência Nacional: 2003 – 2013 uma nova política externa

Entre 15 e 18 de julho aconteceu na Universidade Federal do ABC, em São Bernardo do Campo, a “Conferência Nacional: 2003 – 2013 uma nova política externa” que reuniu estudantes, representantes de organizações da sociedade civil, gestores de relações internacionais, autoridades governamentais e políticos, entre eles o ex presidente Lula.

O evento foi organizado pelo Grupo de Reflexão de Relações Internacionais formado por várias entidades da sociedade civil e pesquisadores que atuam no campo das relações internacionais, do qual faz parte vários dos parceiros apoiados pela Fundação Heinrich Böll. Segundo os organizadores, a conferência foi promovida para destacar “a importância da democratização do processo decisório em política externa surgida a partir da noção de que o comportamento externo do País deve traduzir suas interações domésticas, ou seja, sendo a política externa a projeção do Brasil no mundo, ela não deve se deter a grupos reduzidos de interesse ou a uma influência passiva da sociedade civil organizada.”

As coordenadoras de programas e projetos da Fundação Heinrich Böll Maureen Santos e Marilene de Paula acompanharam a conferência e apresentam algumas reflexões sobre a política ambiental e os direitos humanos

Política Externa Brasileira e Meio Ambiente
Maureen Santos

Traçando um paralelo entre política doméstica e a política externa brasileira no tema ambiental, percebe-se uma clara esquizofrenia. Ao mesmo tempo em que assistimos uma política externa muitas vezes progressista do ponto de vista ambiental, como, por exemplo, durante a negociação e aprovação do TIRFAA (Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Agricultura e Alimentação) no âmbito da Convenção de Biodiversidade (CDB) – conforme citado pelo secretario executivo do Ministério do Meio Ambiente Francisco Gaetani que participou da mesa sobre PEB (política externa brasileira) e Meio Ambiente –, vimos que na política interna há um retrocesso materializado pelas recentes flexibilizações na legislação ambiental brasileira.

Exemplos não faltam. O novo Código Florestal abriu a porteira para a flexibilização da legislação ambiental e vem sendo seguido por uma avalanche de novas leis que visam aumentar ainda mais a desregulamentação ambiental e a perda de direitos dos povos nos territórios. Podemos citar muitos projetos de lei ou propostas de emendas constitucionais como a PEC 215 , PL REDD+ , PL PSA , PL 227/2012 .

Esta esquizofrenia pode ser extremamente danosa para a barganha brasileira nas negociações internacionais, não entrando na discussão sobre as terríveis implicações que estas legislações podem provocar caso sejam aprovadas. Por exemplo, nas negociações de clima no âmbito da UNFCCC (Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas), enquanto o Brasil não aceita ainda incluir o mercado, dentre eles o mercado de carbono, como fonte de financiamento para o mecanismo de REDD+, está tramitando no Congresso brasileiro dois projetos de lei que abrem um precedente para esta possibilidade, que são o PL REDD+ e o PL PSA.

Historicamente no Brasil já existem exemplos de quão danoso é assinar legislações nacionais antes de ter implementado ou assinado um acordo internacional na matéria. Podemos lembrar o caso do Acordo TRIPS da OMC de 1994 que previa flexibilidades em relação às patentes e que possibilitava a produção e importação de medicamentos genéricos até 2005. O Brasil quis sair na frente e aprovou em 1996 a Lei das Patentes (PL 9.279/96), que passou a vigorar em 1997 incorporando as modificações previstas no acordo de propriedade intelectual e acabando com a possibilidade de produzir e/ou importar genéricos que poderia ser estendida por mais oito anos, sem ter que recorrer a uma licença compulsória, a denominada quebra de patentes.

Neste debate, é importante elucidar a discussão sobre Pagamento por Serviços Ambientais (PSA) que traz à tona a política de compensações. Há sérias preocupações que esta política se transforme em uma naturalização das compensações, onde se pode destruir territórios e desmatar em qualquer local, já os povos seriam compensados e o bioma seria reconstituído ou preservado em outro. Isso é algo que precisa ser qualificado e muito debatido. As bolsas de ativos ambientais que vem sendo criadas e regulamentadas também por meio dos novos PLs referidos, onde é possível reconstituir Reserva Legal (RL) em um bioma ao desmatar em outro, trazem por trás toda a lógica mercadológica de busca da proteção ambiental via financeirização da natureza, um padrão que pode trazer mais retrocessos não somente para a política nacional quanto para a internacional.

E por fim, sobre as metas da Política Nacional de Mudança do Clima e as emissões por setor, que foram apresentadas como NAMAs (Ações de Mitigação Nacionalmente Apropriadas) brasileiras para a Convenção de Mudanças Climáticas. Vimos com otimismo que as emissões provenientes dos desmatamentos da Amazônia vêm sendo reduzidas durante os últimos 10 anos, mas ao mesmo tempo percebemos que o setor de energia vem aumentando muito as emissões, passando de 16% das emissões totais do Brasil para 32%, de 2005 a 2010. Isso é também relacionado com o aumento da utilização das termelétricas na produção de energia, entre outros fatores.

Buscar a correspondência e a sinergia entre as políticas interna e externa é fundamental para avançar em uma real política de Estado brasileira que dê prioridade à questão ambiental e vise aprofundar as questões relativas à mudança para um novo padrão de desenvolvimento, com alterações no modelo de produção, distribuição e consumo, que busque a equidade, a sustentabilidade e a justiça ambiental de maneira integrada. Criar marcos regulatórios e implementar os que já existem é fundamental, mas desde que a proteção do meio ambiente seja o centro da política e não a criação de marcos que visam destruir esta proteção com o argumento de destravar o desenvolvimento. É preciso avançar no pensamento da transformação, da ruptura e não substituir um problema por outro ainda maior.

Notas:

[1] A PEC 215 propõe a transferência da decisão sobre demarcação de terras indígenas, quilombolas e áreas de conservação ambiental do Executivo para o Legislativo. Na prática, isso tiraria o poder da Fundação Nacional do índio (FUNAI) de aprovar as demarcações, pois precisaria de uma aprovação final do Congresso.

[1] O PL 195/2011 prevê a criação do sistema nacional de redução de emissões por desmatamento e degradação, conservação, manejo florestal sustentável, manutenção e aumento dos estoques de carbono florestal (REDD+). O PL visa garantir a proteção ambiental por meio de mecanismos de compensação financeira, no qual a valorização dos bens comuns é feita via mercado.

[1] O PL 792/2007 visa à criação de uma Política Nacional de Pagamento por Serviços Ambientais que estabelece um novo mercado de processos e produtos fornecidos pela natureza.

[1] O PL227/2012 visa a legalização de latifúndios, abertura de estradas, assentamentos rurais, cidades, construção de hidrelétricas e exploração de minérios em terras indígenas.

Direitos Humanos e política externa brasileira

Marilene de Paula

Desde o governo Lula o Brasil vem desempenhando um novo papel no sistema internacional, com atuação em vários espaços de liderança, como o BRICS e o IBAS. A persistente crise econômica, a partir da falência do Lehman Brothers em 2008 também reforçou o papel das economias dos países emergentes como principais motores da economia global, embora atualmente já é possível notar uma desaleração. Com isso, o G20 financeiro, reuniões dos ministros de finanças dos 20 países mais ricos do mundo ganhou peso internacional e mobilizou os debates a cerca dos novos caminhos para a economia global. Tanto durante o governo Lula quanto no atual governo Dilma, o Brasil se posicionou contrário às políticas monetárias e ao ajuste fiscal dos países europeus, que sacrificavam o crescimento econômico e criavam novas formas de protecionismo.

Esse novo cenário abriu possibilidades para a política externa brasileira, que de acordo com o ministro Celso Amorim deixou de ser reativa e passou a ser protagonista. Essa nova condição encerra também responsabilidades quanto ao papel do Brasil na defesa dos direitos humanos, seja nas negociações bilaterais seja nos debates nas instâncias da ONU. Para Camila Assano, do Conectas, entidade que acompanha as ações do Brasil na ONU e em especial aquelas que dizem respeito aos direitos humanos, o Brasil tem “grande mérito em identificar, de forma precisa, quais os problemas crônicos pelos quais os direitos humanos são tratados hoje, como a seletividade do sistema internacional e a lógica do naming and chaming ou finger point”. A seletividade diz respeito a forma pouco aberta e inclusiva como as negociações são feitas, nas quais o verdadeiro poder de decisão se concentra nas mãos dos países ricos e o finger point, a política de alguns países em apontar violações cometidas nos territórios de seus pares. O Brasil é refratário as duas formas e desenvolve como estratégia a cooperação e o diálogo, vistas como mais eficaz na busca e incentivo a resolução de conflitos. Mas ao mesmo tempo um demérito é o fato da política externa brasileira focar-se também na abstinência nas votações do Conselho de Direitos Humanos. Assano aponta dois exemplos: a votação de resolução para criação de um relator especial de direitos humanos para a Coréia do Norte e a votação de resolução sobre violações de direitos humanos no Irã, em especial sobre violações de direitos de mulheres. Ativistas de direitos humanos também denunciam violações de direitos e pesado custo ambiental para as populações em situação de fragilidade nos países lusófonos do continente africano e apelam para que o governo seja mais duro quanto a ação das empresas brasileiras no exterior. Em Moçambique, por exemplo, a Vale sistematicamente têm desrespeitado o direito dos trabalhadores (ver mais em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/500479-mocambique-o-menino-bonit…).

Às críticas das ONGs brasileiras, o governo reage afirmando que não é possível realizar uma análise da política externa sem levar em consideração o momento e os principais aspectos das relações internacionais e que o respeito aos direitos humanos é muito mais do que apenas a votação de resoluções e atuação em foros internacionais, caracterizando-se por um processo mais amplo de cooperação entre os países. A crítica à lógica da seletividade em muitos casos faz com que o Brasil se abstenha ou questione certos procedimentos, como aponta Audo Ferreira, representante da Assessoria Especial de Política Externa da Presidência da República: “por que apenas o Irã possui uma resolução sobre direitos das mulheres e não a Arábia Saudita?”, também com claras violações nesse tema. Para ele o ponto está em ser a Arábia Saudita aliada dos Estados Unidos e das potências europeias na região. Ou seja, a dificuldade está em como garantir que a política externa seja balizada pelos direitos humanos e ao mesmo tempo atenda aos múltiplos interesses envolvidos.

Rossana Rocha Reis, professora do departamento de Ciência Política e do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, faz, entretanto uma indagação: o que o Brasil tem oferecido no plano das ideias nos últimos anos para a política externa? As estratégias são múltiplas, mas em geral o Brasil focou seus argumentos em políticas de desenvolvimento tanto no plano internacional quanto nacional, negligenciando em muitos momentos o papel dos direitos humanos nessas discussões. Um exemplo emblemático foi a reação explosiva do governo brasileiro frente ao pedido oficial da OEA (Organização dos Estados Americanos) ao Brasil para adoção de medidas urgentes para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas da bacia do Rio Xingu e suspensão imediata da construção da usina hidrelétrica de Belo Monte até que fossem observadas condições mínimas exigidas para diminuição dos seus impactos sócio-ambientais às populações locais, além de ferir vários dos mecanismos internacionais assinados pelo Brasil. Irritado, o governo brasileiro ameaçou sair da OEA em 2012 e retirar os recursos dados à entidade, alegando violação da soberania brasileira e contribuindo para um processo de reformulação interna, que de acordo com especialistas até agora expôs ainda mais as fragilidades e lobbies perversos, mas sem melhorias reais. A denúncia à OEA foi feita por entidades de direitos humanos, dentre elas SDDH (Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos) e Justiça Global, parceiros da Fundação Heinrich Böll.

Se os interesses políticos e econômicos são aquilo que rege a política externa, em que ponto o respeito aos direitos humanos torna-se inegociável numa ação? Determinar esse ponto e tornar as ações da política externa mais transparentes, de modo que se possa entender e dirimir dúvidas, é o desafio do governo e é o que demanda a sociedade civil.

Conheça a SDDH e a Justiça Global
Acesse a publicação “Crítica à Economia Verde - Impulsos para um Futuro Socioambiental Justo”
Veja o registro dos debates no site da Conferência Nacional: 2003 – 2013 uma nova política externa