Em janeiro de 2012, o ministro Gilberto Carvalho, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirmou durante o Fórum Social Mundial que o Estado deve fazer uma disputa ideológica pela “nova classe média”, que estaria sob hegemonia de setores conservadores. Diz ele: “nós sabemos, quem conhece a periferia desse país, que é um público hegemonizado por setores conservadores. Lembro aqui, sem nenhum preconceito, o papel e a hegemonia das igrejas evangélicas, das seitas pentecostais, que são grande presença para esse público que está emergindo”. Duas semanas depois, o ministro se reuniu com representantes da bancada evangélica e “pediu perdão” por sua declaração, mas na verdade pelo que não disse. Não havia ataque, apenas uma constatação do poder desses grupos sobre parte do eleitorado.
O senador Magno Malta (PR-ES) atacou o secretário no plenário do Senado e em tom beligerante propalou: “Lave a sua boca com álcool, seu Gilberto Carvalho... Está brincando com quem?”. A pergunta não parecia ser uma bravata, pois logo a seguir ele relembrou o apoio dos evangélicos dado ao PT durante a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva e depois à sua sucessora, a presidenta Dilma Rousseff.
Em entrevista logo após sua confirmação para presidir a Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), a ministra Eleonora Menicucci, declarou ser a favor da legalização do aborto, pois não seria uma questão ideológica, e sim de saúde pública. A declaração causou revolta nos setores religiosos que alegaram quebra de acordo com o governo Dilma sobre a questão. Apesar da indicação pessoal, a presidenta Dilma Rousseff não hesitou em enquadrar a ministra feminista ligada à causa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Em seu discurso, na posse da ministra, disse acreditar que ela iria “atuar segundo as diretrizes do governo em todos os temas sobre os quais terá atribuição” e complementou “quando nós assumimos o governo, nós governamos para todos os brasileiros e brasileiras, sem distinções políticas, religiosas ou de qualquer outra ordem”. O discurso foi visto pela imprensa e por analistas como um sinal positivo para a bancada evangélica.
Em março, tomou posse no Ministério da Pesca, o senador Marcelo Crivella, do PRB-RJ, evangélico e com ligações estreitas com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), uma das mais poderosas. O senador substitui o deputado Luiz Sérgio, do PT. Como os cargos em ministérios e no primeiro escalão das empresas estatais são objeto de negociação pelo partido vencedor com sua base aliada, o senador representa a aliança com os evangélicos já testada com o vice de Lula, também do PRB, senador José Alencar, durante seus oito anos de mandato. Apesar de o ministério não ter grande visibilidade e orçamento na gestão pública, é um aceno claro da presidenta aos grupos evangélicos aliados.
As notícias dos últimos meses corroboram o quanto vem aumentando a presença de representantes das Igrejas Pentecostais no Legislativo e no Executivo brasileiro, além de reforçar sua posição de ator político na atual conjuntura. Há que se destacar que o leque de opções é bastante variado quando falamos de evangélicos. Em geral, nesse artigo estarei tratando especificamente dos grupos neopentecostais, criados a partir dos anos 1980, com uma grande inserção na política e visibilidade nos meios de comunicação.
Nesse sentido, quando analisamos as explicações do ministro Gilberto Carvalho e o “puxão de orelha” na ministra da SPM o que fica explícito é o alto comprometimento do PT com esses aliados. O presidencialismo de coalizão[1] brasileiro com sua inevitável dependência de alianças encampa a agenda política de grupos representativos da sociedade, quer sejam aqueles que retrocedem direitos ou os ampliam. É importante lembrar que a vida política para a maioria dos governantes e parlamentares está calcada em conseguir se perpetuar no poder, no seu grupo e com suas alianças, o que significa obter votos e dinheiro para campanhas políticas cada vez mais milionárias. Os evangélicos possuem as duas condições: têm grande poder de convencimento frente a seus milhões de fiéis e podem sustentar campanhas eleitorais com grande visibilidade na sociedade. A conta para os governos chega depois.
Eleitores fiéis
A participação do campo religioso na política não constitui fenômeno recente, a novidade é a existência de atores coletivos, as igrejas evangélicas, que participam e organizam sua rede de relações para atuar nas eleições, não só indicando candidaturas, mas participando do jogo de alianças e das campanhas eleitorais de modo explícito. Para Paul Freston[2], as causas básicas da irrupção pentecostal na política brasileira, com candidaturas oficiais, “têm a ver com a evolução do campo religioso e com o status dos pastores. A constituição do campo religioso e as necessidades dos líderes do protestantismo popular de expansão explicam mais do que qualquer outro fato a entrada na política e o tipo de política praticada”. Em decorrência disso as divisões entre os grupos se aprofundam na medida em que aumenta a proximidade ao poder. Logo, não podemos falar de um grupo homogêneo, e sim de lideranças com estratégias diferenciadas. Isso explica por que os parlamentares evangélicos alegam que só votam juntos nas temáticas que classificam como “éticas” ou “morais” (ISER, 2009). Mas isso não exclui interesses institucionais como as votações sobre concessão de rádio e TV, isenção de impostos e demais benefícios. Assim, os evangélicos não formam um único grupo no Parlamento, nem estão representados em poucos partidos. Nessa legislatura estão em 16 partidos, de todas as tendências, porém com uma clara opção por legendas de centro-direita. A concentração está no Partido Republicano Brasileiro (PRB, oito parlamentares), no Partido Social Cristão (PSC, 11 parlamentares) e no Partido da República (PR, nove parlamentares).
Os resultados das eleições de 2010 apontam o crescimento da bancada evangélica, agora com 71 parlamentares, um aumento de 65% em relação à legislatura anterior. Segundo a Frente Parlamentar Evangélica, foram eleitos 68 deputados e três senadores, sendo hoje a maior bancada do Parlamento. A maioria é do campo majoritário da Assembleia de Deus - 24 dos eleitos -, a Igreja Universal do Reino de Deus conseguiu eleger oito congressistas, entre eles o senador Marcelo Crivella, do PRB/RJ, hoje ministro do governo Dilma Rousseff. Vale lembrar que na eleição de 1989, Lula era apontado pela IURD como o candidato do diabo.
A importância desse segmento para o PT continuou presente nas eleições de 2010, quando os dois primeiros candidatos à Presidência nas pesquisas, Dilma Rousseff (PT) e José Serra (PSDB), tiveram de dar explicações sobre seu posicionamento quanto à criminalização do aborto. Nem Dilma nem Serra tinham perfil religioso definido, nem esta questão estava em debate naquele momento na sociedade. Mas na busca pela fatia de votos dos mais religiosos, em especial dos evangélicos - os que mais exigiram essa definição -, os candidatos se declararam contra o aborto, apesar da adoção de políticas contraceptivas na gestão de José Serra no Ministério da Saúde e das declarações anteriores de Dilma quanto à descriminalização do aborto, feitas publicamente em mais de uma ocasião. Durante a campanha, Dilma teve de lançar uma mensagem se comprometendo a não tomar qualquer iniciativa de “propor alterações de pontos que tratem da legislação do aborto e de outros temas concernentes à família e à livre expressão de qualquer religião no país”.
Mas Dilma já estava trabalhando para conseguir apoio desse segmento muito antes da eleição propriamente dita. Ao ser escolhida pelo presidente Lula como sua sucessora, participou durante dois anos (2008-2009) de diversos cultos e missas tentando estreitar relações com líderes religiosos, católicos e evangélicos, para superar os preconceitos em relação a sua participação em organizações clandestinas nos anos de ditadura, suas convicções marxistas e seu passado na guerrilha. Do lado evangélico, o pragmatismo das lideranças buscava maior visibilidade, fortalecimento do canal direto com as grandes candidaturas e, assim, o compromisso dos candidatos com uma série de acordos que seriam utilizados em momento futuro.
O processo eleitoral também contou com a terceira candidata nas pesquisas, a ex-ministra do Meio Ambiente e senadora, Marina Silva, evangélica da Assembleia de Deus. Ao contrário dos outros candidatos, Marina, logo de início declarou suas convicções, sendo contrária ao aborto. Apesar de o Partido Verde (PV) historicamente sempre ter tido uma plataforma política próxima das demandas dos movimentos feministas e LGBTs. Com um possível impasse no partido, a candidata preferiu lançar a ideia de um plebiscito que definiria questões polêmicas, como aborto e casamento homoafetivo. Apesar de sua identificação com as questões ambientais, a candidata também atraiu votos devido a suas convicções religiosas. Mas não conseguiu o apoio total de sua igreja, a Assembleia de Deus, que também apoiou os outros candidatos.
A força dos evangélicos para a política está nas demonstrações públicas de mobilização de massa, como a Marcha para Jesus, que consegue levar para a rua dois milhões de pessoas, feito somente conseguido pelos movimentos LGBTs, elevados à categoria de principais inimigos por grande parte das igrejas. Tal poder também pode também é demosntrado na movimentação de uma incalculável receita com origem em doações e uma série de empresas, como é o caso da IURD. Um dos casos mais emblemáticos, é dona de 23 emissoras de TV, 40 estações de rádio, seguradoras, agências de viagem, gravadoras, editoras e do segundo maior canal de TV do Brasil, rivalizando com a onipresente Rede Globo.
» Saiba mais sobre os evangélicos no Brasil.
Mediação entre Estado e comunidade
De acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), do IBGE, em 2009 os evangélicos eram 20,4% dos brasileiros, crescendo exponencialmente. Um estudo da FGV (2011)[3] aponta que as regiões historicamente mais pobres, o Norte e Nordeste rural, continuam católicas, enquanto que nas periferias das grandes cidades as novas igrejas pentecostais e os sem religião vêm crescendo. O estudo aponta também que o catolicismo tem perdido força no Brasil, com diminuição em média de 1% ao ano até agora, passando para 68,4% em 2009, o que era 73,8% em 2003. A queda é lenta, porém constante.
A maioria do público dessas igrejas tem baixa escolaridade, estão submetidos à violência constante e à inexistência da presença sistemática e de qualidade do Estado. Onde os serviços básicos do Estado não chegam ou são deficitários, práticas assistenciais, como programas de alfabetização e distribuição de alimentos dessas igrejas suprem necessidades básicas e mediam a relação entre Estado e comunidade. Suas lideranças também são importantes na intermediação de conflitos com outros grupos dentro das comunidades, como traficantes, associações de moradores etc. Isso significa também dar aos seus fiéis uma identidade na comunidade, torná-los pessoas de algum prestígio e poder. Não é à toa que elas vêm crescendo nas regiões mais carentes das cidades, onde até mesmo ONGs, sindicatos, movimentos sociais etc. não ousam entrar. Com isso, estão assumindo um papel estratégico de intermediação entre Estado e sociedade e formando muitas vezes a cultura política dessas populações.
Essas novas igrejas trabalham com a lógica do imediatismo. Muitas delas estão localizadas em lugares de grande circulação, com cultos em vários horários do dia, configurando-se numa “igreja de passagem”, bem adequada à lógica e aos fluxos urbanos. Na porta de várias delas um cartaz anuncia sessões de “descarrego” de maus fluidos ou resolução de seus problemas com a simples pergunta “Qual é o seu problema? Amor, trabalho, saúde”. A religiosidade é baseada na troca imediata, mediada fundamentalmente pelos pastores, num discurso que combina autoajuda com empreendedorismo social.
Como complementação e ampliação de seu poder de convencimento os pentecostais também estão presentes na mídia. Ao todo são 19 redes de TV de propriedade de religiosos e/ou que transmitem conteúdo religioso, sendo dez evangélicas e nove católicas (ISER, 2009), inúmeros programas de rádios (AM e FM), além de TVs via internet. As lideranças evangélicas justificam sua presença na mídia, como um bem social, um instrumento no combate a problemas sociais atuais, como a violência, os conflitos familiares etc.
Essas igrejas também se utilizam das conexões com celebridades nacionais, como jogadores de futebol e artistas, garotos(as) propaganda de suas pautas políticas e sociais. Um exemplo disso foi a final da Copa do Mundo em 2002 quando alguns jogadores da seleção brasileira de futebol exibiram nas camisas os dizeres em inglês "I belong to Jesus", "I love Jesus" etc., e quando três deles fizeram um círculo e entoaram uma oração. Naquela ocasião, a Fifa declarou que não teria como impedir a equipe que acabara de se sagrar campeã de "comemorar à sua maneira". A queixa era de que os jogadores, muitos deles evangélicos, estariam utilizando o espaço midiático dos jogos para fazer propaganda religiosa, o que poderia ser seguido por outros grupos, como os mulçumanos, na verdade aqueles de quem se tinha mais temor já que estávamos a quase um ano do 11 de setembro. Mas na Copa das Confederações, em 2009, a seleção voltou a fazer os mesmos gestos. Porém, dessa vez todo o time foi para o centro do campo e rezou. Isso fez com que a FIFA se manifestasse publicamente, reforçando a proibição de qualquer manifestação religiosa na Copa de 2010, na África do Sul.
“Projeto de nação”
A incorporação da Teologia da Prosperidade, descrita por Mariano[4], é também um estimulante para a inserção dos neopentecostais em situações de mercado, pois “cumpre importante papel no reforço da convicção pastoral de que a obtenção de lucro no desempenho das atividades denominacionais, sejam elas administrativas ou religiosas, não constitui problema ético ou religioso”. São grupos relativamente novos que conseguiram captar os ritmos da sociedade moderna, seus processos e principalmente as linguagens das mídias, processando–as e devolvendo-as para o âmbito religioso. Apesar de haver grupos que ainda não utilizam o evangelismo eletrônico ou têm candidatos a cargos eletivos, o Brasil já começa a exportar essa fórmula, sendo hoje o país com o segundo maior número de missionários no mundo. Dos 400 mil missionários enviados para vários países por igrejas cristãs em 2010, 34 mil são brasileiros. Estão principalmente na África, o que coloca o Brasil como segundo maior país em número de missionários, atrás somente dos EUA[5]. Só a IURD está presente em 180 países.
Apesar das críticas recorrentes de analistas e políticos de que os interesses dos evangélicos na política são apenas comerciais, ou seja, querem a ampliação de seu mercado religioso, hoje em franca expansão, no livro Plano de Poder (2008), do fundador da IURD, Edir Macedo, a contracapa traz o seguinte texto: “Plano de poder demonstra que Deus tem um grande projeto de nação elaborado por ele mesmo e que é nossa [evangélicos] responsabilidade apresentá-lo e colocá-lo em prática”. Qual seria o projeto de nação dos grupos neopentencostais?
[1] O conceito presidencialismo de coalizão foi proposto por Sergio Abranches (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados, v.31, n.1, p 5-38, 1988) e diz respeito ao modelo de sistema político brasileiro, no qual o partido vencedor das eleições precisa formar uma ampla base aliada. Para isso, utiliza-se de negociação de cargos da gestão pública. Em geral, as alianças não são feitas a partir de linhas programáticas, e sim de objetivos em comum e da força política dos partidos.
[2] FRESTON, PAUL. Pentecostalimso e democracia no Brasil. Lusotopie, 329-340pp. 1999.
[3] Mapa das religiões no Brasil.Coord. Marcelo Neri. Centro de Políticas da Fundação Getúlio Vargas. 2011. Disponível em http://www.fgv.br/cps/religiao/ , acesso 12/03/2012.
[4] MARIANO, Ricardo. Efeitos da secularização do Estado, do pluralismo e do mercado religiosos sobre as igrejas pentecostais. Revista Civitas, Porto Alegre, v. 3, nº 1, jun. 2003, pp. 118.
[5] http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2012/03/120229_missionarios_pai.shtml, consultado em 12/03/2012.