Tecnologias e Covid-19 no Brasil: entre a desinformação e a vigilância invisível

Frente ao avanço da pandemia da Covid-19 no mundo, o Brasil declarou estado de emergência em saúde pública no dia 3 de fevereiro de 2020 por meio de portaria do Ministério da Saúde e em seguida aprovou lei detalhando as medidas para o enfrentamento da situação. A lei determina a obrigatoriedade do compartilhamento de dados essenciais à identificação de pessoas infectadas entre órgãos e entidades da administração pública federal, estadual, distrital e municipal. Além disso, foi decretado estado de calamidade pública até 31 de dezembro de 2020 em decorrência das consequências da pandemia. No entanto, a partir de um discurso negacionista, o governo federal brasileiro optou por contrariar as orientações de autoridades internacionais de saúde e promover soluções controversas para a cura do vírus. Somada a uma preferência pela desinformação, a estratégia resultou até o momento em mais de 100 mil mortos e 3 milhões de infectados, tornando o país um dos mais afetados pela pandemia no mundo. 

Tecnologia big data para obter informações sobre as populações e o avanço da pandemia

A incapacidade de gestão do governo federal, aliada ao um projeto político-econômico guiado por uma lógica de aprofundamento do neoliberalismo, durante a crise de saúde faz-se evidente: desde abril o país não conta com um Ministro da Saúde. A pasta é ocupada por um ministro interino, o general Eduardo Pazuello, que se soma a um governo cada vez mais militarizado. 

Vigilância, desconfiança e desinformação

A resposta ao avanço do coronavírus em território nacional ficou sob responsabilidade das autoridades estaduais e municipais, o que dificultou o acesso, de forma transparente e precisa, às informações relacionadas a seu avanço no país. A ausência de testes somada a sucessivas mudanças na forma de apresentação dos dados, quando os casos e óbitos estavam em plena ascensão no país, agravou a situação. As alterações geraram desconfiança dado o histórico da atual gestão federal em restringir o acesso a informações de interesse público em uma guinada que remonta práticas autoritárias.

Frente à confusão, órgãos de imprensa criaram um consórcio independente para verificar e reunir informações divulgadas pelas secretarias estaduais de saúde e manter a população informada sobre a evolução da doença no país. Ainda assim, se enfrentam a variações na divulgação dos dados por parte das gestões locais. Nesse contexto, também emergiram acordos entre governos e prefeituras e empresas de telefonia e de tecnologia para monitorar os níveis de cumprimento da quarentena nas regiões e localizar pessoas contaminadas, seguindo uma tendência internacional observada na atual pandemia, em que governos de todo o mundo têm recorrido às tecnologias baseadas em big data para obter informações sobre as populações e o avanço da pandemia. 

Cabe ressaltar que a vigilância em saúde pública é uma ferramenta essencial para responder a questões emergenciais e, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) “a coleta, análise e interpretação sistemática e contínua de dados relacionados à saúde, ‘são’ necessários para o planejamento, implementação e avaliação das práticas de saúde pública” e funcionam como “alicerce do surto e resposta epidêmica”. No entanto, ao analisarmos o contexto da adesão de soluções tecnológicas no Brasil, notamos a forma acrítica com que geralmente são empregadas. Diferente de outros países, o Brasil apresenta várias limitações técnicas, políticas e estruturais que fazem com que o uso de tecnologia para auxiliar no combate ao Covid-19 não seja tão eficiente. 

À desigualdade no acesso à Internet se somam as restrições em relação ao espaço de armazenamento e/ou a data de fabricação dos dispositivos adotados por boa parte dos usuários no país. Isso significa que políticas que se baseiem em dados de conexão à torres de celular ou que dependam do uso de aplicativos podem ser enviesadas ou inócuas. Estudos internacionais indicam que o êxito de tecnologias para a notificação de pessoas que potencialmente estiveram expostas ao coronavírus e o monitoramento de sintomas depende de níveis de adesão superiores a 60 por cento da população e a 80 por cento dos usuários de smartphones. 

Do ponto de vista da privacidade, além da desigualdade em termos do acesso a dispositivos e à conexão, há de se considerar os diferentes níveis de familiaridade com as tecnologias, principalmente entre os grupos de maior risco ou populações historicamente mais vulneráveis, e seu impacto na oferta de um consentimento efetivamente informado sobre o uso de seus dados sensíveis. 
Soma-se a isso, a ausência de um marco legal adequado, ainda que uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) tenha sido aprovada em 2018 no Brasil, depois de quase uma década de debates sobre o tema, sua vigência e amplitude de aplicação são motivos de controvérsia e resistência nos âmbitos público e privado. A situação coloca em risco o direto à privacidade garantido constitucionalmente.

O invisível negócio da vigilância

São inúmeros os acordos de compartilhamento de dados entre o setor privado e o público no Brasil. Cidades como Rio de Janeiro, Recife e Florianópolis, assim como os estados do Amazonas, São Paulo, Santa Catarina, entre outros, adotaram diferentes modelos de uso de tecnologias para auxiliar no combate à COVID-19. As estratégias incluem o uso de dados de conexão celular ou geolocalização para identificar padrões de mobilidade e concentração populacional, assim como enviar notificações e advertências a pessoas potencialmente expostas ao vírus. Mas se os objetivos e formatos variam, essas iniciativas têm em comum a dependência de dados pessoais e a falta de transparência sobre como elas são utilizadas, por quem e sob quais condições. As parcerias envolvem empresas de telecomunicações, start-ups ou grandes empresas de tecnologia que, na maioria dos casos, já tinham seus modelos de negócios baseado na vigilância por meio do rastreamento de pessoas para fins de publicidade, análise financeira ou segurança pública e que agora surgem como grandes aliadas no combate à Covid-19. 

Um dos grandes exemplos nesse sentido é o da start-up brasileira Inloco, que estabeleceu acordos com diversos estados brasileiros. A empresa desenvolveu um “Mapa brasileiro da COVID-19”, com dados sobre o percentual da população que está respeitando a recomendação do isolamento. Para isso conta com dados de geolocalização coletados de aplicativos de empresas do setor financeiro e redes de varejo. Segundo informações publicadas na imprensa, antes da pandemia a InLoco reunia um banco de dados de 60 milhões de dispositivos monitorados. A empresa afirma proteger a privacidade das pessoas e informa que as análises oferecidas são feitas a partir de dados agregados.

Além disso, indica que não coleta informações de identificação civil ou contas associadas, como e-mail e telefone. Os dados seriam coletados a partir de consentimento voluntário das usuárias e usuários que instalam os aplicativos parceiros. A empresa, porém, não especifica quais aplicativos possuem sua tecnologia instalada ou seu entendimento da palavra “voluntariamente”, uma vez que a migração de bancos para o ambiente digital condiciona o acesso a serviços à adesão a seus termos de uso.  

O mesmo ocorre com outros serviços digitais, inclusive oferecidos pelo Estado, como o próprio auxílio emergencial oferecido para a população mais vulnerável durante a pandemia. Esse tipo de condicionamento se agrava durante a crise de saúde devido à necessidade de atenção às medidas de isolamento social e coloca em xeque a ideia de um consentimento livre, especialmente devido à impossibilidade de concordar parcialmente com as políticas de coleta e uso impostas unilateralmente pelas empresas. O modelo não é exclusividade da Inloco e encontra-se na base do chamado capitalismo de vigilância, que está presente em nosso cotidiano e faz parte das nossas conversas e da nossa interação no ambiente digital, principalmente durante a pandemia e o isolamento social. São formas de vigilância que não nos dão medo, como ocorriam nos séculos passados, em que a vigilância tinha “rosto” e, por vezes, ocupava um “cargo”. Trata-se agora de uma vigilância quase invisível que nos acompanha em forma de entretenimento e ferramenta de trabalho. 

Saúde e direitos humanos

Se a emergência de saúde pode justificar a coleta de dados de maneira excepcional, qualquer medida de vigilância adotada deve respeitar os direitos humanos e os critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade. Regras limitando a coleta e o compartilhamento de dados ao mínimo necessário para o controle da pandemia, restringindo usos para outras finalidades, assim como compromissos explícitos com a deleção de dados após a emergência de saúde são, até o momento, ausentes ou desconhecidos, apontando a um desequilíbrio na garantia de direitos fundamentais e a falta de transparência no funcionamento e na implementação dessas medidas.

Além de políticas econômicas e sociais capazes de garantir que as pessoas em situação mais vulnerável possam adotar medidas necessárias para se proteger sem se deixar apanhar na falsa dicotomia de “morrer de Covid ou morrer de fome”, é urgente, entre inúmeros outros esforços, a criação de comitê de comunicação baseado em fatos científicos que instrua os cidadãos sobre a gravidade da situação e que cumpra com os compromissos existentes em termos de acesso à informação e transparência pública – inclusive no que diz respeito às parcerias estabelecidas para vigilância e controle e como isso se dará durante e no pós-pandemia em relação a todos os dados coletados. 

Os desafios e as implicações políticas e sociais colocados por essas tecnologias de vigilância neste período são, como a pandemia, sem precedentes. Frank Pasquale no livro The Black Box Society já alertava que pontuações de saúde poderiam algum dia ser mais importantes do que pontuações de crédito e já se observa a emergência desse tipo de proposta para orientar, por exemplo, quem deveria ser priorizado no tratamento contra o Covid-19 num contexto de escassez de equipamentos de saúde em alguns estados dos Estados Unidos. A tecnologia é utilizada, assim, não só como instrumento de controle e vigilância, mas como auxiliar direta na necropolítica a gestão de quem deve morrer ou viver. Obviamente, a decisão não é neutra: pessoas com doenças prévias podem receber pontuação menor e terem o tratamento despriorizado, o que deve afetar particularmente grupos tradicionalmente vulneráveis, como mulheres e a população negra.

A pandemia não deve em nenhuma hipótese servir como desculpa para a transferência e comercialização de dados sensíveis da população, sob o risco de criar novas formas de discriminação e acentuar ainda mais as desigualdades com as quais o país já não pode arcar. O cenário internacional evidencia como a infinita base de dados disponível para governos e empresas, a partir das nossas interações com as tecnologias, pode terminar por determinar se teremos ou não acesso a respiradores em um contexto de anunciada escassez de suprimentos médicos. No caso brasileiro não há dúvidas de que sistemas desse tipo terminariam por legitimar a política histórica de genocídio de populações que se manifesta em uma série de outras formas.

Este artigo foi escrito originalmente em espanhol para a Revista Perspectivas (clique aqui