Jornalismo, saúde e segurança pública: uma conversa com Cecília Olliveira

Em nosso primeiro Conversas com a Böll, nova série de entrevistas com especialistas e estudiosos de diversas áreas, conversamos com Cecília Olliveira, jornalista do Intercept BR e pós-graduada em Criminalidade e Segurança Pública e em Administração Pública com ênfase em Gestão Sociais, sobre seu trabalho no Intercept BR, segurança pública e política na pandemia. Desenvolvedora da plataforma colaborativa de monitoramento Fogo Cruzado, que mapeia a violência urbana no Rio de Janeiro e no Recife. Junto a Leandro Demori, Cecília foi indicada ao prêmio One World Media Awards 2020, na categoria de Mídia Digital, pela reportagem “O Rio pós-tiroteios: achamos balas até da Guerra Fria”, na qual durante 100 dias, os jornalistas buscaram pelas ruas da cidade cartuchos pós-tiroteio com o intuito de mapear essas munições.

homem usando máscara apoiado na janela

Fundação Böll: Como têm sido o trabalho de vocês (InterceptBR) durante a pandemia?

Cecília Olliveira: Eu tinha investigações em curso que infelizmente não vão seguir nesse período. Então, continuo tratando sobre o tema segurança, mas com outra abordagem, como a pandemia está afetando as forças de segurança. Nós não perdemos os pilares, continuamos investigando, conseguimos dar a informação da demissão em massa na startup de educação do Luciano Huck, por exemplo.  Uma outra coisa que temos feito muito inclusive é trabalhar nas traduções de matérias publicadas no intercept US, porque tem muitas questões que tem a ver [com a nossa realidade], especialmente por conta da “amizade” entre Trump e Bolsonaro. Estamos mostrando como está sendo a condução dessa crise sanitária por lá, traduzimos uma matéria sobre a Cloroquina, pessoas de lá morreram usando, por exemplo. Outra matéria interessante, é uma entrevista que Andrew Fishman fez com o Achal Prabhala, um ativista que luta pelo acesso à medicina e trabalha com a Fiocruz na quebra de patentes de medicamentos. Porque essa crise é um momento em que muita gente vai lucrar com a vacina [contra o coronavírus], um investimento cem por cento garantido.  Vão colocar o preço que bem desejar e negociar como quiserem.
 

Fundação Böll: Há uma competição brutal pelo descobrimento dessa vacina, então? 

Cecília Olliveira: Sim, ele dá o exemplo do Brasil, de termos quebrado a patente do medicamento contra a Aids, um acontecimento que marcou o mundo e que mostrou que quem detém essas patentes não está preocupado com os doentes.  A entrevista aborda a corrida entre os laboratórios e pontua a importância de que isso seja desenvolvido pelo setor público para garantir o acesso, como aconteceu com outras vacinas que mudaram a história da humanidade.

De acordo com um podcast que ouvi sobre o SUS, vem havendo desinvestimentos na produção de vacinas na Fiocruz, que especialmente nesse momento nos é vital. Além disso, manipulações na estrutura do SUS, para que ele só atenda pessoas pobres ou muito pobres, e um direcionamento para os plano de saúde das pessoas que tenham a mínima condição de pagar. O que se quer é que esses planos “trabalhem” para o SUS, para que assim ele pague a estrutura privada para continuar funcionando, que é em parte o que já acontece hoje.
Eu tenho conversado com amigos e percebido que nós não entendemos a importância do SUS, não entendemos a amplitude desse sistema. Por exemplo, eu, uma pessoa que possuo acesso à informação, não sabia que você pode ir até o posto de saúde e retirar hipoclorito para lavar as verduras e que isso faz parte de uma política pública de prevenção. O que tenho observado nas coberturas feitas sobre essa crise é que não se fala muito sobre o que é o Sistema Único de Saúde e qual é o papel dele nessa crise. Então quando se fala da Fiocruz, por exemplo, é como se ela fosse uma fundação independente. Isso faz parte de uma campanha de anos para descredibilizar o SUS, evidenciar as filas e dificuldades e isso é real, mas a solução não é acabar com o SUS, mas sim fortalecê-lo.
 

Fundação Böll: Cecília e na área de segurança pública? lembro que você falou que as guerras entre facções e milícias continuam. A partir do monitoramento que vocês têm feito lá no Fogo Cruzado, poderia nos dizer como está esse cenário? 

Cecília Olliveira. Lançamos um relatório no final de março pelo Fogo Cruzado e o que vimos foi que houve uma redução de tiroteios de 11% desde o período da quarentena. Mas, nós não conseguimos ver situações específicas, como é o caso de Quintino, onde a disputa segue acirrada, ali acontece uma briga entre milícia e CV.
Então, tem menos tiroteios, especialmente com menor presença da polícia, que caiu pela metade. No mês anterior em tiroteios 35% havia a presença de algum agente de segurança. Quando entrou a quarentena essa proporção caiu para 17%. Discutindo com um colega chegamos à conclusão de que a política pública de saúde tem sido a melhor política de segurança no momento. Mas ainda há muita operação.

Fundação Böll: Há alguma mudança no acesso à informação com essa pandemia?

Cecília Olliveira. Discutimos bastante sobre como conseguiríamos “mapear” a realidade, pois sabemos que há muita subnotificação. As pessoas estão morrendo sem serem testadas ou sendo internadas e saindo sem o resultado de algum exame, mas é uma questão mais complexa do que a gente tem perna pra fazer. Eu tenho acompanhado o trabalho do Brasil.IO, que é um pessoal com quem eu trabalho muito de perto. Eles trabalham com jornalismo e dados e conseguiram juntar vários bancos de dados de diversas secretarias municipais para mapear de perto o que tem sido feito, inclusive os números deles divergem dos números do Ministério da Saúde, então já há jornalistas fazendo isso.

Tivemos em março aquela tentativa de restrição à Lei de Acesso à Informação, que foi derrubada logo depois. Mas assim, acesso a informação tem lugares que funcionam muito bem, mas há lugares em que isso é muito sofrido mesmo, e nesse momento piora. Eu tenho pedidos pendentes, mas não tenho notado nenhuma restrição.

Fundação Böll: Em relação às facções criminosas, como elas estão funcionando nesse período? Você acompanhou alguma mudança?

Cecília Olliveira. Houve uma movimentação de “gestões independentes”, digamos assim, e conversando com um colega da zona oeste ele me contou que na área dele a milícia suspendeu as cobranças, porque o comércio está fechado, mas isso varia bastante, tem lugares em que isso segue, como em Quintino, por exemplo.

Fundação Böll: Com a crise econômica que deve gerar diminuição de empregos, demissão em massa, etc., vocês têm feito alguma previsão acerca do possível aumento da violência urbana?

Cecília Olliveira. Previsão nós não temos, mas já assistimos isso em outros momentos. Quando acontece alguma desestabilização social há saques, então não seria algo fora de sentido se caminharmos para um descontrole político. Os governadores têm segurado bastante, pois não esperaram o presidente para tomar decisões, então há um controle: a polícia segue na rua, os bombeiros rodam com carro de som para alertar as pessoas para irem para suas casas, saírem das praias, ou seja, as pessoas ainda percebem que há presença do poder público. Então isso é um ótimo regulador. As pessoas precisam entender que por mais que a situação não esteja em sua normalidade, ainda há um tipo de ordenamento social, que não estamos largados à sorte.

Por outro lado, tivemos muita gente comprando muita arma em 2019 e há uma questão que, se as pessoas se descontrolam e acham que o mundo está acabando por algum motivo, nós temos muitas pessoas, muitas armas e muitas teorias da conspiração. Então, é importante que o governo deixe claro que a população não está guardada a própria sorte, que há um suporte, porque muitas dessas situações acontecem nesse vácuo de poder. 

Fundação Böll: Muito tem se falado sobre as últimas ações do presidente Bolsonaro, principalmente em relação às fake news. As pessoas têm declarado que não temos mais presidente, ou que ele não está cumprindo seu papel, muitos de seus eleitores têm esse discurso inclusive. Você acha que essa crise representa de fato alguma perda de governabilidade, um real enfraquecimento da força do Executivo? Ou o contrário? Se de fato esse cenário que você coloca, da religiosidade excessiva e conspiracionista leva ao fortalecimento do apoio à Jair Bolsonaro?

Cecília Olliveira. Acho que tem as duas coisas.  Eu estava conversando com uma amiga hoje, que é muito religiosa, e ela tinha me mandado por Whatsapp o convite para o jejum de domingo. A [ministra] Damares já tinha postado ontem no Twitter que teríamos um grande jejum no domingo para o bem do Brasil contra o coronavírus. Por um lado vemos pessoas acordando, mas que não estavam plenamente dormindo, por exemplo o apoio do [prefeito João] Doria ao Bolsonaro era um apoio completamente consciente, era uma escada, não é mais útil rompeu e tchau e foi o que aconteceu com o [governador Wilson] Witzel também. Mas, eu acho que na ala mais religiosa, mais conspiracionista, é uma parada mais meio seita mesmo, então a razão não importa, não é sobre ter sentido ou fazer sentido, é sobre obedecer o líder.
Eu estava assistindo um vídeo do Marco Feliciano em que ele fala: “Estamos em uma guerra espiritual, estamos batalhando contra o inimigo”. Então, as palavras de ordem continuam sendo as mesmas, essa coisa da batalha contra o mal, de que precisamos nos manter fortes, orar pelas autoridades, porque toda autoridade vem de Deus. E isso acontece mesmo que parte da massa que esteja ouvindo essa mensagem seja a mesma que esteja esperando a dias a liberação do auxílio emergencial. Eles não fazem a conexão de que esse cara está sentado ali em cima do dinheiro e pedindo para você jejuar domingo. Então tem uma ala mais religiosa, conspiracionista, olavista e tem ala que é mais aproveitadora e já pulou do barco. Temos Janaína Paschoal falando abertamente de impeachment, então é tudo muito inseguro.

Fundação Böll: Recentemente nós acompanhamos a remoção de tuítes do presidente Jair Bolsonaro, por serem considerados fake news, além disso tivemos também pedidos de bloqueio de contas de pessoas como Silas Malafaia, Olavo de Carvalho, entre outros políticos. Você acredita que essas ações tenham algum efeito na imagem pública de Jair Bolsonaro diante de seus eleitores e da mídia internacional?

Cecília Olliveira. Ontem, ele [Jair Bolsonaro] falou numa live sobre a capa do The Washington Post. Hoje há uma charge bem crítica na The Economist. Isso não é de todo uma novidade, porque as pessoas já tinham a percepção de que ele é perigoso, porque coloca a vida das pessoas em risco.

Sobre essa questão das fake news, os que estão fechados na seita não se importam. Eu recentemente voltei para o Facebook e têm teorias que só rodam no Facebook que são realmente impressionantes. Respondi um post de uma pessoa que dizia que já existia uma vacina de cachorro contra o coronavírus e que eles não estão deixando as pessoas tomarem. Eu não consigo imaginar o que fazer, o que dizer e o que argumentar com uma pessoa que acredita nesse tipo de coisa. É um problema maior que as fake news, é um problema cognitivo, é um problema de educação, é uma questão muito maior.

Fundação Böll: Mas todos os apoiadores dele são assim?

Cecília Olliveira. Não, não são todos, mas existe uma ala extremamente cega que acredita nesse tipo de coisa e com essa ala conspiracionista é muito difícil de argumentar, você tem que ser extremamente didático. As outras alas que você vê acordando, não estavam no barco porque o Bolsonaro é Bolsonaro, mas sim porque o Bolsonaro tem o que eles queriam: capacidade de passar a reforma tal ou porque ele representa uma ala e é isso, mas nessas outras alas já tem gente que percebeu que não tem como defender.