Como a pandemia do Covid-19 afeta a comunidade LGBTI+ na Turquia?

O escritório da Fundação Heinrich Böll na Turquia/Istambul analisa os problemas enfrentados pela população LGBTI + com a pandemia do Covid-19. Ficar em casa gera preocupações referentes à violência doméstica, pois esse grupo está entre os mais vulneráveis. Além disso, há a ampliação da discriminação nos cuidados de saúde e  ​​em relação ao acesso ao emprego e renda. Para piorar a situação, o discurso de ódio contra essa comunidade, sob o pretexto de Covid-19, está em ascensão.

cenas que mostram pessoas lgbts em situações diversas, o desenho do covid-19 aparece no canto da tela, integrando a cena

A pandemia do Covid-19 se tornou a crise global do nosso tempo. A Turquia anunciou seu primeiro caso confirmado em 11 de março de 2020. À partir dessa data, o governo implementou um conjunto de medidas em um esforço para conter o surto, todos liderados principalmente pelos Ministérios da Saúde e do Interior. Ordens de confinamento foram impostas para determinadas faixas etárias, pessoas foram proibidas de deixar suas casas sem máscaras, restrições para viajar foram impostas a províncias com status metropolitano e toque de recolher parcial estavam entre essas medidas. Enquanto o Ministério da Saúde ainda está pedindo para que a sociedade siga as medidas de ficar em casa, muitos trabalhadores de diferentes setores precisam continuar saindo em busca de trabalho.

Em outras palavras, a história da pandemia do Covid-19 na Turquia pode ser resumida quando as autoridades simplesmente incentivaram as pessoas a "declarar seu próprio estado de emergência". No entanto, essa abordagem tem sérias implicações para os indivíduos da comunidade LGBTI + que já estão entre os grupos mais vulneráveis do país e que já estavam enfrentando desafios tanto no acesso a direitos quanto às violações sistemáticas dos mesmos, incluindo aquelas relacionadas ao direito à vida. Além das desigualdades no que tange o direito à saúde e ao emprego, dos relatos crescentes de violência doméstica por causa do isolamento, a comunidade LGBTI + está sendo acometida por uma recente onda de campanhas motivadas pelo ódio.

  1. O Direito a Saúde

“ Sempre que eu tentava receber apoio psicológico, encontrava homofobia. Por esse motivo, perdi a esperança em superar meus traumas. A sensação é que esse sempre será o caso. “

A citação acima foi retirada do relatório de 2018 da Kaos GL sobre "Crimes de ódio baseados em incidentes homofóbicos e transfóbicos na Turquia" [1]. O relatório documenta que certas formas de crimes de ódio têm efeitos psicológicos mais graves para indivíduos LGBTI + do que outros crimes. Em comparação com outros grupos, as pessoas que relatam incidentes negativos desencadeados por sua orientação sexual ou identidade de gênero mostram mais sinais de depressão, estresse traumático, ansiedade e raiva. Porém, o apoio psicológico que deveria lidar com esses eventos angustiantes é, em sua maior parte, inadequado ou perpetua a discriminação já existente, como confirma o relato acima.

No entanto, na Turquia não há nenhuma previsão legal diretamente relacionada que garanta o direito dos indivíduos LGBTI + de acessar os cuidados de saúde em bases iguais e sem discriminação.

Em 2018, um médico discriminou publicamente um paciente, compartilhando os dados privados do mesmo nas mídias sociais, escrevendo o seguinte: "As pessoas não conhecem fronteiras" e "Acho que ele está promovendo suas nádegas". Em 2020, esse médico foi processado. [2] No entanto, este caso está entre os poucos em que um sobrevivente de tais atos discriminatórios encontrou coragem e poder para procurar uma solução jurídica.

Em um clima no qual o direito ao acesso aos serviços de saúde está repleto de barreiras discriminatórias, serviços inadequados, estigmatização e discriminação podem facilmente se transformar em fatores de risco de vida para a comunidade LGBTI + em meio a uma emergência de saúde pública, como a pandemia do Covid-19.

Em relação ao impacto da situação atual nas pessoas trans que estão em processo de mudança de gênero, Efruz Kaya, da Associação Vida Rosa (Pembe Hayat Derneği), consultada para este artigo, disse que seus beneficiários foram aconselhados a não fazer as visitas hospitalares devido ao alto risco de infecção. Acrescentando ainda que essa situação vem criando perturbações e preocupações legítimas entre a comunidade. Kaya afirma: "Como todos os hospitais são hospitais pandêmicos em potencial, alguns contratempos foram realmente relatados". Enquanto alguns indivíduos tiveram que adiar seus testes de rotina associados ao processo de mudança de gênero, outros temem que o acesso aos hormônios possa se tornar ainda mais difícil nos próximos dias. Kaya enfatizou: “declarações que buscam aliviar o medo em praticamente todos os aspectos da vida também devem abordar preocupações que possam ter um impacto vital na comunidade de transgêneros. Porque a incerteza predominante tem o potencial de contribuir para erros ainda maiores. ”

Em seu recente artigo [3] para Kaos GL, Koray Başar, professor associado de psiquiatria na Universidade de Hacettepe, afirmou que “as dificuldades experimentadas pela comunidade LGBTI + são muitas vezes agravadas por epidemias, desastres e traumas em massa”. Lembrando que os indivíduos LGBTI + já vem lutando com taxas mais altas de doenças mentais e psicológicas devido a níveis persistentes e crônicos de estresse. O Prof. Başar explicou que os obstáculos encontrados no acesso aos serviços de saúde que se apresentam agora no contexto da pandemia do Covid-19 e que já existiam em outros períodos certamente representam um alto risco de discriminação contra a comunidade tanto no diagnóstico e tratamento, bem como no monitoramento de entrada / saída de pacientes.

Além disso, esse risco é muito maior para indivíduos LGBTI +  que são HIV positivo. Yasin Erkaymaz, da Associação Pozitif-iz (Pozitif-iz Derneği), a quem consultamos para este artigo, disse que as pessoas em regime de tratamento regular ainda podem obter medicamentos nas farmácias, mas há relatos de dificuldades em acessar os testes de monitoramento e de acompanhamento. Erkaymaz também nos disse que a Associação fornece essas informações a seus beneficiários e os aconselha a "adiar os testes padrão". Erkaymaz acrescentou que atrasos e/ou defasagens na entrega de resultados positivos também tem sido relatados.

  1. Emprego

Os resultados da pesquisa realizada em conjunto pela Kaos GL e pela Universidade Kadir Has sobre a realidade de indivíduos LGBTI + que trabalham nos setores público [4] e privado [5], sugerem que as pessoas sentem a necessidade de esconder suas identidades em ambos os setores e que a discriminação geralmente já começa nas entrevistas de trabalho e que esse discurso de ódio é particularmente predominante no setor público.

Os indivíduos LGBTI + que já estão entre os grupos mais vulneráveis trabalhando em acordos de trabalho precários, agora ainda correm o risco de se tornarem os primeiros a serem descartados. Conforme relatado pelos entrevistados citados nesses relatórios, pensamentos como “sentir-se obrigado a trabalhar mais e evitar cometer erros a todo custo” se intensificam durante as pandemias e essa situação aumenta o risco de exploração daqueles que conseguem manter com sucesso seus empregos.

"Nossos amigos que não têm seguro social ou emprego regular enfrentam agora um período de incertezas que pode durar meses. Como não receberam nenhuma forma de pagamento adiantado, precisam do nosso apoio. ”[6]

“Infelizmente, essa situação - que talvez se tornou uma espécie de aviso ao mundo - significa uma paralização do setor de música e entretenimento e, portanto, representa um desafio econômico para nossos amigos que trabalham nesses setores.” [7]

“O cenário econômico no qual podíamos organizar shows e coletar dicas nos últimos 2 anos entrou em colapso. Mesmo nos primeiros dias desta crise, nossos amigos que ainda são estudantes, que estão desempregados ou que estavam cuidando de si mesmos sem receber apoio de suas famílias, estão agora mais inseguros do que nunca. Muitos deles não têm previdência social, poupança ou qualquer outra possibilidade de subsistência e estão lutando para atender às suas necessidades básicas, incluindo assistência médica e moradia. ”[8]

Essas citações foram retiradas de três campanhas diferentes de solidariedade, iniciadas com o intuito de apoiar os trabalhadores “ queer “. Derrotados pelas paralisações, os setores de serviços e entretenimento foram os mais atingidos com perdas de empregos, e essa situação inevitavelmente afetou muito os trabalhadores e artistas performáticos que trabalham na vida noturna queer, um setor que é uma fonte emergente de emprego para muitos. Sendo assim, essas campanhas de solidariedade, que tem como objetivo apoiar os trabalhadores da vida noturna que perderam o emprego devido à pandemia, indicam claramente como o desemprego afeta os trabalhadores LGBTI+.

Os trabalhadores do sexo LGBTI+ estão, por outro lado, divididos entre duas opções: a indigência ou continuar trabalhando apesar dos riscos associados a prática. Entre esses indivíduos, aqueles que não têm cobertura de um seguro social e aqueles que foram obrigados a adotar um modo informal de emprego estão entre os grupos de maior risco. Efruz Kaya, da Associação Pink Life (Pembe Hayat Derneği), afirmou: “Os profissionais do sexo estão entre os grupos de alto risco simplesmente porque trabalham com outras pessoas. Existe o contato físico direto. Nós os aconselhamos a trabalhar alternativamente online. Muitos pararam de trabalhar; ainda assim, sobreviver sem cobertura previdenciária ou apoio do Estado é um desafio imenso. Muitos terão que voltar ao trabalho em um futuro não muito distante.

  1. A casa é realmente segura?

Os indivíduos LGBTI+ estão entre os grupos mais visados, vítimas ​​de crimes de ódio e discriminação relatados na Turquia. De acordo com o relatório “Crimes de Ódio na Turquia” [9], quase todas as pessoas que foram atacadas devido à sua orientação sexual ou identidade de gênero sofrem isso continuamente também ao longo da sua vida, incluindo os ataques enfrentados em suas próprias casas. A maioria dos crimes de ódio ocorreu dentro ou perto de escolas e residências, em transportes públicos ou em paradas / estações, em cafés e bares, nas ruas ou em outros espaços públicos. O relatório constata que crimes de ódio cometidos dentro da própria residência sugere ainda que o isolamento pode representar sérias ameaças à segurança de muitos indivíduos LGBTI+. Além dessas descobertas, os assassinatos de Roşin Çiçek [10] e Ahmet Yıldız [11] demonstram claramente que, em muitos casos, os membros da família podem ser os autores de crimes ou assassinatos motivados pelo ódio. Indivíduos LGBTI+ que não têm casa ou que tiveram que voltar para as casas de familiares devido ao fechamento de dormitórios de estudantes ou da falta de recursos financeiros suficientes estão agora enfrentando também o risco de violência doméstica.

O mesmo relatório sugere ainda que a maioria dos indivíduos LGBTI +, vítimas de crimes de ódio, temem suas próprias famílias e os agentes da lei e que a falta de confiança nos tribunais ou em outros órgãos estatais minimiza a denúncia de tais crimes. Assim, podemos argumentar que os indivíduos LGBTI+, que são submetidos a abusos violentos em casa, podem ficar ainda mais relutantes em denunciar esses crimes, ainda mais face a um momento no qual as medidas impostas contra pandemia restringem essas pessoas a viajarem ou se locomoverem para se proteger.

Além disso, enquanto as medidas relacionadas à pandemia do Covid-19 resultaram em restrições em praticamente todas as esferas da vida, as mesmas também limitam a capacidade de intervenção das organizações da sociedade civil LGBTI+, que foram obrigadas a trabalhar remotamente, mesmo nos casos relatados de violência.

Outra consequência desse isolamento é o aumento da sensação de solidão entre a comunidade LGBTI+, que já tinha o acesso a uma vida social igualitária negado. Fatores como ter aliados da sociedade civil LGBTI+ fazendo apenas suas atividades on-line e a paralização sem precedentes da vida noturna agravam ainda mais esse sentimento. Ainda assim, é importante reconhecer que atividades e eventos, incluindo as transmissões diárias da Pink Life Association (Pembe Hayat Derneği) no Instagram [12], o programa de aconselhamento psicológico pro SPO do SPOD [13], festas on-line organizadas por vários coletivos como Queerwaves [14], o material jornalístico diário do Kaos GL na internet e a edição especial do Kaos GL no Covid-19 [15] são passos importantes na abordagem dessa solidão, mas esses eventos ainda não conseguem atender plenamente à necessidade de socialização e apoio ao grupo.

  1. LGBTI+ Refugiados

Uma das principais situações que chegou às manchetes nacionais antes do anúncio do primeiro caso de Covid-19 na Turquia foi a dos refugiados presos na região de fronteira entre a Turquia e a Grécia. Após a declaração unilateral da Turquia abrindo suas fronteiras, os refugiados que foram para esta região passaram muitos dias em condições adversas. Embora esses indivíduos ainda estivessem na região de fronteira logo após a pandemia, foram escoltados logo depois pela polícia para centros de quarentena em diversas províncias. Muitas violações de direitos foram relatadas ao longo do período de espera nessas regiões. Por exemplo, de acordo com um relatório recente publicado pela Anistia Internacional, pelo menos 2 indivíduos foram mortos em 2 e 4 de março de 2020 na fronteira Turquia-Grécia. [16] e muitos indivíduos LGBTI+ estavam entre essas pessoas que esperavam na região. Os entrevistados por Kaos GL declararam: “também queremos viver vidas normais” e compartilharam seus desafios. [17] Em outras palavras, os refugiados LGBTI+ estão entre os mais atingidos pelas pandemias do Covid-19.

Um refugiado LGBTI+ disse a Kaos GL: “Já era muito difícil encontrar um emprego. Com a pandemia, fomos os primeiros a serem demitidos e a perder os empregos. ”

De acordo com as informações fornecidas por Defne Işık, assistente social do Programa de Direitos para Refugiados da Kaos GL e consultado para este artigo, os refugiados LGBTI+ enfrentam desafios significativos no acesso a alimentos e condições de higiene. Muitos perderam o emprego e enfrentam limitação em suas rendas. Işık disse que existem algumas pessoas que podem pagar apenas uma refeição por dia e outras que não podem mais pagar suas contas. A maioria das organizações de auxílio, por outro lado, deu prioridade aos cidadãos e refugiados que estão enfrentando desafios no acesso ao auxílio em si. Outro problema crítico para refugiados sob proteção internacional é a recente perda no que tange a cobertura do seguro de saúde. Não obstante, mesmo em casos excepcionais como gravidez ou "doenças crônicas graves", o seguro de saúde permanece inativo. Embora todos os refugiados enfrentem problemas semelhantes, os refugiados LGBTI+ enfrentam esses problemas em uma extensão muito maior e se tornaram os primeiros banidos de um grupo que já foi expulso.

  1. Covid como pretexto para o ódio!

"Não permita que nossos filhos se tornem parte deste projeto. Não daremos suporte aos pervertidos LGBT. ”[18]

Essas declarações foram enviadas aos grupos de Whatsapp pelos diretores de uma escola. A comunidade LGBTI+ foi sistematicamente alvo quando crianças, que também estavam presas em casa, colocaram fotos de arco-íris em suas janelas numa tentativa de parar de se sentir sozinhas. Essa ação global altamente positiva, no entanto, chamou a atenção do jornal Yeni Akit e foi recebida com ódio. [19] Mais tarde, após receber instruções do Provincial Directorates of Education (Diretores de Instituições de Educação de Província, em tradução livre), os diretores das escolas enviaram mensagens de ódio dirigidas a indivíduos LGBTI+ em grupos de WhatsApp, que foram originalmente criados para apoiar a educação on-line durante o período de bloqueio. Mesmo diante da pandemia do Covid-19, que é uma condição médica e social que afeta toda a humanidade - o ódio contra a comunidade LGBTI+ está longe de diminuir. Enquanto os indivíduos chamavam para ficar em casa com as hashtags #StayHome e o governo impunha ordens de confinamento para determinadas faixas etárias, também testemunhamos o surgimento do "YallahHollandaya" ("Vá para a Holanda") [20], um campanha de insulto homofóbico nas mídias sociais. Mais tarde, isso foi seguido por #netflixadamol e #adamolnetflix ("#net Be a Man! Ou #behave netflix!) [21], ambas campanhas motivadas pelo ódio iniciadas após a sugestão de que um dos personagens da série turca original da Netflix", Love101, seria gay. Comentando esta campanha, Ebubekir Şahin, presidente do Conselho Supremo de Rádio e Televisão da Turquia (RTÜK), declarou: “Nós os avisamos e vamos ficar de olho neles. Os limites são claros. Estamos determinados a não fornecer um passe livre para a imoralidade ” e destacamos a comunidade LGBTI+ como alvo. [22]

Todas essas campanhas discriminatórias resumidas acima indicam claramente que os indivíduos LGBTI+ se tornaram mais uma vez alvos do ódio e frente a pandemia em curso, talvez até mais. Quando se trata de ódio e mobilização do ódio contra a comunidade LGBTI+, a suposição de que a pandemia de Covid-19 prevaleceu sobre todos os outros itens da agenda simplesmente perdeu sua validade. Particularmente, mensagens postadas em grupos do Whatsapp e discursos de ódio nas mídias sociais contribuíram para um maior isolamento de indivíduos LGBTI +, que já estão presos em lares potencialmente inseguros, e abre precedentes para possíveis tentativas de linchamento.

  1. Conclusão

Embora os pedidos de autoisolamento e bloqueio sejam necessários e razoáveis, eles têm o potencial de criar novos problemas para indivíduos LGBTI+. Ao adaptar medidas contra a disseminação do Covid-19, é imperativo atender às necessidades de indivíduos LGBTI + que já estavam enfrentando sérios desafios no acesso a direitos. Prevenir o avanço dos abusos aos direitos é igualmente crítico e importante. No entanto, nem o governo nem os ministérios relevantes desenvolveram um plano a esse respeito. Pressionada pela discriminação e pela pandemia do Covid-19, a comunidade LGBTI+ está lutando para sobreviver diante da marginalização, estigmatização e violência. Embora sejam importantes as redes de solidariedade e eventos on-line organizados pelos coletivos LGBTI +, a falta de medidas significativas que deveriam estar sendo tomadas pelas instituições estatais relevantes e o fato dessas mesmas instituições serem, muitas vezes, autores dessas violações, indica claramente que "nem todo mundo está realmente no mesmo barco".