A nova Lei de Migração no Brasil e os direitos humanos

A nova Lei de Migração no Brasil e os direitos humanos

A nova Lei de Migração no Brasil e os direitos humanos

Por Camila Lissa Asano e Pétalla Brandão Timo

As migrações no mundo hoje e o Brasil

A mobilidade humana é um fato histórico, indissociável da própria história da humanidade; mas que assumiu contornos especialmente complexos no mundo hoje, frente aos efeitos da globalização: mais de 244 milhões de pessoas que se encontram fora do seu país de origem, números que equivalem a 3,4% da população mundial, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU) referentes ao ano de 2015.[i] Diante deste cenário, é preciso compreender qual o papel dos Estados receptores no acolhimento e garantia de direitos das pessoas migrantes e analisar o arcabouço jurídico e institucional sobre o tema, seja nos países do Norte ou do Sul Global.

No Brasil, houve um aumento expressivo de migrantes nos últimos seis anos, entre os quais haitianos que vieram por conta do terremoto ocorrido em janeiro de 2010 que afetou o Haiti. O Brasil, contudo, possui um índice referente a migração ainda muito baixo em relação a outros países da América do Sul. Dados da Polícia Federal apontam cerca de 1,2 milhões de migrantes no Brasil, o que representa menos de 1% da população do país, que contabiliza pouco mais de 206 milhões de habitantes hoje. É também muito menor do que o número de brasileiros vivendo no exterior, que estima-se em cerca de 3 milhões de pessoas.[ii]

Sobre os refugiados no Brasil, houve um considerável aumento de 2.868% nos pedidos de refúgio nos últimos seis anos. O número absoluto, no entanto, é baixíssimo; há no país apenas 8.863 refugiados de 79 nacionalidades, sendo as cinco maiores nacionalidades representadas por sírios (2.298), angolanos (1.420), colombianos (1.100), congoleses (968) e palestinos (376); de acordo os dados do Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, referentes a abril de 2016.[iii]

O ano de 2016 no Brasil foi marcado por um conjunto de retrocessos legislativos na pauta dos direitos humanos. Excepcionalmente, entretanto, no que tange às migrações, a Câmara dos Deputados aprovou a nova Lei de Migração, que agora segue tramitação no Senado Federal; uma legislação que incorpora o paradigma dos direitos humanos para as migrações, extremamente necessário, já que ainda opera no Brasil um marco legal elaborado à época da ditadura militar (1964-1985).

A Lei vigente 6815/1980 –também conhecida como Estatuto do Estrangeiro– contraria aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é parte, bem como aos princípios democráticos e às garantias fundamentais estabelecidos na Constituição Federal de 1988. Também criminaliza a migração ao considerar o migrante como “ameaça à segurança nacional”, restringe as liberdades das pessoas migrantes, por exemplo ao vedar os direitos de associação para atividades sindicais e o direito à manifestação; além de reger-se pelo prisma da seletividade econômica do migrante para a vinda ao país e dificultar os processos de regularização.[iv]

Cabe a ressalva de que a Lei de Refúgio brasileira (Lei 9474/1997), por outro lado, é robusta e avançada, considerada um marco legal de referência para outros países da região, apesar dos desafios relativos à sua plena implementação. Um dos problemas de uma legislação inadequada em matéria de migração é justamente a “sobre-utilização” do instituto do refúgio como uma saída para a necessidade não-suprida de regularização.

Fica evidente, portanto, que o Brasil tem uma dívida histórica para estabelecer um novo marco jurídico sobre migrações adequado ao século XXI.[v] Um Brasil que se projeta como ator global nas relações internacionais não pode se abster de oferecer soluções adequadas para os desafios contemporâneos da mobilidade humana.

Um paradigma de direitos humanos para as migrações

Nos últimos quatro anos, vários debates em torno das migrações foram impulsionados no Brasil, principalmente pela chegada de migrantes haitianos, que evidenciou uma série de questões como: ausência de políticas públicas para o acolhimento, obstáculos burocráticos para se obter documentação, discriminação e dificuldades de integração. Essas e outras questões foram dialogadas no âmbito de eventos públicos[vi] que problematizaram diversos pontos sensíveis que envolvem as migrações e buscaram soluções, incluindo a constatação coletiva sobre a necessidade de uma nova Lei de Migração em sintonia com o respeito aos direitos humanos.

Obviamente, não se trata de uma tarefa fácil, já que bens públicos são finitos e as diferenças culturais são por vezes difíceis de administrar devido aos estigmas e preconceitos. Mas entendemos que a nova Lei de Migração deve ser pensada, como diz Deisy Ventura, para o mundo real: ou seja, mundo onde apesar de quaisquer obstáculos as pessoas migram.[vii] Conforme diversos exemplos ao redor do mundo demonstram, são ineficazes todas as tentativas contenção dos fluxos migratórios pela via repressiva de endurecimento do controle fronteiriço. Apertar o controle serve apenas para incentivar meios alternativos como os coiotes, que aumentam ainda mais os abusos contra os migrantes e instigam insegurança para a população em geral.

Foi neste contexto que um grupo de organizações da sociedade civil formulou cinco propostas concretas que sintetizam os princípios mínimos que uma legislação migratória adequada à perspectiva dos direitos humanos deve contemplar:

1. A garantia dos direitos humanos das pessoas migrantes, sem discriminação de nenhum tipo e independente da situação migratória.

2. O estabelecimento de procedimentos de regularização migratória rápidos, efetivos e acessíveis como uma obrigação do Estado e um direito do migrante.

3. A não criminalização das migrações, incluindo o princípio de não detenção do migrante por razões vinculadas à sua situação migratória.

4. O controle judicial e o acesso dos migrantes a recursos efetivos sobre todas as decisões do poder público que possam gerar vulneração de seus direitos.

5. A criação de uma instituição nacional autônoma, com um corpo profissional permanente e especializado e mecanismos de supervisão e controle social, responsável pela aplicação da lei.

As organizações Conectas Direitos Humanos, Missão Paz, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, Centro de Referência de Acolhida para Imigrantes de São Paulo - CRAI/Sefras, Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC) elaboraram estes 5 pontos, que foram inicialmente apresentados em 2014 ao governo brasileiro por meio de carta conjunta com cerca de 40 assinaturas da sociedade civil.[viii] Nos anos que se seguiram, essa coalizão de organizações continuou trabalhando conjuntamente, e em parceria com outras entidades –tais como o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e o Centro de Direitos Humanos e Cidadania do Imigrante (CDHIC)–, para monitorar a tramitação da Nova Lei e incidir sobre sua formulação. Por isso, em diferentes momentos ao longo de 2015 e 2016, apresentaram propostas concretas à construção do texto, dialogando com autoridades e parlamentares em audiências públicas e demais oportunidades.[ix] Também levaram a questão para fóruns internacionais, como o Conselho de Direitos Humanos da ONU,[x] e promoveram um amplo debate na sociedade por meio da publicação de artigos de opinião e notas de imprensa, bem como da campanha pública “Migrar é direito”, com petição que alcançou quase dez mil assinaturas.[xi]

Por uma nova Lei de Migração no Brasil

A nova Lei de Migração avançou no Congresso Nacional em um momento peculiar da conjuntura política brasileira e, principalmente, em um contexto geral adverso em que predominam retrocessos legislativos na pauta dos direitos humanos. Contou notadamente com um esforço suprapartidário daqueles parlamentares a autoridades públicas envolvidos no processo, mas também e sobretudo com a insistência incansável da sociedade civil que contribuiu com sugestões concretas e pressionou para aprovação de propostas robustas e garantidoras dos direitos humanos. No momento da conclusão deste artigo em 27 março de 2017, o projeto de lei, apesar de estar em estágio avançado de tramitação, ainda estava pendente de revisão final do Senado Federal e pela sanção presidencial.

O resultado do trabalho da sociedade civil foi o importante passo dado com a aprovação de um texto na Câmara dos Deputados que incorpora pontos positivos, tais como: (i) os princípios da igualdade perante a lei e não-discriminação (garantindo pleno usufruto dos direitos econômicos, sociais e culturais, bem como das liberdades civis, inclusive de associação sindical), (ii) procedimentos de regularização migratória desburocratizados e mais acessíveis, (iii) a não-criminalização da migração e com previsão, por exemplo, das garantias de contraditório, ampla defesa e recurso suspensivo em procedimento de deportação, (iv) a acolhida humanitária por meio da consolidação da política de vistos humanitários – atualmente regulada por frágeis resoluções normativas editadas pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg)–; além da concessão de (vi) Anistia para que migrantes que se encontrem em situação irregular no Brasil possam se regularizar.[xii]

Um ponto importante da reforma da política migratória é a criação de uma autoridade nacional migratória civil e que não seja um órgão de segurança. Urge, no Brasil, que a Polícia Federal deixe de ser a principal autoridade encarregada das migrações, posto que migrar é um direito humano, e não um caso de polícia. No entanto, o projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional não poderá dar esse passo por uma limitação formal de vício de iniciativa. Por ser de iniciativa do Senado, o texto da lei não pode criar um órgão dessa natureza. Esta é uma competência exclusiva do Executivo. Assim, tão logo seja aprovada a Nova Lei de Migração, o Executivo Federal deverá apresentar, via Câmara dos Deputados, novo projeto de lei de sua autoria criando uma autoridade nacional migratória

Após aprovada, a Nova Lei de Migração ainda passará por fase de regulamentação e, mais importante, de implementação. Há vários aspectos em que a regulamentação será crucial para não desvirtuar o espírito de direitos humanos que a nova lei busca trazer. Por exemplo, a nova normativa deve servir para facilitar os procedimentos conducentes à regularização e, assim, proteger os migrantes em situação irregular de ser criminalizados por sua mera condição migratória. Ou seja, migrantes, independentemente de seu status migratório, não podem ser sumariamente deportados ou retidos em espaços de privação de liberdade pura e simplesmente por falta de documentação. Após a promulgação e entrada em vigor da nova Lei, um desafio será, sem dúvidas, sua devida implementação para fazer face, por exemplo, a problemática das deportações arbitrárias e dos controles em zonas de fronteira.

Para ilustrar, podemos citar casos recentes ocorridos no Estado de Roraima –localizado na fronteira do Brasil com Venezuela e Guiana–, onde venezuelanos foram deportados pela polícia ao longo do ano de 2016, mesmo aqueles que solicitaram o refúgio.[xiii] Uma ação judicial impediu que 450 venezuelanos fossem coletivamente deportados no mês de dezembro de 2016. Há, ademais, casos de repatriação em que migrantes são colocados em um limbo jurídico e mantidos em áreas de fiscalização, a exemplo do chamado “espaço Conector” do Aeroporto Internacional de Guarulhos, São Paulo, arbitrariamente e por tempo indeterminado, sem a assistência necessária e a garantia do devido processo legal, até conseguirem verbalizar um pedido de refúgio ou serem devolvidos para o país de origem. De janeiro de 2015 até abril de 2016, 1814 migrantes foram mantidos no espaço Conector, dos quais 494 eram solicitantes de refúgio que procuravam proteção no país e foram impedidos de ingressar diretamente em solo brasileiro.[xiv] Importante que neste ponto, pessoas em situação de refúgio não podem ser devolvidas para o país de origem por conta da sua vida estar em risco, de acordo com o princípio fundamental de non-refoulement (não devolução) do Direito Internacional Público e conforme consta na legislação brasileira que trata do refúgio (Lei 9474/1997).

Somos todos migrantes

A formação populacional no Brasil é historicamente composta pelas migrações de diversos países como a japonesa, libanesa, italiana e alemã. Brasileiros e brasileiras, em sua vasta maioria, têm pais, avós ou bisavós migrantes; e muitos de nós, também, migramos. O tom de país acolhedor tem predominado, até agora, nos discursos políticos e na convivência na sociedade. É fato, contudo, que aumentam as denúncias e demonstrações de discriminação e xenofobia no país. É preciso fazer face a tal tipo de postura conservadora e retrógrada demonstrando a rica e diversa contribuição das pessoas migrantes em todos os aspectos, cultural, econômico, científico, etc., não somente ao longo da história brasileira, mas também hoje em dia. Há de se exigir coerência de um Brasil que sustenta internacionalmente um discurso progressista nas discussões globais sobre migrações para que faça parte realmente das soluções globais compartilhadas para os desafios contemporâneos.[xv]      

 

[i] United Nations (2015) International Migrants Stock Dataset in 2015. [online]  Disponível em:. http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/publications… [consultado em: 6/2/2017].

[ii] Ministério das Relações Exteriores – MRE (2016): Estimativas populacionais das comunidades brasileiras no Mundo – 2015. Disponível em: http://www.brasileirosnomundo.itamaraty.gov.br/a-comunidade/estimativas-populacionais-das-comunidades [consultado em: 9/2/2017].

[iii] Ministério da Justiça (2016) Sistema de refúgio brasileiro: desafios e perspectivas. [online] Disponível em: http://www.acnur.org/portugues/recursos/estatisticas/dados-sobre-refugi… [consultado em: 6/2/2017].

[iv] Ventura, Deisy (2014): “Infográficos: Migrações e Direitos Humanos”,  Revista Internacional de Direitos Humanos – SUR, 23, São Paulo, Brasil, p. 131 – 139. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185553-uma-lei-de-migracoes-para-o-brasil.shtml  [consultado em: 9/2/2017].

[v] Reis, R. R.; Ventura, D. (2014): Criação de lei de migrações é dívida histórica do Brasil. (Carta Capital). [online] 21 de agosto de 2014. São Paulo, Brasil. Disponível em:  http://www.cartacapital.com.br/sociedade/divida-historica-uma-lei-de-migracoes-para-o-brasil-9419.html [consultado em: 6/2/2017].

[vi] 1º Conferência Municipal de Políticas para Imigrantes em São Paulo no ano de 2013, na Conferência sobre Migrações e Refúgio (COMIGRAR) organizada pelo Ministério da Justiça realizada no ano de 2014, no Fórum Social Mundial das Migrações (FSMM) realizado no ano de 2016 e o I Diálogo de Participação Social promovido pelo Conselho Nacional de Imigração (CNIg) em novembro de 2016.

[vii] De Carvalho Ramos, A. & Ventura, Deisy & Dallari, Pedro & Reis, Rossana. (2014) Uma Lei de Migrações para o Brasil. Folha de São Paulo, Artigo de opinião. Disponível em: www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/185553-uma-lei-de-migracoes-para-o-brasil.shtml [consultado em: 9/2/2017].

[viii] Conectas Direitos Humanos, Missão Paz, Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, Centro de Referência de Acolhida para Imigrantes de São Paulo - CRAI/Sefras, Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS), Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC)  e outros (2014) CARTA ABERTA DE APOIO A MUDANÇA DA LEI ATUAL SOBRE MIGRAÇÕES [online] Disponível em: http://www.conectas.org/arquivos/editor/files/Atualizada_CARTA%20ABERTA… [consultado em: 9/2/2017].

[ix] Câmara Notícias (outubro 2015) Lei de Migração: debatedores pedem que controle migratório não seja feito pela PF [online]. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITO-E-JUSTICA/498… [consultado em 27/3/2017].

[x] Conectas (junho 2015) Pelo direito de migrar: Foco na segurança dada a centralidade da PF no tema das migrações é denunciado na ONU [online]. Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/40042-pelo-di… [consultado em 27/3/2017].

[xi] Campanha #migrarédireito, petição pelo fim do Estatuto do Estrangeiro e aprovação da Nova Lei de Migração. Disponível em: https://www.change.org/p/assine-para-dar-um-basta-na-discriminação [consultado em 27/3/2017].

[xii] No Brasil, a Anistia foi concedida nos anos de 1988, 1998 e a última em 2009 por via da Lei Federal 11.961/2009. Embora a Anistia de 2009 tenha sido importante, uma parcela significativa dos migrantes não conseguiram comprovar todos os documentos para se obter a Anistia além de não possuírem dinheiro para pagar taxas de regularização.  Malomalo, Bas'Ilele; Vargem, Alex. André. (2015): “A imigração africana contemporânea para o Brasil: entre a violência e o desrespeito aos direitos humanos”. em: Badi, Mbuyi Kabunda; Fonseca, Dagoberto; Malomalo, Bas'Ilele (eds.) Diáspora africana e migração na era da globalização: experiência de refúgio, estudo, trabalho, Curitiba, Brasil, p. 107-123.

[xiii] Comissão Interamericana de Direitos Humanos (2017) Nota de imprensa: CIDH expressa preocupação com situação de pessoas migrantes venezuelanas e conclama os Estados da região a implementar medidas para sua protecção de 25 de Janeiro de 2017 [online]. Disponível em: http://www.oas.org/pt/cidh/prensa/notas/2017/006.asp [consultado em 9/2/2017].

[xiv] Informações contidas em resposta enviada à Conectas Direitos Humanos após a entidade entrar com pedido via Lei de Acesso à Informação Pública. Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/justica/lei-de-acesso-a-informacao/99-… [consultado em: 9/2/2017].

[xv] Conectas (setembro 2016) Temer na ONU: Brasil infla número sobre refugiados [online] Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/46886-temer-n… [consultado em: 9/2/2017].