Para ativistas do direito à moradia e estudiosos, os megaeventos são o combustível para mudanças socioestruturais na cidade do Rio de Janeiro que terão impacto no longo prazo. Projetos antigos, engavetados por questões de recursos, de legislações ambientais ou por pressão de mobilizações populares estão sendo implementados e uma série de “entraves” estão sendo retirados. Flexibilização da Lei de Licitações, isenção de impostos até 2020(!) para o setor hoteleiro, alterações nos Planos Diretores e ampliação do limite de endividamento dos municípios para investimento na infraestrutura destinada aos eventos[1] são as principais mudanças. Além disso, não estão sendo seguidos os pactos e tratados internacionais assinados pelo Brasil no tocante ao direito à moradia, e as remoções forçadas demonstram isso. O que na maioria dos empreendimentos se constata é a canalização de recursos públicos para interesses privados, cujo legado positivo é ainda incerto.
A experiência com os Jogos Panamericanos de 2007 demonstrou que o legado para a cidade do Rio de Janeiro, de forma orgânica e consistente foi quase nada. Apesar de, já naquela ocasião, as autoridades afirmarem, assim como agora, os grandes benefícios para todos os cidadãos. O que certamente sobrará como legado dos megaeventos é o aumento exponencial da dívida pública e escassos recursos para outros serviços públicos. Conta essa que será paga ao longo de anos.
Carlos Vainer, professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional/Laboratório Estado Trabalho Território e Natureza (Ippur/Ettern), aponta ainda uma aliança que historicamente se mostra cada vez mais perversa, e que gerou grandes escândalos envolvendo corrupção e desvio de recursos públicos: “as empresas envolvidas nas obras são as mesmas que estão nas listas entre as maiores contribuintes das candidaturas, as que fazem doações para todas as campanhas políticas, como a Odebrecht, a Camargo Corrêa, a Votorantim, o grande agronegócio”.
Tanto Vainer quanto Raquel Rolnik, relatora da ONU pelo Direito à Moradia, apontam o que está em jogo: a afirmação de um novo modelo de cidade, a cidade-empresa. A lógica da cidade-empresa é estar voltada para exportação, para o mundo exterior, e não para seus cidadãos. Foram banidos os conceitos de cidade planejada, com uma dimensão pública, com acesso universal. Esse novo modelo vincula-se totalmente à necessidade de transformações na cidade para os negócios, para as trocas do mundo empresarial. Isso também se reflete na escolha da autoridade olímpica tanto municipal quanto federal, responsáveis pela coordenação executiva-administrativa dos projetos para os Jogos: a executiva Maria Silvia Bastos Marques, presidente da Icatu Seguros e Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco Central.
Tudo é milhão, bilhão?
A estimativa preliminar para investimento na Rio 2016 foi de R$ 13 bilhões, incluindo-se aí investimentos em transporte, infraestrutura aeroportuária, hotelaria, sistemas de vigilância e segurança. Todas as autoridades são também unânimes em afirmar que o custo será muito maior que isso. Quanto mais? Ninguém sabe ao certo. No estádio da Fonte Nova, em Salvador, o custo inicial da obra era de R$ 591,7 milhões saltando para R$ 1,605 bilhão, aumento de 100%. Segundo o próprio ministro do Tribunal de Contas da União, Valmir Campelo, esse fato atesta a “precariedade da estimativa do custo global da obra[2]”.
Das 37 principais obras de transporte urbano para a Copa do Mundo de 2014, apenas cinco estão em construção[3]. Em Brasília (veículos leves sobre trilhos - VLTs) e em Manaus (monotrilho) há contestação na justiça em relação aos projetos. Cuiabá, Curitiba, Salvador e Rio de Janeiro construirão os BRTs (bus rapid transit) para ligação com o aeroporto. No caminho das obras, desapropriações.
No novo estádio de Brasília, com custo R$ 696 milhões, não estavam orçados a cobertura, o telão, os cabos de internet ou de transmissão de TV e até a grama faltou! Nenhum desses estavam incluídos na licitação para a construção do estádio. O diretor da Agência para a Copa de Brasília, Sérgio Graça afirma: “teremos tecnologias melhores para esses itens no futuro”. Em Manaus, a média de público é de duas mil pessoas por jogo, o que de forma simples indica que o investimento na construção do estádio para apenas quatro jogos da Copa do Mundo tem como previsão a criação de um elefante branco. No Rio de Janeiro, as obras estão voltadas para valorização de regiões da cidade onde vive a classe média, em especial a Barra da Tijuca, ou mesmo remodelação de outras, como a região portuária para recebimento dos eventos, com remoções forçadas de moradores desses espaços. Isso reforça a concentração de renda, numa rede de metrópoles marcadas por elevados níveis de desigualdade social. Os recursos são financiados pela Caixa Econômica, Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Ministérios e empresas públicas (Banco do Brasil, Correios, Petrobras etc) que também patrocinam atletas.
A sociedade civil se organiza
Outro ponto importante é a falta de transparência, com nenhuma participação da sociedade civil sobre as decisões que estão mudando a vida de milhares de pessoas. A iniciativa privada, os governos e as entidades ligadas à Copa e aos Jogos Olímpicos têm decidido sobre a alocação de recursos e mudanças urbanísticas.
Os movimentos e ONGs começaram a se organizar, principalmente tendo como bandeira a luta contra as remoções. No Rio de Janeiro, as previsões dão conta de que 130 favelas serão removidas até 2016, para construção de três grandes vias expressas: a Transcarioca, que liga a Barra da Tijuca ao Galeão, Transoeste, que liga a Barra da Tijuca à Santa Cruz, Campo Grande, Guaratiba e Recreio dos Bandeirantes e a Transolímpica, que vai da Barra a Deodoro. Aos moradores restam duas opções: aceitar indenizações com preços muito abaixo do mercado ou uma unidade no programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, em regiões distantes dos seus locais de origem e com denúncias de serem controladas por milícias.
A resistência a esses processos está vindo dos “suspeitos de sempre”: lideranças comunitárias, ONGs e movimentos sociais que historicamente lutam contra a violência policial, a marginalização e a precarização dos serviços básicos de saúde e educação nessas localidades. Estão sendo criados comitês populares em várias cidades do Brasil, também atingidas pelas remoções para construção dos estádios para a Copa do Mundo e das grandes vias de deslocamento.
Até agora os processos envolvendo a preparação da cidade para os megaeventos têm seguido um modelo de apropriação dos espaços e dos recursos públicos, cujos passos são: 1. conquistar a simpatia dos cidadãos para os Jogos e grandes eventos, fortalecendo com isso a ideia do Brasil emergente e superpotência; 2. reforçar as alianças dos grupos empresariais com o Executivo e suas instâncias; 3. incidir fortemente na mídia, com mitos e mensagens positivas sobre os eventos e transformações da cidade; 4. instituir pacotes de mudanças legislativas; 5. cooptar políticos e operadores do Direito; 6. realizar uma forte pressão para isolamento de vozes de dissenso.
Esses processos tendem a se adensar, pois nos próximos cinco anos teremos no Brasil a realização da Conferência Rio+20 (2012), do Fórum Mundial da Criatividade (2012), da Copa das Confederações (2013), da Copa do Mundo (2014), da Copa América (2015) e dos Jogos Olímpicos (2016).
[2] Projetos da Copa de 2014 têm muitos problemas, alerta o TCU. Valor Econômico, 11, 12, 13.02.2011.
[3] Obras de transporte urbano para a Copa andam, mas devagar. Valor Econômico, 23.03.2011.
Marilene de Paula é coordenadora de programas e projetos da Fundação Heinrich Böll.
Veja abaixo sites e blogs recomendados:
» Ministério Público Federal: GT Impactos Sociais dos Megaeventos e Moradia Adequada
» Corecon – Fórum Popular do Orçamento
» Portal da Transparência - Copa 2014, a transparência em 1º lugar
» Comitê Popular da Copa/Porto Alegre
» Fórum Nacional de Reforma Urbana
» Comitê Popular do Rio de Janeiro