O que hackers e ambientalistas têm em comum?

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"A internet é muito útil para nós, mas também é uma rede de controle", alertou o professor da UFABC Sergio Amadeu

 

Foi-se o tempo em que a internet dividia o mundo entre real e virtual. Cada vez mais, as questões da rede são as mesmas das ruas. No 13º Fórum Internacional de Software Livre, esta convergência foi tema do painel “O que está aproximando hackers e ambientalistas? Bem-vindo à Biopolítica Reloaded”, que abordou o que há de comum entre o movimento pelo software livre e os ativistas do meio ambiente com o objetivo de incentivar a cooperação entre os dois grupos. A mesa foi realizada em Porto Alegre (RS), no último sábado (28).

A propriedade intelectual e o domínio do conhecimento por grandes corporações na ciência, cultura, tecnologia e agricultura foram o fio condutor das análises do sociólogo e ativista do software livre, Sérgio Amadeu, da advogada associada à ONG Terra de Direitos, Larissa Packer, e da coordenadora de Sustentabilidade da Fundação Heinrich Böll, Camila Moreno.

No centro da questão está o controle sobre o livre conhecimento. Sérgio Amadeu traçou um paralelo entre os mundos da genética e do software, observando que o fechamento do código característico do software proprietário está acontecendo também na genética e na biotecnologia, áreas que têm avançado no conhecimento do código genético dos seres vivos. O resultado é o surgimento de patentes que impedem o avanço da ciência e sua permanência como bem comum.

Sementes patenteadas

Larissa Packer destacou que um dos critérios para a concessão de patentes sobre formas de vida é a aplicação industrial, o que transforma a ciência e as formas de conhecimento em meios de produção. No caso da agricultura, a patente seria o direito de excluir todos os outros do acesso às sementes:

— O milho é uma inovação que vem de um esforço, de uma corrente de conhecimento coletiva dos agricultores do mundo. E por que é possível a Monsanto patentear o milho? Hoje a gente tem 21 espécies de milho patenteadas em nome de seis indústrias de biotecnologia no mundo. Só no ano de 2011, o Brasil pagou US$1 milhão em patentes para a Monsanto. Oitenta por cento da nossa produção de soja é patenteada pela empresa.

A advogada explicou que as empresas utilizam duas formas de controle para garantir a propriedade das sementes. Uma delas é o controle biológico por meio da tecnologia terminator. Ela permite que a semente seja programada geneticamente para que nasça estéril na safra seguinte. Assim, só pode ser usada como ração para gado ou alimento, o que força os agricultores a comprarem novas sementes e pagarem a patente para a Monsanto. A outra forma de controle da semente é legal. As leis de propriedade intelectual garantem o uso exclusivo pela empresa por no máximo 20 anos. Por isso, os agricultores precisam pagar royalties para ter o direito de uso.

Larissa Packer ainda destacou que o código fonte fechado também impede que os consumidores saibam exatamente quais os possíveis efeitos das alterações genéticas feitas nas sementes pelas empresas de biotecnologia. No Brasil, o órgão que libera a comercialização de transgênicos é a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). Entretanto, como as corporações pedem sigilo sobre a construção genética alterada, a avaliação de risco dos organismos geneticamente modificados torna-se inviável. Não há informações sobre possíveis danos ao meio ambiente ou relação com casos de câncer e alergias.

Mercado digital de serviços ambientais

Usando como exemplo o mercado de carbono, onde empresas e governos podem negociar créditos de carbono para compensar o impacto ambiental de suas atividades, Camila Moreno analisou que hoje o direito à propriedade do uso da terra está se estendendo aos serviços prestados pelo ecossistema, como a purificação do ar.

Nesse sentido, o direito de propriedade avança sobre o que antes era comum, cobrando royalties e restringindo o acesso. A pesquisadora apontou o novo Código Florestal e o projeto de lei sobre Pagamentos por Serviços Ambientais, a ser votado pelo Congresso Nacional, como legislações que revelam esta nova realidade. Camila Moreno ressaltou que no mercado de sequestro de carbono, considerado um tipo de “serviço” prestado pelas árvores, as negociações se dão no meio digital e de forma virtual:

— Alguém já viu um crédito de carbono? Alguém já viu uma fábrica produzindo crédito de carbono? Ele se dá todo na internet em plataformas de negociação eletrônicas.

Conexão entre hackers e ambientalistas

Sérgio Amadeu lembrou que a politização do movimento do software livre nasceu da contraposição à propriedade intelectual. Por isso, para o professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), os defensores do compartilhamento da cultura, ciência e tecnologia devem atuar em conjunto com as comunidades tradicionais. Nessa aliança, a tática do hackeamento é a estratégia para enfrentar o patenteamento, seja genético ou não. Ele explica o que é hackear:

— É hipertrofiar, é inverter os termos, é exagerar aquilo que era colocado de uma forma, é alargar, é ir para a fronteira, é inverter. É o exemplo do copyright. (...) Tudo o que ele proíbe, o princípio do copyleft permite na nossa licença de software. Então, a gente usa a tacanha lei do copyright e inverte os termos na nossa licença, ou seja, a gente “hackeia” e usa a lei para garantir o compartilhamento.

Ao final do painel, a conclusão foi de que a colaboração entre hackers e ambientalistas é possível porque o acesso ao livre conhecimento diz respeito à vida de todos de forma bastante concreta e prática. Larissa Packer citou a crise alimentar mundial para reforçar que a cooperação entre os grupos não é uma questão apenas política, mas de sobrevivência frente ao domínio de grandes corporações sobre os seres vivos:

— É um absurdo falar que o conhecimento é uma “coisa” passível de ser comprada e vendida. A FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação] declarou que há 1,02 bilhão de famintos no mundo. Só que a gente produz três vezes mais alimentos que o necessário no planeta. A crise não é alimentar, mas sim de distribuição dos alimentos por causa do controle privado sobre as patentes.