O gênero da ‘nova’ segurança pública no Rio de Janeiro

Quando se abre hoje em dia um jornal e se lê um artigo sobre segurança pública no Rio de Janeiro, são constantes termos como ‘pacificação’, ‘aproximação’ ou ‘cidadania’. Este tom não combina muito bem com a imagem militar da polícia que existe na sociedade brasileira. Obviamente, está acontecendo uma mudança na política da segurança pública que ficou visível especialmente com a introdução das Unidades da Polícia Pacificadora (UPP) nas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Neste contexto, as mulheres começam a desempenhar um papel cada vez mais central. Elas aparecem na segurança pública em duas versões: as policiais femininas e as ‘Mulheres da Paz’. Estes dois papéis revelam uma perspectiva conservadora de gênero na ‘nova’ segurança pública.

“Para conquistar Rocinha após ocupação e assaltos, PM usa charme feminino”, “Quase todas usam batom, blush e até sombra, sempre de modo discreto” ou “Mulheres ocupam espaço nas UPPs e ainda são mães dedicadas.” Textos como estes, citados de artigos de jornais do Rio de Janeiro, mostram que uma policial feminina não é só uma policial, mas sempre também uma mulher. Inicializada no Rio de Janeiro em 1981 com a Lei No. 476, a PM(Fem) foi prevista para  missões no trânsito, “operações policiais militares no trato com mulheres e menores em geral” e “nos demais serviços de policiamento cujos riscos ou encargos sejam, [...], exclusivamente compatíveis com suas condições de mulheres.” As pesquisadoras Barbara Soares e Leonarda Musumeci (2005) concluem que a decisão da inclusão das mulheres na PM deve  se originar em motivações internas. Um objetivo deveria ser mudar a imagem pública da PM e introduzir os Direitos Humanos nos currículos policiais devido a uma crise dos valores característicos da polícia, como força física e identificação tradicional masculina. Para buscar um equilíbrio foram procurados outros valores, como inteligência, capacidade de resolução, inovação e trabalho em equipe – características normalmente associadas às mulheres. Os lugares onde as policiais femininas devem atuar são de alta visibilidade, como aeroportos, rodoviárias, locais turísticos, ou problemáticos em relação à corrupção, como o trânsito. Além disso, as ‘PMFems’ trabalham nas áreas reafirmando estereótipos de gênero, a “vocação assistencialista das mulheres; associação entre “sexo frágil” e atendimento aos fragilizados” (Soares e Musumeci, 2005:19).

Ao mesmo tempo, as mulheres buscavam trabalho estável para a emancipação própria e encontraram ‘estabilidade’ no serviço público da polícia. Contudo, não houve mais reformas profundas na PM. Como analisa a pesquisadora Marcia Esteves de Calazans (2004), no caso da inclusão das mulheres na PM, os postos na hierarquia são definidos pelo gênero e o padrão exclusão-dominação continua. A organização nunca deu às mulheres a possibilidade de atuar num coletivo dentro da corporação.  Existe o conflito entre a nova concepção de segurança pública e a resistência de “perder seus vínculos profundos com o militarismo” (p.149). A decisão de incluir mulheres no corpo policial foi mais simbólica e de forma a mudar a imagem pública da polícia, mostrando assim uma polícia mais cumpridora da lei e menos corrupta e violenta. A imagem social da polícia foi retocada, sem alterar a cultura institucional hierárquica ou as práticas tradicionais.

O concurso para o ano de 2013 exclui mulheres com o argumento do grande rigor físico necessário para o cargo. As policiais femininas protestaram que o gênero não deveria ser decisivo, mas a aptidão e a dedicação. No passado a maioria das candidatas se qualificou com alto rendimento intelectual e aptidão para cargos de chefia e comando. O comando respondeu que a exclusão do concurso deveria ser momentânea e a inclusão irreversível. O argumento de que precisa-se das mulheres devido às suas características femininas e para novos desafios não tem mais validade, quando elas são excluídas do concurso por causa do próprio gênero. Assim, ficam apenas dúvidas por que foi instalada a polícia militar feminina.

Entretanto, o papel das mulheres ficou mais claro com a introdução das Unidades da Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de Janeiro como parte de uma nova política de segurança pública. Atualmente, as 22 UPPs do Rio contam com o trabalho de 586 policiais mulheres, que fazem 14% do policiamento total. As PMFems das UPPs se vêem em uma função social por ser mais próximas à comunidade, especialmente às crianças e mulheres. “Tem o lado positivo de ser PM feminino: a mulher inspira mais confiança, tem a aparência mais sensível. Mas respeitam a gente”, disse uma policial. “Já é natural ser mais simpática, principalmente com as crianças, que se aproximam mais da gente do que dos homens", explica a subcomandante da UPP Mangueira. Elas recebem mais denúncias de violência doméstica e reforçam assim a Lei Maria da Penha – lei contra violência doméstica e familiar. Para um coronel, quando há contato com crianças, a mulher é mais afetiva e isso é facilmente percebido pelos moradores da comunidade. “É da natureza feminina proteger o infante. As crianças sentem naquele olhar, quase sempre maternal, um olhar de amparo e de carinho. Se for um olhar masculino, ainda que venha acompanhado de um sorriso e de um gestual agradável, há sempre uma desconfiança”, explica ele. “É um trabalho mais social e a mulher, por ter essa característica de mãe, tem uma visão e uma postura diferenciada da do homem, que é mais voltada para o combate”, revela uma comandante da UPP. Apesar disso, as mulheres da polícia também controlam áreas que os policiais masculinos não podem entrar, por exemplo, o controle das traficantes femininas e jovens. Deste jeito, elas são instrumentalizadas no seu papel feminino dentro da ‘nova’ segurança pública. Contudo, ainda há um preconceito bem forte contra a minoria das policiais femininas dentro da polícia. Por exemplo, ao contrário dos homens, as mulheres são chamadas de “fem” e não pela patente ou pelo nome, contou uma policial.

Essa instrumentalização do gênero na segurança pública também pode ser observada no programa ‘Mulheres da Paz’. O objetivo deste programa é a prevenção da entrada de jovens na criminalidade usando a ‘cidadania ativa’. Mulheres são clientes preferenciais por três canais: primeiro, no combate inter-geracional da pobreza, segundo, na transferência de renda, e terceiro como operadoras a nível local para a população vulnerável, que são os jovens e as crianças. O papel das mulheres neste programa é a identificação, o acompanhamento, o diálogo e a orientação de jovens vulneráveis. Para participar do programa, as mulheres e os jovens recebem uma bolsa mensal. No início, o programa tinha recebido o título ‘Mães da Paz’ em relação aos atributos da mãe na política pública como o cuidado e o espírito pacifista. Porém, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres se posicionou contra essa perspectiva da mulher e promoveu o ‘empoderamento’ das mulheres que foi manifestado na Lei final em 2008.

Este empoderamento tem dois aspectos que trabalham às vezes em conflito, às vezes em sintonia: o empoderamento individual das mulheres é fortalecido pela possibilidade de participar de cursos sobre violência contra a mulher e sobre a lei Maria da Penha, gênero e identidade feminina, direitos sexuais e reprodutivos. Contudo, as mulheres participantes reclamam da falta de um programa para preparação para o mercado do trabalho e para abrir novas possibilidades ocupacionais. Se sentem utilizadas como portas para a comunidade, mas sem que se abram portas para elas mesmas. Elas não querem viver de bolsa do governo, mas pedem que governo crie políticas de inserção no mercado de trabalho, de educação formal e de capacitação profissional. Por outro lado, há um empoderamento via comunidade, voltado para o bem-estar de outros. Neste caso, as mulheres atuam como cuidadoras. Em um estudo de Bila Sorj e Carla Gomes (2011), as mulheres entrevistadas mostraram apreciar o fato de ganhar respeito, consideração, e liderança junto aos vizinhos e aos poderes locais através da ação de cuidar dos jovens.

Outro conflito que está se desenvolvendo dentro do programa é que a identificação quanto ao risco social dos jovens é feita pelas próprias Mulheres da Paz que transferem suas perspectivas morais à seleção, incluindo o gênero. Por exemplo, as meninas são percebidas como de risco devido a uma vida sexual ativa fora de uma relação estável. Há dois motivos para isso: o feminismo e os direitos humanos pretendem a autonomia sobre o corpo e a ausência de objetificação sexual. A outra é que a religião determina os papéis do gênero. Isso revela que o novo paradigma do ‘investimento social’ é objeto de disputas entre diferentes interesses e conceituações.

Estes dois exemplos do Rio de Janeiro mostram a incorporação do gênero na nova estratégia da segurança pública. Infelizmente, em ambos os casos, o papel da mulher continua com a perspectiva conservadora que coloca em foco as características ‘típicas’. Não visa à igualdade do gênero dentro de uma área bem dominada de percepções tradicionais como a polícia militar, mas fortalece pelo contrário a desigualdade entre os gêneros. Este processo não só está dentro da própria organização, mas também é apoiado pela sociedade, como mostra o exemplo das Mulheres da Paz com participantes de grupos. Há necessidade de uma revisão e introdução de uma estratégia de segurança pública que realmente tenha como objetivo incorporar os direitos humanos, incluindo a igualdade do gênero.

 

Barbara Musumeci Soares e Leonarda Musumeci (2005): Mulheres Policiais – presença feminina na Polícia Militar do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. Segurança e cidadania; 1.

Marcia Esteves de Calazans (2004), Mulheres no Policiamento ostensivo e a perspectiva de uma segurança cidadã, São Paulo em Perspectiva, 18(1): 142-150.

Bila Sorj e Carla Gomes (2011), O Gênero da “Nova Cidadania”: O Programa Mulheres da Paz, Sociologia & Antropologia, V.01.02: 147-164.

 

Fonte da imagem: http://www.flickr.com/photos/seasdh/5974450863/sizes/q/in/photostream/