Com mais de 35 anos de atuação junto a ONGs e movimentos sociais, José Moroni conhece como poucos os meandros da política brasileira. Membro do colegiado de gestão do INESC (Instituto de Estudos Socioeconômicos), organização parceira da Fundação H. Böll, ele topou uma conversa conosco sobre política e os desafios das ongs brasileiras frente um cenário social de profundo retrocesso democrático.
Começamos a conversa analisando a eleição do deputado federal Arthur Lira para a Presidência da Câmara dos Deputados. Cargo chave no Congresso Nacional, Arthur tem sob seu controle a definição se coloca ou não em votação algum dos 54 pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro. Moroni também nos fala sobre como construir um fazer político que possa abarcar os novos grupos que surgem a cada dia na sociedade civil e combinar estratégias para defesa da democracia e dos direitos humanos. Vamos a conversa!!
Fundação Böll: Como você avalia a vitória do deputado federal Arthur Lira para a Presidência da Câmara dos Deputados?
Moroni: Das duas principais candidaturas, do deputado Baleia Rossi e do deputado Arthur Lira, a dicotomia de que uma era anti-Bolsonaro e a outra pró-Bolsonaro, era falsa. Foi uma fala muito mais para justificar e atrair os partidos de esquerda para um apoio ao Baleia [Rossi] já no primeiro turno, do que qualquer outra coisa. Até porque se fosse isso, os votos de uma candidatura anti-Bolsonaro teriam ido para Luiza Erundina [PSOL]. Mas se minha avaliação está correta, não necessariamente a vitória do Arthur Lira é uma expressão da vitória do Bolsonaro.
O que estruturou a disputa na Câmara são vários fatores. Mas um ator fundamental foi o Centrão, que permanece em todos os governos. O Centrão tem uma estratégia de ocupação de cargos do Executivo em função do acesso à recursos e capilaridade nos estados e políticas públicas que cheguem nos municípios para eles manterem sua votação nas eleições. Então o Bolsonaro vai ter que entregar e muito do seu governo para o Centrão. Ele terá de trazê-los para dentro do governo, entregando ministérios, o que a base radicalizada do bolsonarismo não aceita.
Uma das questões que pesou para vários parlamentares na hora do voto era que o Arthur Lira cumpria acordo, em outras palavras, o grupo do Baleia Rossi não fazia isso. E na política, e especialmente na política institucional no âmbito do Congresso, isso é fundamental.
Principalmente nesse período de pandemia o grupo do [deputado] Rodrigo Maia aproveitou a pandemia como desculpa e concentrou praticamente todo o poder na própria Presidência. Anteriormente, havia toda uma dinâmica das pautas serem discutidas no colégio de líderes, que são as comissões, que não foram instaladas nesse período, pois o Congresso estava funcionando de maneira virtual, e as comissões também estavam funcionando de maneira virtual. Com a desculpa da pandemia, o [deputado] Maia paralisou a Câmara. E a Câmara acabou votando coisas que ele achava importante, que ele definia. Então isso ficou visível no discurso inicial do [Arthur] Lira, falando sobre essas questões. E teve pesadamente, em relação ao Centrão, mas não só, a liberação das emendas parlamentares de mais de três bilhões de reais, segundo os levantamentos. Só que muitos desses recursos estão no empenho, ainda não foram pagos. Estão naquela fatura que o Bolsonaro vai ter de pagar. Mas eu não sei como se dará isso em sua concepção autoritária de poder, pois ele ataca não só o STF, mas também o próprio parlamento. Como irá reagir quando tiver de entregar esses cargos e se sentir pressionado pelo Centrão? O embate que vai ter entre a base do centrão e o governo, caso o governo não entregue o que o Centrão acha que tem de entregar é bem diferente do embate que o Maia teve com o governo. O Centrão é assim, quer cada vez mais. Serão dois anos de crises entre parlamento e governo. As votações irão sinalizar se eles estão contentes ou não com o governo.
Fundação Böll: Essa diferença fundamental de embate entre Rodrigo Maia e o governo Bolsonaro e agora entre governo e Centrão é por que o Rodrigo Maia discordava dos caminhos e o Centrão é mais fisiológico, e quer sempre mais ? É por aí?...
Moroni: O [Rodrigo] Maia em tese não tinha discordância em relação a pauta econômica. A crítica do [Rodrigo] Maia era que o governo não encaminhava a pauta econômica, o [ministro Paulo] Guedes combinava uma coisa e fazia outra, o governo não articulava a sua base. Tinha muito a ver com a forma de agir do governo, muito autoritária, não respeitosa, de ataque. E aí envolvia os próprios filhos do presidente. O [Rodrigo] Maia foi extremamente atacado pela base bolsonorista e pelos filhos do presidente e pelo próprio presidente algumas vezes. Era muito mais nesse sentido, do que propriamente uma disputa de ocupação de espaço no governo. O grupo do [Rodrigo] Maia dentro do DEM nunca quis entrar no governo. Já a estratégia do grupo do ACM Neto, presidente do DEM, quer ir para o governo. Só que o DEM tem ministros, como o Ministério da Cidadania. O racha do DEM tem a ver com as brigas internas e as eleições de 2022.
Fundação H. Böll: Moroni, com o Arthur Lira se fortalece a pauta dos costumes, como é chamada, para dar alguma coisa a essa base bolsonarista, mais conservadora?
Embora no discurso inicial ele sinalize que não, dentro dessa base que é o Centrão está todo o fundamentalismo religioso. Todos que querem derrubar por exemplo qualquer proteção ambiental, dos povos indígenas, dos quilombolas. Foi essa base que ganhou, embora não tenha só esses aliados, mas o Lira tem compromisso com ela. O [Rodrigo] Maia cumpriu o acordo de não colocar em pauta esses projetos. Embora eu duvide se sem a pandemia ele conseguiria aguentar o tranco da pressão desses grupos. Na pandemia o Congresso praticamente não funcionou. Ao contrário acho que o [Arthur] Lira não segura, até porque concorda com essas pautas. O [Rodrigo] Maia, por ser liberal na economia, democrático nas outras questões, não concordava de colocar isso em pauta. O [Arthur] Lira já é diferente. Acho que vai ter sim, um “passar a boiada”, como disse o [Ricardo] Salles.
Fundação Böll: Quais são os temas mais sensíveis? Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, a questão ambiental? Há alguma tem exceção?
Moroni: Não sabemos ainda. Mas a questão ambiental eu acho que ele vai vir com tudo. Acho que coloca em votação o que for pautado com força dentro do Congresso e na pressão desses grupos anti-ambientalistas. Na questão das mulheres tenho dúvida, pois significaria retroceder na lei do aborto, já que as outras coisas em termos de políticas públicas dos direitos sexuais e reprodutivos já foi desmontado. Talvez aprovar o Estatuto do Nascituro, dar força para a votação disso.
Fundação Böll: Pelo menos no tempo do PT tinha toda uma estrutura de atendimento para violência contra as mulheres, agora não sei até que ponto isto já está desmontado, se formalmente ainda existe, se recebem menos dinheiro. Você sabe um pouco sobre isso?
Moroni: Nós fizemos alguns estudos nessa direção[1]. Já vinha do governo Temer, mas principalmente agora houve um desmonte de todas essas políticas para os direitos humanos. O Ministério [da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos] da Damares, responsável pela política para as mulheres tem muito dinheiro, mas para convênio com organizações religiosas tradicionais. No MDH houve aumento de recursos, então esse não é o problema. O problema é qual a política que está sendo executada com esse recurso. As políticas que tinham para garantia de direitos, seja para mulheres, população LGBTQI+, crianças e adolescentes, essas foram desmontadas. E há uma dificuldade de identificar para onde está sendo canalizando esses recursos, não é uma coisa tão transparente.
Fundação Böll: Fizemos uma live em 2020 que tinha o título provocativo “Como lutar contra um projeto autoritário de poder?”. Na live, o professor Marcos Nobre afirmou que seria necessário a construção de pontes entre a esquerda e a direita democrática para derrotar Bolsonaro em 2022. O que você acha disso?
Moroni: Primeiro ter unidade para 2022 envolve o PT, PDT, Rede, PSB, PSOL, PC do B. Temos dificuldade de construir estratégias comuns para processo eleitoral; tanto para construção de um programa, quanto para construção de um processo para construir um programa... e de encontrar nomes que possam dar expressão a esse programa e possam ser consensuais. Então é uma coisa difícil e tem ainda todo o desconforto de partidos de esquerda dessa política hegemonista do PT. Mas ao mesmo tempo o PT é o maior partido da esquerda e o que tem mais voto.
Mas para enfrentar o bolsonarismo, mesmo tendo unidade na esquerda, a gente tem de ter uma unidade maior, acho que é isso que o Marcos Nobre coloca para enfrentar o bolsonarismo. Com quem? Quais seguimentos? Quais partidos? Por exemplo, essa “frente” que foi criada com o Baleia [Rossi] pelo Rodrigo [Maia] implodiu. Se pegarmos os 142 votos que teve o Baleia [Rossi], 130 e poucos são os votos que a esquerda tem. Todos aqueles 11 partidos que estavam numa perspectiva de construir uma pauta democrática para enfrentar o Bolsonaro, o que poderia ser visto como uma frente ampla democrática não só de esquerda, isso do ponto de vista da institucionalidade implodiu ontem [primeiro de fevereiro Arthur Lira ganhou a eleição].
Na verdade, para enfrentar o bolsonarismo temos de sair desse campo institucional dos partidos e criar uma frente ampla que envolva não só os partidos, mas as várias formas que a sociedade tem de ser representada. E aí tem um problema. Do ponto de vista das organizações, dos movimentos, que pode ser chamado de campo democrático popular, a experiência que temos de construir frentes não é muito boa e exitosa, porque há uma lógica de que você reúne as lideranças dos movimentos e dessas organizações faz um pacto por cima e isso está resolvido. E hoje temos várias formas organizativas na sociedade que não é naquele formato dos anos 1970, 1980 e nós não estamos conseguindo fazer o diálogo com essas outras formas. Então precisa repensar a questão metodológica de fazer política. Como a gente dialoga com os movimentos da juventude periférica, que não são apenas movimentos culturais? Como dialogar com os movimentos das mulheres e das juventudes autonomistas, com o movimento das mulheres negras, que têm outro formato de organização, outra cosmovisão de mundo? Temos que repensar essa forma de fazer política nesse nosso campo, pois a forma que a esquerda institucionalizada faz, e parte dessa esquerda também é dos movimentos e das organizações, é predominantemente masculina, branca, hetero. Me preocupa, porque há várias iniciativas tentando reunir. Por exemplo, na semana passada houve uma plenária dos movimentos populares que reuniu nove partidos, mais de 450 organizações de todo o Brasil, claro que com dificuldades da pandemia, tudo virtual, mas eu não vejo uma mudança na forma de fazer, e se não fizermos isso não conseguiremos ter esse diálogo. Temos de ter espaços de diálogo. A minha geração refletir sobre o que conquistou nesse processo histórico todo e ver o que fizemos de equivocado. Eu acho que dentro desse caldo do que nós conseguimos conquistar, que não foi pouco, dialogar com esse novo que está chegando e acho que a gente não consegue fazer isso.
Fundação Böll: Mas há ações para barrar esse projeto autoritário. Como você vê essa força?
Moroni: Tem muita coisa sendo feita, muitas coisas de forma diferente. Eu digo nesse período da pandemia se acentuou muito uma solidariedade política. Várias organizações, MST, Levante Popular da Juventude, as próprias ongs, o INESC solidário, várias formas de ajuda humanitária, que associavam a questão da solidariedade com a ação política e o assim chamado trabalho de base. Muitas organizações e movimentos nesse período da pandemia estruturaram estratégias de distribuição de comida. Voltamos a debater a questão da fome, embora a fome nunca tenha sumido totalmente desde os períodos do governo do PT quando saímos do Mapa da Fome, ela sempre permaneceu para alguns setores, mais residual, mas não saiu. Essa agenda está voltando com muito peso e vai pressionar pela continuidade do auxílio emergencial.
Se nos anos 1970, 1980 tínhamos organizações e movimentos com capacidade de representar esse segmento das organizações e da população, respeitabilidade e poder de convocação, hoje não têm mais. Se no impeachment do Collor, a ABI [Associação Brasileira de Imprensa], OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] tinham esse poder de convocação e representatividade, hoje não tem mais. E eu não acho isso ruim, pois hoje isso não cabe mais. Tem um aspecto ruim, pois nesse momento precisaríamos disso, mas tem um lado positivo, pois teremos de criar outras formas de diálogo. Antes era uma forma que não reconhecia nos espaços de poder, nas instâncias políticas, as várias outras formas de organização e eram sempre organizações comandadas por homens brancos. A questão racial nesse contexto é fundamental. Não só incorporada, mas estar na centralidade desse movimento para ter capacidade de enfrentamento. O que é ruim é nesse momento não conseguirmos construir esses espaços dialógicos que possam respeitar toda essa diversidade. Para construirmos estratégias comuns de enfrentamento ao bolsonarismo.
Mesmo que o Bolsonaro perca as eleições do ano que vem, o bolsonarismo está estruturado na nossa sociedade. Aquela coisa mais difusa, essa extrema direita radical, se estruturou.
Fundação Böll: Você acha que nós, organizações da sociedade, movimentos sociais, estamos mais num momento de resistência do que de transformação?
Sim, resistência. Mas acho que se só ficarmos na resistência perdemos muito politicamente, porque ficaremos respondendo à agenda colocada pelo bolsonarismo, por quem tem poder. Esse é o problema da resistência. Mas como também apontar estratégias para sair desse caminho? Eu falo isso porque já ouvi muito debate dentro do nosso campo, que acha que as organizações, coletivos, devem fazer resistência independente de quem está [no poder]. Seria uma resistência ao sistema capitalista, nosso grande inimigo. Significa que você não entra na disputa, por exemplo, do que significa, da narrativa, não pensa propostas mais coletivas pra enfrentar isso. E a definição de quem dá a pauta pública é fundamental. Hoje não temos condições políticas de pautar a opinião pública, como nós pautamos a reforma agrária, os direitos das mulheres e da população LGBTQI+. Tem que estar na resistência, mas estar além dela.
Fundação Böll: Se estamos fazendo tanta resistência qual o grau de ameaça real à sociedade civil, não só a nível da pauta, mas também no cotidiano?
Moroni: O bolsonarismo não tem apreço nenhum a processos democráticos. Ele já sinalizou que se não for eleito é fraude. Desde o início no processo da campanha de 2018, a democracia liberal, essa de ter eleição, três poderes, mais ou menos independentes, eles acham que é comunismo. É impressionante. A questão da guerra ideológica, não era só cultural. Dentro dessa estratégia e o Olavo de Carvalho citava muito, havia a eliminação física, que é o aumento da repressão. Ainda não chegou em nós [ONGs e fundações do campo democrático], mas sim nas lideranças indígenas, nas disputas pela terra nos territórios, seja pelo aparato do Estado ou pelas milícias que atuam nesses locais. O bolsonarismo conta com força armada, não só o Exército e Aeronáutica e a Marinha, eles se estruturam e contam com as PMs, as milícias e os civis que eles armaram nesse período. Mais de 200 mil armas legalizadas nesse país. Não somos nós que estamos comprando, a menos que eu saiba. Então eles têm uma base radicalizada e armada. No que diz respeito às PMs os governadores nunca tiveram comando sobre essa instituição. Tanto é que várias vezes as PMs fizeram chantagem com os governadores. São poucos os comandantes da PM que conseguem comandar de fato. Tanto que os comandantes da PM são trocados várias vezes durante um governo.
Se Bolsonaro percebe que não vai ter chance eleitoral em 2022, vai tentar uma forma de golpe. Se ele ganhar, como não tem possibilidade de reeleição e nem apreço pela democracia, fará um mandato altamente autoritário para em algum momento convocar essa base armada. Alguns dizem que ele não se sustenta se der um golpe, tem interesses internacionais. Mas acho que eles não têm esse tipo de preocupação. A forma como eles funcionam politicamente é outra. Eu acho que eles vão tentar. E nós temos que avaliar esse movimento do bolsonarismo, não com nossas categorias de análise, mas com outras, porque eles funcionam de maneira diferente. Uma coisa é eu analisar com as categorias que conhecemos o PSDB que tem apreço pela democracia liberal. Para o bolsonarismo são outras, inclusive temos que criar. São fascistas e precisamos entender qual é essa racionalidade. Achar que eles não vão tentar nada, porque não têm o apoio total do Exército, internacionalmente não está favorável ter golpe: eles não tem compromisso nenhum com isso.
Fundação Böll: E o papel do STF?
É um papel bastante dúbio. O STF teve total comprometimento com o golpe da Dilma [Rousseff]. Em relação ao bolsonarismo é ainda muito dúbio saber o que eles vão fazer. Embora, eles dão uma sinalização de controle. A ala do [ministro Luiz] Fux foi muito nesse sentido. Mas Bolsonaro terá outra indicação de ministro, pois [o ministro] Marco Aurélio se aposenta.
Acho que essa liberação dos áudios do que os hackers conseguiram da Lava Jato para a defesa do [ex-presidente] Lula não rebate no bolsonarismo, mas pode minar na sociedade o apoio à Lava Jato. Já que essa base do lavajatismo é moralista, e estão aparecendo escândalos familiares, Moro traiu a esposa, para essa base isso tem peso. Essa questão da Lava Jato pode inclusive liberar o Lula para ser candidato em 2022 e não estou dizendo se isso é bom ou ruim. Se houver um esgarçamento muito grande do governo Bolsonaro, não será por um processo de impeachment, pois é muito demorado na nossa legislação e teria risco de ele acionar essa base radical armada. Para manter Bolsonaro numa certa linha o STF também pode tentar fazer um certo controle via uma prisão dos filhos, uma barganha. São cenários, que mostram o quanto o golpe esgarçou nossas instituições.