A Questão Mineral no Brasil - Vol.2
APRESENTAÇÃO
Com o rompimento da Barragem do Fundão no município de Mariana no estado de Minas Gerais, em novembro de 2015, quebrou-se o elo convencional e o estigma que ainda se resguardava de uma contínua contradição, de não nos percebermos como um país minerador. As mais de 80 milhões de toneladas de lama que eclodiram sobre a bacia do rio Doce expuseram uma dialética da repetição à sofisticada e destrutiva indústria de extração mineral do país.
Caso fosse dividido, cada brasileiro, receberia do trio Samarco/Vale/BHP Billiton, responsável pela tragédia, aproximadamente 450 quilos de rejeitos da mineração, que ficaram apenas nas costas da população de Bento Rodrigues e várias comunidades e cidades entre Minas Gerais e Espirito Santo que viraram, da noite para o dia, uma extensão do complexo minerador de Mariana. Parte da população brasileira viveu e a outra viu pela primeira vez os efeitos da indústria da mineração para além dos lacônicos bordões “superávit primário” ou “equilíbrio da balança comercial”.
A tragédia de Mariana é inesgotável em exemplos, do mito da bonança ao progresso inevitável, numa desmensurada relatividade de que tudo pode ser recompensado. A mineração é destruição e desperdício, seja da forma que for, tudo é sucumbido pela lógica da “produção em rodagem perpétua”, ou seja, minas sendo exauridas 24 horas diariamente, determinando uma crise entre o trabalho e a máquina - que o substitui crescentemente para aumentar o volume de produção -; a natureza como fonte de acumulação primitiva sendo moída por sistemas mecanizados tendo o lucro máximo como alvo e uma população ao redor refém de promessas, subjugada por uma riqueza apenas imaginável, não tangível.
Essas características estão no cerne da destruição ecológica provocada pela Samarco/Vale/BHP Billiton em Mariana, que tanto foi vítima da ganância das transnacionais do setor, como do alto rendimento financeiro dos investidores e do Boom das commodities minerais iniciado em meados de 2002, como foi, ao mesmo tempo, afetada pelo seu declínio em 2012, com a intensificação da produção para a manutenção da taxa de lucro empresarial, perante a desvalorização das commodities minerais. Em ambos os momentos, a máquina mineradora nunca parou, pelo contrário, aumentou ainda mais a retirada de minérios em Mariana e muitos outros lugares do país, como veremos nos capítulos subsequentes deste livro.
Tudo é uma consequência sistêmica: “por isso, é assumido que justamente para resolver o problema (...), é necessário intervir para abrandar, para inverter, e finalmente, desmantelar o sistema de rodagem perpétua, especialmente no centro do sistema. No entanto, a perspectiva padrão da rodagem perpétua, se tomada por si só, tende a resumir o problema ecológico a uma questão quantitativa, desenfatizando os aspectos mais qualitativos da dialética, representadas hoje pela promoção de valores de uso especificamente capitalistas e,
assim, do desperdício econômico”. (FOSTER, 2010, p.247).
Normalizar em planos quantitativos, como é o caso brasileiro no Plano Nacional de Mineração 2030 (PNM), os bens naturais para especular e lucrar é uma premissa do mundo mineral atual. Se em outros momentos as crises econômicas freavam determinados ímpetos capitalistas de acumulação, nessa fase atual do sistema acontece justamente o contrário com a mineração. Isso se justifica, em parte, tanto pelo volume quanto pela fonte de produção mineral, que devem ser colocadas constantemente em movimento para promover a satisfação econômica de um dos seus fatores, os acionistas, que permeiam todas as relações de exploração da mineração no Brasil e no mundo capitaneadas pelo capital financeirizado.
Pior ainda, estamos minerando para elaboração de uma coleção de produtos para serem consumidos pela sociedade de maneira supérflua. O mercado não só criou a obsolescência programada para duração por tempo determinado de seus produtos, como já aciona a “obsolescência psicológica”, onde o indivíduo sente a necessidade da compra de outro produto, mesmo que o seu ainda esteja em plenas condições de uso, pelo fetiche da mercadoria mais “moderna”. Assim, as cidades se enchem de minerais, como as barragens se inundam de rejeitos. Da construção civil à invasão automobilística, passando pelo computador, pela televisão e pela expressão máxima da mercadoria interativa atual, o celular.
No entanto, essa não é apenas a única face da acumulação capitalista através da natureza. Existem outras e talvez de ordem mais perversa, materializadas na super preponderância do valor de troca sobre o valor de uso. E os minerais são, possivelmente, a versão mais exata dessa constatação demarcada (e muito) pela construção das cidades chinesas vazias e inabitáveis, sem necessidade alguma, foram criadas para a circulação e realização do capital através da exploração de minerais. Diga-se de passagem, em parte, os minérios consumidos pelos chineses do complexo minerador de Mariana, que, como vê-se nas exportações, chegaram a 16,5% bem antes da catástrofe.
Mas e agora, o que se projeta para a mineração com a revolução tecnológica em curso, com a desaceleração do crescimento chinês, período chamado pelos autores desse livro como “o fim de um super ciclo”, de um pós-boom das commodities, além da ofensiva neoliberal que se traduz ainda numa crise prolongada das “democracias” no continente, agravado pelo alinhamento aos EUA, quando não há pacto possível entre renda social, capital e trabalho. A inserção subordinada à modernidade internacional será um dos traços, cujo fenômeno Mariana se revela, seja pelo uso máximo da natureza mineral ou pelo absolutismo da sua renda!
Para a classe trabalhadora da mineração, seja no Brasil ou na África, a situação é endêmica, de muita exploração e violência, como assinala Thomas Piketty, no seu livro O Capital, p. 46, “no dia 16 de agosto de 2012, a polícia sul-africana interveio num conflito entre os trabalhadores da mina de platina de Marikana, perto de Joanesburgo, e os responsáveis pela exploração dos recursos, os acionistas da companhia Lonmin, cuja sede fica em Londres. As forças policiais atiraram nos grevistas com munição de verdade, no balanço, 34 mineradores mortos. Como é muito comum nesses casos, o foco do conflito era a questão salarial: os mineiros queriam que sua remuneração passasse de 500 euros para 1000 por mês. Depois dos trágicos acontecimentos, a empresa propôs, por fim, um aumento de 75 euros mensais (…) esse episódio recente serve para nos lembrar, se é que isso é necessário, que a questão da repartição da produção entre a renumeração do trabalho e a do capital sempre constitui a principal dimensão do conflito distributivo”.
Um exemplo da externalidade desse conflito, no caso brasileiro, num universo de três milhões de trabalhadores da mineração no país, conforme menção da Frente Sindical Mineral (Ação Sindical Mineral, maio de 2013), um milhão e meio são terceirizados e apenas quinhentos mil possuem carteira assinada. Para cada dez mortes na mineração, oito são terceirizados. Dos catorze trabalhadores mortos na tragédia provocada pela Samarco/Vale/BHP Billiton, doze eram terceirizados. E este é apenas um dos inúmeros casos. Sessenta e sete operários que trabalhavam para a Tetra Tech, terceirizada e contratada pela Anglo American, na cidade de Conceição do Mato Dentro em Minas Gerais, em 2013, na construção do maior mineroduto do mundo, foram classificados pelo Ministério Público do Trabalho (MTP) como em situação de trabalho análogo à escravidão. Os trabalhadores estavam a mais de cinquenta dias sem folga.
Nessa linha de trabalho degradante, as mortes e mutilações são uma constante. De 2000 a 2010, a Fundação Jorge Duprat e Figueiredo (Fundacentro) constatou que o Índice Médio de Acidente Geral no Brasil foi de 8,66%. Já o indicador médio de acidente da mineração, em Minas Gerais, por exemplo, foi 21,99%, quase três vezes maior que a média nacional. No mesmo compasso, o padrão de acumulação na produção vem delimitando o fator humano do complexo minerador com a implantação da robótica e automatização total. “Entre os anos de 1989 e 1998, a Vale desapareceu com 170 mil postos de trabalho” (COELHO, 2015, p. 45). Como explica John Bellamy Fostes: “isso requer a revolução incessante da produção, para substituir a força de trabalho e promover o lucro, ao serviço de uma acumulação cada vez maior” (FOSTES, 2010 p. 246).
Para isso serve o Instituto Tecnológico da Vale (ITV) em Belém, no Pará, e em Ouro Preto, em Minas Gerais: pensar processos de produção de “rodagem perpétua” cada vez mais tecnicistas e realizados por máquinas imparáveis.
Outro ponto que salta aos olhos e que se tornou uma marca central do trágico acontecimento em Mariana é que tudo se acirrará na tentativa de baixar os custos operacionais das mineradoras e, portanto, da segurança, para manter a taxa de lucro diante da baixa dos preços dos minerais no mercado internacional. Ou seja, é de se esperar que tudo se repita, caso não haja uma reação, em solo e subsolo, dos que estão em contradição com o capital mineral e suas adequações políticas, como a completa flexibilização das leis ambientais.
Na mesma direção, a propagada desaceleração do crescimento chinês, um dos maiores consumidores de minerais do Brasil, não repercutirá em demasiadas perdas econômicas por parte das mineradoras que intensificarão sua produção com custos de extração e escoamento, a aproximadamente 13 dólares a tonelada de minério de ferro. Quer dizer, se o valor do mercado mundial está em torno de 55 dólares a tonelada dessa matéria prima, o capital já se realiza e o lucro se apresenta para as mineradoras apenas na retirada do minério de ferro da jazida. Dessa forma, muitas vezes a matéria-prima não precisará nem virar produto, ou seja, ter o seu valor de uso efetivado e apropriado para satisfazer a cadeia de acumulação financeirizada da mineração. Bastará seu valor de troca, como já mencionado acima.
Além disso, as cidades chinesas em plena expansão, assim como as grandes capitais do mundo, não serão mais o destino muitas vezes prioritário dos minerais, já que a revolução tecnológica que se concretiza poderá voltar a se concentrar na indústria bélica, hoje já mais associada ao cotidiano de serviços civis, para a construção de drones, aviões, softwares, eletrodomésticos e muitos outros produtos que surgem nessa fase.
Resta-nos saber (ou prever) quanto ficará ainda mais pesada a carga. Grande parte dela já foi jorrada pelo trio Samarco/Vale/BHP Billiton em novembro de 2015. E quantas mais cargas teremos que aguentar nas costas desse sistema de exploração mineral?
Este livro, que compõe o Volume 2 da Coleção “A Questão Mineral no Brasil” é um esforço pensado a muitas cabeças. E por isso a importância de refletirmos sobre as suas formulações críticas, no Brasil e nos demais países da América Latina, nesse acontecimento que poderíamos nomear como “pedagógica do capital” ou “como ensinar através da morte à sociedade”. Não só no âmbito da “educação pela pedra” como escreveu o poeta João Cabral de Mello Neto, mas com a afirmação de que a mineração não pode ser um debate só entre os capitais e suas representações. Os seus autores e autoras – Bruno Milanez, Luiz Jardim Wanderley, Maíra Sertã Mansur, Raquel Giffoni Pinto, Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves, Rodrigo Salles Pereira dos Santos, Tádzio Peters Coelho – têm por parte dos organizadores dessa coleção, e, imaginamos, por parte dos que são todos os dias soterrados pela avalanche ideológica, no discurso e no deslocamento territorial compulsório da indústria da mineração, o
mesmo sentimento: o de que nenhuma teoria terá êxito sem uma efetiva relação com a realidade.
Os interessados lerão neste livro, nos cinco capítulos que o compõe, as interfaces da ideologia da indústria mineral e sua contínua expansão sobre forma de “pilhagem territorial” e a dinâmica “jurídico-institucional” que lhe confere tal ímpeto. Em uma das muitas revelações que “a expansão da extração mineral no Brasil nos últimos anos (que triplicou seu papel no valor adicionado nacional de 1,6% para 4,15% entre 2002 e 2014) constituiu o principal elemento indutor da ampliação de suas infraestruturas associadas. É essencial, portanto, operacionalizar uma discussão em torno de Taxas e Ritmos de Extração adequados ao controle e à redução dos riscos presentes e futuros associados à intensificação das operações do setor no Brasil”.
As razões da mineração deslocaram para o tempo presente uma dinâmica de afetação, como assinala o quarto capítulo: “Os conflitos ambientais podem ser compreendidos enquanto conflitos entre diferentes formas de uso e significação dos recursos e objetos naturais, em que entendimentos e práticas dominantes se sobrepõem, comprometendo as outras não dominantes. Se para Samarco/Vale/BHP Billiton as localidades rurais de Mariana e Barra Longa, assim como todo o rio Doce, são agora extensões de sua barragem de rejeitos, para os povos que lá vivem (agora sobrevivem), tratam-se de espaços comuns de reprodução material e social da vida. Com o espraiamento do rejeito da mineração sobre esses territórios, tais empresas impuseram seu uso privado ao meio ambiente destes grupos sociais”, “neles lançando os produtos não vendáveis da produção de mercadorias” (ACSELRAD, 2015, p. 61).
Por fim, esses argumentos não são apenas uma crítica ecológica, senão a compreensão de que há uma ruptura metabólica, uma fissura irreparável, um “esgotamento rápido, com desperdícios da oferta natural” na atual organização do sistema minerário brasileiro e conhecê-lo é uma das premissas de quem deseja se posicionar no debate e na construção de alternativas, sobretudo numa fase de polarização do capital, seja ele rentista ou industrial sobre o “uso intensivo” de bens minerais com a ecologia política de inúmeros territórios conflagrados por conflitos minerários. Este livro, além de fornecer uma linha do tempo, dos inúmeros eventos trágicos desse sistema de rapinagem, nos oferece também indícios do que poderá ser uma pauta política e econômica que o dilema mineral impõe a toda a sociedade e em especial aquelas populações que vivem nestas “novas” fronteiras econômicas da indústria extrativa mineral, assim como demarca com inteligência uma teia de relações empresas/governos/estado como um coletivo capitalista, que se resume em ações e subordinações, que se fossem menos espúrias teria tido a possibilidade de frear a rompimento da barragem do Fundão.
“Antes fosse mais leve a carga: Reflexões sobre o desastre da Samarco / Vale / BHP Billiton” é um livro de perguntas ao poder!
Por um país soberano e sério,
Contra o saque dos nossos minérios!
Os organizadores
Gurarema/SP
Outubro de 2016
Detalhes da publicação
Índice
APRESENTAÇÃO......................................................................7
CAPÍTULO 1. .........................................................................17
ANTES FOSSE MAIS LEVE A CARGA: INTRODUÇÃO AOS ARGUMENTOS E RECOMENDAÇÕES REFERENTE AO
DESASTRE DA SAMARCO/VALE/BHP BILLITON
Maíra Sertã Mansur, Luiz Jardim Wanderley, Bruno Milanez, Rodrigo Salles Pereira dos Santos, Raquel Giffoni Pinto, Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves, Tádzio Peters Coelho
CAPÍTULO 2. .........................................................................51
A FIRMA E SUAS ESTRATÉGIAS CORPORATIVAS NO
PÓS-BOOM DAS COMMODITIES
Bruno Milanez, Rodrigo Salles Pereira dos Santos,
Maíra Sertã Mansur
CAPÍTULO 3. .........................................................................87
DEPENDÊNCIA DE BARRAGEM, ALTERNATIVAS TECNOLÓGICAS
E A INAÇÃO DO ESTADO: REPERCUSSÕES SOBRE O MONITORAMENTO DE BARRAGENS E O LICENCIAMENTO
DO FUNDÃO
Rodrigo Salles Pereira dos Santos, Luiz Jardim Wanderley
CAPÍTULO 4. .......................................................................139
CONFLITOS AMBIENTAIS E PILHAGEM DOS TERRITÓRIOS
NA BACIA DO RIO DOCE
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves,
Raquel Giffoni Pinto, Luiz Jardim Wanderley
CAPÍTULO 5. .......................................................................183
A EMPRESA, O ESTADO E AS COMUNIDADES
Tádzio Peters Coelho, Bruno Milanez, Raquel Giffoni Pinto
PoEMAS - Grupo Política, Economia,
Mineração, Ambiente e Sociedade.........................................229