A recente epidemia de Zika no Brasil e outros países da América Latina trouxe muitos problemas para a saúde pública. Ainda que os estudos científicos em torno da relação entre a infecção por esse vírus e a recorrência da microcefalia entre fetos e bebês (ainda) não sejam conclusivos, tais investigações já fundamentam o posicionamento sobre esta relação pela Organização Mundial da Saúde e pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
Para combater o mosquito Aedes aegypti, vetor do Zika, o Estado elaborou políticas públicas de vigilância sanitária e saúde. Entretanto foi provado que a Zika pode ser sexualmente transmissível. Isto e o crescente número dos casos de microcefalia[1] demonstram a necessidade de considerar outros aspectos neste debate. Para diferentes setores, sobretudo os movimentos feministas, a reação da sociedade e as consequências da epidemia de zika mostram o péssimo estado dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no Brasil. Entre esses direitos está a garantia de educação sexual, a oferta de meios contraceptivos e de atendimento de saúde como o pré-natal e o direito à informação sobre as consequências de uma gestação e vida de uma pessoa com microcefalia, além do direito de interrupção legal da gravidez nesse caso. Ainda que o debate sobre microcefalia na sociedade seja recente, tais demandas não emergem em razão dessa epidemia, mas constituem o cerne das reivindicações dos diferentes movimentos de mulheres, em relação aos direitos sexuais e reprodutivos nas últimas três décadas no Brasil. A mídia brasileira regularmente noticia sobre pais que abandonam a parceira grávida ou bebês recém-nascidos depois do diagnóstico de microcefalia. Assim eles representam e reproduzem um difundido modelo de relações de gênero em que a responsabilidade da educação da prole é concebida como própria às mulheres. Além disso, a própria epidemia tem uma incidência diferenciada, vitimando, em especial, as mulheres das regiões mais pobres do país – como o Nordeste brasileiro, onde há a maior concentração de casos em comparação com as outras regiões do país.
Nos últimos meses de 2015 e nos primeiros de 2016 tais elementos e a visibilidade conquistada pela epidemia poderiam representar uma importante oportunidade para que o debate a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, em parte restrito aos atores diretamente engajados, sejam os contrários ou favoráveis à ampliação e reconhecimento destes direitos, ganhasse maior repercussão e capilaridade na sociedade. Contudo, a agenda político-partidária-institucional, envolvendo as diferentes etapas da Operação Lava Jato e os debates em torno da deposição da presidenta da República, ocuparam quase a integralidade dos noticiários, neutralizando e silenciando diversas outras questões fundamentais ao país.
Entre os poderes
O cenário contemporâneo no Brasil, portanto, ainda que se possa indicar conquistas em outros campos, como nas políticas relativas a participação e representação política das mulheres, no combate à violência doméstica contra as mesmas e nas políticas de emprego e geração de renda para elas, apresenta poucos avanços significativos no que se refere à agenda feminista em torno dos direitos sexuais e reprodutivos. A despeito da emergência de políticas e de marcos legais impulsionados por diferentes instâncias do Poder Executivo, nos níveis municipal, estadual ou federal, tais ações, em geral, limitam-se a indicações da necessidade de incorporação de temas relativos “à mulher” em planejamentos e atividades destes órgãos públicos. Concomitante a isso, entre as ações ou políticas que se efetivam, é importante destacar que muitas têm a sua atuação limitada em razão dos escassos recursos orçamentários destinadas às “políticas para as mulheres”, além de outras que têm a sua vigência interrompida ao sabor das mudanças de partidos políticos que conduzem as instâncias de poder que as abrigam, portanto, não havendo garantia de estabilidade e continuidade às ações quando ocorre alternância de força política no poder. Tal cenário, do mesmo modo, é reproduzido quando se trata de “políticas para a população Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT)”, sendo, é possível sugerir, ainda mais incipientes e reduzidas as atividades propostas e efetivadas, considerando o caráter ainda percursor e experimental que tais ações assumem no Brasil.
Existem diversas proposições legislativas construídas em diálogo e sob o marco dos acordos estabelecidos e assinados pelo Estado brasileiro em convenções internacionais que trataram da ampliação e garantia de saúde e direitos sexuais e reprodutivos às mulheres e à população LGBT. Ainda que o movimento LGBT seja diverso e que a indicação das suas pautas seja, do mesmo modo, variada, houve colaboração e uma confluência na definição do reconhecimento do Casamento Civil Igualitário, e atualmente da Lei de Identidade de Gênero (João Nery) e da Criminalização da Homofobia, como proposições prioritárias em tramitação no Congresso Nacional. Entre os movimentos de mulheres e feministas, após a recente aprovação da Lei 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, a legalização do aborto, mais uma vez, emerge como demanda prioritária destes segmentos. Para isso, existe por exemplo, o Projeto de Lei 882/2015 do deputado Jean Wyllys. Entretanto o Congresso Nacional, as casas legislativas estaduais e as municipais constituem-se como instâncias de poder fortemente resistentes a avanços nesse campo.
Observa-se o fortalecimento da atuação integrada de parlamentares conservadores, notadamente com atuação conformadas por suas identidades religiosas (católicos e evangélicos), em vista à restrição ou extinção de algumas conquistas e garantias existentes: principalmente a possibilidade de reconhecimento de união estável e casamento civil às relações homossexuais, bem como a existência de situações em que a interrupção da gravidez não é passível de criminalização pela lei. Os maiores adversários dos direitos sexuais e reprodutivos no Congresso são as bancadas religiosas, em especial o seguimento evangélico. Segundo levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), entre os deputados federais eleitos no último pleito, em 2014, setenta e cinco comporiam a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), principal articulação de parlamentares nesse campo conservador. Apesar do acréscimo de apenas dois parlamentares com relação ao pleito anterior , a força desta Frente não se expressa apenas por possuir 15% dos parlamentares da Câmara dos Deputados. Expressa-se também por sua capacidade de articulação e integração com outras bancadas igualmente conservadoras – notadamente, a frente “ruralista” e da “da bala”, que, respectivamente, têm como um dos focos de suas atuações a defesa do latifúndio e do armamento da população. Diferentes ativistas e lideranças, em diversas situações públicas, revelam que diante do cenário conservador do presente momento – o chamado “backlash” - as suas atuações deixaram de se direcionar ao que chamam de “agenda positiva”, isto é, baseada na ampliação e reconhecimento de direitos, tornando-se “defensiva”, dado que se voltam a evitar que “retrocessos”, isto é, medidas que restrinjam ou cerceiem direitos e prerrogativas já “conquistadas” sejam aprovados. A eleição, em 2015, à presidência da Câmara dos Deputados de Eduardo Cunha (PMDB), um parlamentar cuja atuação é conformada por valores religiosos cristãos conservadores tornou-se um novo entrave à ampliação desses direitos.
O Judiciário protagonizou as poucas e importantes conquistas e teve um papel significativo em dois avanços no plano federal nos últimos anos:
1. A possibilidade de recorrer ao instituto jurídico do casamento para nomear e tratar as relações entre homossexuais[2], direito, até então, exclusivo às parcerias heterossexuais.
2. O direito à interrupção da gravidez em casos de anencefalia[3], ampliando a previsão legal até então restrita à gravidez decorrente de violência sexual ou ainda quando oferecesse risco de morte à gestante, como estabelecido pelo Código Penal de 1940.
Os setores conservadores representados no Congresso têm produzido um intenso questionamento sobre a atuação do Poder Judiciário nessa agenda de direitos. Argumentam que ao tratar e produzirem normativas em torno do reconhecimento de tais direitos, este Judiciário rouba do Congresso Nacional a prerrogativa constitucional de legislar sobre os mesmos. Por outro lado, os atores do Judiciário e os movimentos feministas e LGBTs respondem tais críticas defendendo que a atuação daquele poder é feita com o intuito de preservar direitos fundamentais que são estabelecidos pela Constituição: a igualdade, a dignidade, a autonomia, o direito à saúde, a vida sem tortura etc.
Diante da manifestação de forte conservadorismo no Legislativo e de uma relutância (ou ainda da fragilidade das ações) do Executivo, o Judiciário, sobretudo no plano federal, revelou-se uma importante chave de acesso a determinados direitos para mulheres e LGBTs. Este protagonismo do Judiciário, chamado de “judicialização da política”, não se manifesta apenas nas questões relativas aos direitos sexuais e reprodutivos, mas, nas últimas décadas, tem se evidenciado como uma característica própria da política brasileira.
Outros embates
No contexto das grandes manifestações que tiveram lugar no Brasil a partir de junho de 2013, ganhou visibilidade e forma uma ampla variedade de coletivos e organizações cuja atuação preza não apenas por uma não-institucionalidade, mas também por outras estratégias de luta e objetivos de atuação, em contraponto aos movimentos mais tradicionais. Atualmente novas formas de pensar ação coletiva aparecem no país: agentes individuais e grupos que se organizam a partir de determinadas intervenções e manifestações públicas surgem, presenciais ou mediadas por redes sociais. Os seus objetivos não estão diretamente referenciados ao marco da interação com o Estado e aos sentidos (r)estritos da conquista dos “direitos sexuais e reprodutivos”. De maneira mais ampla, o objetivo das intervenções é produzir afeições, afetações, desconfortos, empatias e identificações, em um intenso arranjo entre política e emoções.
Por outro lado, organizações feministas e LGBTs históricas vêm enfrentando dificuldades pelo encerramento nos últimos anos de diversas linhas de financiamento que tornavam as suas atuações possíveis, inclusive ameaçando sua existência. As instituições são importantes. Elas estiveram e ainda estão na linha de frente de determinadas conquistas sociais e na resistência a ameaças de retrocessos. Acumularam expertises na interação com agências internacionais e com o Estado. Ainda que, seja possível reconhecer as transformações e a emergência de novas formas de ação coletiva em torno dessas agendas, há riscos pelos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente por causa da presença de atores conservadores nas instituições legislativas.
Por fim, além desses desafios que se colocam à garantia dessas pautas, um caminho importante ao avanço e consolidação de uma agenda progressista ao que se refere aos direitos sexuais e reprodutivos no Brasil passa pela necessidade de estabelecer pontes entre tais agendas. Notadamente, é preciso um diálogo mais intenso e a atuação mais integrada entre as organizações e ativistas feministas e LGBTs, mas não só entre estes. Os enfrentamentos em torno desses direitos remetem a questões mais amplas a respeito das liberdades individuais, da garantia de direitos fundamentais e da laicidade do Estado. Sob tal cenário, portanto, é urgente não apenas a intensa articulação entre os atores engajados, mas também uma aproximação mais íntima com vistas a conformação de atividades comuns e relacionadas com setores dos movimentos de combate à intolerância religiosa, ao racismo e em defesa da descriminalização do uso das drogas, considerando que seus enfrentamentos cotidianos, por diversas vezes, são confrontados com os mesmos argumentos e oponentes.
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[1] Em 30 de janeiro de 2016, segundo dados do Ministério da Saúde, já somavam 4.783 casos de suspeita de microcefalia em todo o país, sendo 404 já confirmados.
[2] A partir da Resolução 175, de maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabeleceu que os cartórios de todo o Brasil devem celebrar o casamento civil entre pessoas de mesmo sexo, como também, a partir de então, passam a, se demandados, serem obrigados a converterem as uniões estáveis estabelecidas entre tais pares naquele mesmo instrumento jurídico. Antes disto, é oportuno destacar, as uniões estáveis entre homossexuais se tornaram juridicamente reconhecidas através dos julgamentos da ADPF (132), apresentada pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR), pelo STF em maio de 2011.
[3] A partir da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu, em abril de 2012, que a interrupção da gravidez nos casos de fetos anencéfalos não é passível de criminalização às mulheres ou às/aos profissionais de saúde envolvidas/os nessas intervenções.