Em entrevista à Fundação Böll, o professor Orlando Alves dos Santos Júnior do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ), ex-relator da Plataforma Brasileira de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), na Relatoria do Direito Humano à Cidade fala sobre as violações ao direito à cidade que estão acontecendo no Brasil. Durante dois anos (2010-2011), ele realizou missões em diferentes estados para investigar denúncias de violações de direitos, como no Rio de Janeiro onde acompanhou os processos de remoção devido às obras de preparativos para os megaeventos.
A conversa com Orlando foi realizada logo após as chamadas Jornadas de Junho, a onda de manifestações iniciadas em 2013 em todo o Brasil.
Nos últimos tempos estão sendo denunciadas diversas violações dos direitos coletivos à cidade. O que significa esse direito?
Orlando: Um dos enfoques do direito à cidade remonta a Henri Lefebvre, um filósofo francês e primeira pessoa que elaborou e formulou a ideia do direito à cidade e depois tantos outros movimentos sociais, intelectuais trabalharam com essa ideia.
Eu acho que a ideia do Lefebvre se refere a uma dupla dimensão. A primeira dimensão é o direito à reprodução social digna à cidade, portanto, à habitação, ao saneamento, ao transporte, à mobilidade, à educação e à saúde. Eu diria, que desse ponto de vista, o direito à cidade é um clamor, uma necessidade; diz respeito à reprodução social propriamente dita. Assim, essa reprodução social digna não pode estar subordinada ao mercado, deve ser garantida a todas e todos. Quando a gente diz que alguma coisa é um direito social, estamos dizendo que independente das condições financeiras de cada um, uma certa condição básica de qualidade relacionada a reprodução social deve ser garantida. Esse é a primeira dimensão, mas existe uma segunda.
A maneira como a cidade se organiza e como nós organizamos a vida na cidade influenciam no nosso modo de ir e vir, no nosso modo de pensar, no nosso modo de existir. E portanto, todo mundo tem algo a dizer sobre a forma como a cidade está organizada ou todo mundo tem algo a dizer sobre como deseja que a cidade seja organizada. Assim, há uma dimensão relacionada ao direito de todo mundo, de participar das decisões relativas a cidade, como o cidadão deseja que a cidade seja organizada. Então, essa é uma dimensão que afirma a democracia e tem uma radicalidade democrática, de participação, de decisão sobre a cidade. Essa dimensão também está implícita na ideia do direito à cidade.
Nessa perspectiva de direito à cidade, como estão os processos de remoções hoje no Rio de Janeiro? A informação do Dossiê do Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de 2013 é que 3 mil famílias já perderam as casas e que esse número pode chegar a 11 mil. Esses dados são atuais?
Orlando: Totalmente atuais, mas são números subestimados porque podemos dizer que há uma política de desinformação. Então, não existem informações disponibilizadas sobre o detalhamento dos projetos, sobre as áreas por onde esses projetos vão passar. Tudo isso impede que as comunidades se organizem antes. Quando visitávamos as comunidades as pessoas estavam perdidas [Referindo-se as comunidades ameaçadas de remoção]. Ninguém sabe [se terão que deixar as casas ou não]. O poder público chega primeiro como uma onda de terror: “Olha, vocês vão ter que sair.” Quando a empresa que está fazendo as obras chega, começam os boatos. Ninguém senta, ninguém conversa, não tem projeto, não tem nada. Então, esse clima de terror faz parte da coação que a população sofre no processo de remoção.
Este clima de terror faz parte da estratégia do poder público para realizar as remoções?
Orlando: Claro. Porque ele tem que fragilizar os termos de negociação com os moradores, tem que enfraquecer o morador para aceitar a proposta que ele vai fazer. Então, é um clima de terror, quer dizer, você deixa o morador intimidado, com medo, inseguro. A insegurança faz parte. O poder público incorpora na sua lógica de intervenção uma perspectiva de enfraquecimento do seu interlocutor, de enfraquecimento dos direitos do cidadão.
Outra questão fundamental é jamais negociar coletivamente. O poder público nunca negocia coletivamente, não reconhece as organizações comunitárias. As negociações ocorrem individualmente e esse é um padrão fundamental. Há também as ameaças. “Se você não aceitar vai ser pior pra você” [é o que diz os representantes do Estado para os ameaçados de remoção]. Em todos os casos graves que acompanhamos de denúncias em relação aos direitos humanos, ocorrem quando o cidadão recorre à justiça. É como se o poder público dissesse: “Se você recorrer ao direito, se buscar os seus direitos, você será penalizado”. Há provas também de remoções com zero de tempo [os moradores não têm tempo de se preparar para deixar as casas]. E nós presenciamos remoções noturnas. E há uma grande quantidade de violações decorrentes da derrubadas de liminares na Justiça.
Mas é óbvio que há resistência. Mesmo nessa situação, têm aqueles que se organizam, que se mobilizam. E obviamente há alterações desse padrão de negociação com o poder público decorrente dessa mobilização. Se antes esses processos de remoção começaram com indenizações de R$6.000,00, hoje já existe um decreto da Prefeitura da qual o teto, não significa que todo morador receba isso, chega a R$80.000,00. Mesmo que as vitórias sobre esse projeto de intervenção sejam ainda muito pequenas, periféricas, há mudanças, a meu ver, que são significativas e que expressam conquistas do Comitê Popular da Copa e dos movimentos populares que estão organizados nesse processo.
O cálculo dessas indenizações é sempre pela moradia e nunca pela posse do local?
Orlando: No decreto já existe uma taxa de localização [mas não há uma indenização pela posse]. Na verdade, o estatuto da cidade já permitiria o reconhecimento da posse. Claro, que isso significaria ao Poder Executivo comprar uma briga com a Procuradoria do estado, ou seja, com o Tribunal de Contas. Mas o poder público não indeniza a posse, não reconhece aquilo que está previsto no Estatuto da Cidade.
E existe um canal institucional, formalizado, da Prefeitura, de consulta à população sobre as remoções e as obras?
Orlando: Nem um canal. Há um sério engano na compreensão. Há algumas visões que não apreendem a profundidade daquilo que está acontecendo nas cidades sedes. O impacto dos megaeventos não é limitado às comunidades removidas. Eu estou dizendo que os megaeventos vão atingir você como cidadã do Rio de Janeiro, eu como cidadão do Rio de Janeiro, e qualquer cidadão do Rio de Janeiro. Portanto, a meu ver, os espaços de participação relacionados às intervenções da Copa do Mundo e das Olimpíadas, não devem incorporar apenas aqueles diretamente atingidos. Eu diria, não há espaço de participação nem para a sociedade em geral, nem para as comunidades diretamente atingidas. Contrariando aquilo que está determinado no Estatuto da Cidade. Qualquer projeto urbano de intervenção na cidade deve incorporar a comunidade diretamente envolvida [de acordo com o estatuto]. Está explicitado. Não temos que inventar nada, mas a Prefeitura simplesmente rasga o Estatuto da Cidade.
O caso da comunidade de Campinho (Madureira, Zona Norte do Rio) é um dos casos emblemáticos relacionados às irregularidades no processo de remoções. Como fica a apuração dessas irregularidades depois que a comunidade é extinta? As pessoas conseguem algum tipo de avanço no sentido de compensação?
Orlando: Bom, isso depende muito da mobilização e da negociação que foi efetuada. No caso de Campinho, acompanhamos de perto a negociação com os últimos moradores que resistiram à remoção. Uma parte dos moradores foi removida para a Zona Oeste, para o Minha Casa, Minha Vida (MCMV), e uma parte resistiu e participou de uma negociação, como eu diria, menos perversa, porque eles conquistaram o direito à indenização. Conseguiram uma compra assistida. Assim, eles conseguiram adquirir imóveis próximos a sua área de moradia. Depois de sofrerem horrores.
Campinho fica a cerca de 60km de Cosmo [um dos locais com residências do MCMV]?
Orlando: Exatamente. Teve caso de morador com sua casa derrubada por engano, sem ordem judicial. Na época eu era relator da Plataforma DHESCA e nós estávamos fazendo a missão. Nós tínhamos marcado a audiência com a Secretaria Municipal de Habitação, no dia seguinte para negociar, na noite [noite anterior a audiência], isso era muito comum. Não me lembro se era quinta para sexta os fiscais da Prefeitura já estavam preparados para a remoção às 6 horas da manhã. Então, foi um caos a noite toda para poder suspender a ordem de remoção, tendo em vista o desrespeito ao processo de negociação que estava em curso, que era a audiência pública, audiência a ser realizada com a Secretaria no dia seguinte.
Percebe-se também uma clara desarticulação entre os órgãos da Prefeitura. Porque enquanto a Secretaria Municipal de Habitação queria aguardar e negociar, a Secretaria de Obras e a Procuradoria queriam detonar. Então, também não é, a meu ver, correto a gente olhar para o poder público como uma instituição monolítica.
Você tem procedimentos, posturas diferenciadas, apesar de identificarmos um padrão de intervenção por parte do Executivo. Apesar disso, há contradições e orientações às vezes distintas no interior do próprio poder público municipal.
E as mulheres? Elas são mais impactadas pelas remoções?
Orlando : Eu acho que é um grupo que sofre mais. Na verdade não é porque a remoção atinge especialmente as mulheres, mas porque elas atingem as famílias. Porque essa dominação masculina na sociedade está infundada na separação entre privado e público, esfera reprodutiva e esfera produtiva. Então as mulheres como responsáveis pela esfera reprodutiva sofrem mais quando ocorre uma remoção, que é exatamente a esfera da reprodução que vai ser destroçada no processo de remoção.
Estamos falando da transferência das famílias para lugares muito distantes onde as condições de escola para os filhos se alteram completamente, as condições de acesso a equipamentos públicos se alteram completamente, a mobilidade, a segurança. Muitas dessas áreas são dominadas por milícias.
Trata-se do papel que as mulheres ocupam nesse Sistema?
Orlando: Exatamente. Nesse caso, obviamente, elas são mais atingidas. Só para falar um negócio: acho que é uma responsabilidade nossa não ter um discurso maniqueísta e reducionista sobre aquilo que está acontecendo. Então, eu acho que a gente não pode partir do princípio de que as famílias que estão sendo removidas estão em comunidades homogêneas. Elas não estão em comunidades homogêneas. Acho que isso é um reducionismo muitas vezes...
Perigoso?
Orlando: Perigoso e que a meu ver tem dificultado a própria articulação dessas comunidades, quando você supõe que elas são homogêneas. Quer dizer, na verdade, nas comunidades que nós estamos acompanhando, você percebe uma multiplicidade, uma diversidade de situações, que a gente poderia, de uma forma caricatural, dizer que há famílias integradas aquele lugar, inseridas em redes sociais, a sua reprodução social tem, portanto, uma certa estabilidade. Colocando muitas aspas na estabilidade, mas você tem uma inserção social e econômica que garante a reprodução social daquelas famílias.
Você também têm famílias que estão numa situação de precariedade, na qual a inserção em redes sociais já não é tão forte e os vínculos com o mercado de trabalho também. Então, você tem uma situação de vulnerabilidade muito maior. Há famílias que efetivamente vivem uma situação básica de exclusão, aonde esses vínculos são quase inexistentes, a reprodução social é muito difícil.
Então, há pessoas, podem não ser os casos majoritários, mas que moravam/moram em barracos de lata, de madeira. A gente pensa que as favelas são constituídas apenas de casas de tijolo, de alvenaria e não é verdade. E mesmo no caso de alvenaria há situações muito precárias. Há famílias que desejam sim, porque não tem nada há perder, nenhum vínculo com aquele lugar. E o poder público se aproveita dessa multiplicidade de situações nessas negociações individuais.
A meu ver há um desafio para as comunidades que querem permanecer: ter uma agenda que incorpore também a negociação daqueles que desejam sair, para que a negociação seja mais favorável, mesmo para aqueles que querem sair. Para esses, ir para uma casa de alvenaria a 40km, 60km do Rio de Janeiro pode significar uma ascensão social importante; a esperança de uma inserção social, enfim, em novas condições sociais.
Mas isso não elimina a denúncia sobre o procedimento e o processo de negociação e de desrespeito daquelas famílias que estão em condições de sub-cidadania. O poder público trata aquelas famílias como subcidadãos, mas não precisamos criar um discurso de que todas as famílias têm suas condições de vida pioradas. Isso não corresponde a meu ver a realidade. Mas o fato de melhorarem não significa também que os procedimentos não tenham sido irregulares.
Sobre as manifestações:
Orlando: Eu acho que as mobilizações que estão acontecendo no Brasil, exatamente no momento da Copa das Confederações, escancararam as portas. Você imagina que houve uma mudança completa na agenda da mídia internacional, da imprensa internacional. Ela estava toda aqui pra cobrir a Copa das Confederações e toda ela está cobrindo as manifestações. Eu acho que isso tem muita relação com as denúncias que foram feitas, com aquilo que foi construído. Por mais que a imprensa, talvez todos nós, estejamos perplexos com tudo aquilo que está acontecendo no Brasil, eu acho que é um equívoco olhar para essas manifestações e achar que elas surgiram do nada.
Houve então um processo de construção de mobilização, de denúncia e de registro no campo internacional, muito por parte dos comitês. Mas esses protestos, além de mais visibilidade, farão diferença na luta pela garantia de direito dessas populações que estão sendo impactadas?
Orlando: Olha, é muito difícil fazer essa leitura, mas eu acho que sim. O poder público já está sendo obrigado a mudar a sua agenda. Então, eu acredito que a questão é o quanto isso vai mudar. Vai mudar radicalmente? Vai abrir um pouquinho?
São conquistas.
Orlando: Exatamente. Para mim, é um equívoco olharmos esse processo e não ver conquistas mesmo que na borda. Eu acho que essas manifestações, o número de pessoas com cartazes relacionando as péssimas condições da saúde, da educação e dos transportes relacionados aos investimentos da Copa do Mundo apareceram de forma contundente nas manifestações. Não foi periférico. Eu acho que é impossível não alterar algo. Agora, não nos iludamos sobre a força da Fifa e do Col. Um jornal alemão [Zeit] publicou “Obrigado Brasil”, porque vocês tiveram a coragem, nem nós alemães, tivemos a coragem.
Tivemos a coragem de nos mobilizarmos contra a Fifa, contra esse escândalo dessa empresa corrupta. São os fatos que mostram. Primeiro eu acho que isso tem efeito sim, segundo o quanto que vai fazer efeito é muito difícil de avaliar, porque o poder dessas instituições é muito grande. A coalizão que elas construíram, que não é a Fifa e nem o Col, mas a coalizão de poder que elas construíram é muito poderosa. Envolve grandes interesses econômicos internacionais e nacionais.
No mesmo dia que você tem o anúncio do diálogo, você tem a polícia do Rio de Janeiro indo para a Maré e fazendo um espetáculo que deve ser denunciado por todos, porque isso é um escândalo [se referindo a mortes de nove pessoas na Comunidade da Maré após uma incursão da polícia em junho de 2013]. Isso mostra que esse recuo ainda é absolutamente insuficiente para expressar uma mudança de postura por parte do poder público da forma como trata a população e como trata a cidade.
Reportagem do jornal Zeit Online (Screen Shot)