Foi lançado na última terça-feira (27.08) no Instituto Pólis, em São Paulo (SP), o livro “A nova classe média no Brasil como conceito e projeto político”. Editado pela Fundação Heinrich Böll, a publicação reúne artigos de 14 acadêmicos e ativistas do movimento social, que avaliam se a emergência da chamada “nova classe média” é um fato sociológico concreto ou uma narrativa de marketing político. Do lançamento participaram vários dos autores, em debate que foi acompanhado ao vivo por centenas de internautas.
Na abertura, o editor do livro e diretor da Fundação Heinrich Böll no Brasil, Dawid Bartelt, contou que a publicação traz uma análise contundente sobre o tema, tomando como ponto de partida o “muito bem vindo” aumento da renda dos trabalhadores brasileiros na última década. O editor ressaltou que é preciso fazer a distinção entre o segmento mais miserável da população, que foi atendido pelos programas de transferência de renda como o Bolsa Família, dos trabalhadores pobres que a partir de 2008 tiveram ganhos expressivos de renda, favorecidos pela política de aumentos reais do salário mínimo e por uma conjuntura internacional favorável. Esses, de acordo com critérios e narrativas adotados pelo governo, teriam passado a integrar a “nova classe média”.
“Esta ‘nova classe média’ conceituada por Marcelo Néri (presidente do IPEA e autor do livro “A nova classe média: o lado brilhante dos pobres”) é uma narrativa governamental. Ele diz que dividiu a população em extratos de renda e simplesmente classificou como classe média o setor do meio. Mas é óbvio que o governo se apropria de todos os conceitos sociológicos clássicos relacionados à classe média para usar o fato como instrumento de marketing político. O problema é que fazendo isso o governo abre mão de reduzir as desigualdades em várias dimensões da sociedade”, comentou Bartelt.
Má sociologia – A primeira mesa de debates reuniu autores que desenvolveram artigos focados no primeiro eixo do livro: “Nova classe média: alcances, falhas e benefícios de um conceito”. Quem abriu a discussão foi a autora Cristiane Uchôa, doutoranda em Economia e pesquisadora da UFF, que em parceria com Célia Kerstenetzky escreveu o artigo “Moradia inadequada, escolaridade insuficiente, crédito limitado: em busca da nova classe média”. Conforme explicou, elas tomaram como referência teórica o sociólogo francês Pierre Bordieu para investigar a existência de uma suposta nova classe média a partir de indicadores de consumo e estilo de vida. Usaram como base de dados a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE, 2008-2009) para verificar se dentro do intervalo de renda domiciliar mensal (entre R$1.315 e R$5.672) considerado por Marcelo Néri como representativo da nova classe média poderiam ser encontrados “marcadores” de estilo de vida da classe média tradicional. Como marcadores selecionaram casa própria, padrões elevados de habitação (até dois moradores por dormitório/ pelo menos dois banheiros), acesso ao crédito (cartão de crédito/ cheque especial), educação universitária e demanda privada por bens providos pelo Estado (plano de saúde/ escola particular).
No resultado apurado, apenas o critério casa própria (60%) chegou próximo de um padrão encontrado na classe média tradicional. O adensamento nas residências, na média de dois moradores por dormitório, é considerado baixo, mas outras condições de moradia não atendem aos critérios de classificação da classe média. O percentual de casas com apenas um banheiro é de 75,1% e 1,2% das residências não têm banheiro algum. Outros marcadores não chegam nem perto dos padrões usuais de classe média: 64,9% não têm cartão de crédito, 82,9% não têm cheque especial, 71,3% não têm plano de saúde, 10,2% dos chefes de família são analfabetos e mais da metade (51,3%) possuem no máximo o ensino fundamental completo. “Por estes critérios não se enxerga a promoção social deste segmento”, disse a pesquisadora.
Ela contou que o estudo procurou avaliar ainda os possíveis ganhos para as novas gerações dessas famílias. Foi verificado que, ao contrário do que seria necessário para acumular o capital cultural que permitiria sua ascensão social, as crianças da “nova classe média” não estão chegando mais cedo à escola do que seus pais e que tampouco perseveram mais tempo nos estudos.
Na sequência falou o professor Waldir Quadros, do Instituto de Economia da Unicamp, que escreveu em parceria os colegas Denis Gimenez e Daví Antunes o artigo “Afinal, somos um país de classe média? Mercado de trabalho, renda e transformações sociais no Brasil dos anos 2000”. Ele concordou com a avaliação de que o conceito da “nova classe média” é utilizado como instrumento de marketing político: “É uma defesa pelo social dos fundamentos da política econômica desenvolvida pelo governo”. E avaliou que é um erro afirmar que ocorreram alterações na estrutura social do Brasil tomando como referência pesquisas como a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE), porque as mesmas só aferem a renda declarada. “Falar em redução da desigualdade usando apenas estes inquéritos é uma mistificação da realidade ou um equívoco, que quebra as pernas de quase todo mundo que trabalha com dados estatísticos”. Para ele, é preciso contextualizar historicamente os números. “O país estava estagnado há duas décadas. Só voltou a crescer em 2004. Houve com isso um progresso muito importante de trabalho e renda para as classes populares. Mas não foram alteradas questões estruturais como o acesso à saúde, educação, transporte e segurança pública. Quem já estava na baixa classe média em 2004 continuou por lá. Apenas 20% ascenderam à média classe média. E quem já era de média ou alta classe média não sentiu muita diferença. Só houve redução da desigualdade na estatística”, afirmou.
A terceira expositora da manhã foi a autora do artigo “A fabricação da classe média: projeto político para nova sociabilidade”, Sônia Fleury, que é professora titular da Escola Brasileira de Administração Pública de Empresas da FGV, na qual coordena o Programa de Estudos da Esfera Pública. Ela comentou que o conceito da “nova classe média” é uma narrativa em construção não apenas pelo governo, mas também pela mídia atrelada ao grande capital nacional e internacional, que tenta tirar proveito do estímulo ao consumo para aumentar seus ganhos. Para ela, predomina na atualidade o projeto de Estado subordinado ao mercado na tentativa de reduzir as desigualdades, em detrimento de outro projeto, no qual o Estado busca a construção de uma sociedade mais justa baseado em fundamentos solidários. Este projeto que prevalece, segundo a autora, se justifica por meio de uma “má sociologia”, que desconsidera as condições de produção da sociedade, valorizando exclusivamente a capacidade de consumo das famílias. Desta forma, a pobreza deixa de ser considerada estrutural e passa a ser encarada apenas de acordo com seus fatores políticos e sociais.
Sônia Fleury avalia, no entanto, que as manifestações “de junho em diante” colocaram de forma muito clara as limitações deste modelo. Para ela, as pessoas disseram nas ruas que a melhoria de suas condições de vida é muito mais importante do que “a transformação das cidades em mercadorias que serão vendidas em megaeventos”.
O último expositor da primeira mesa de discussão foi o economista português Elísio Estanque, do Centro de Estudos Sociais e Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, que escreveu o artigo “A classe média como realidade e como ficção – um ensaio comparativo Brasil-Portugal”. Para ele, a sensação de crescimento da classe média é algo auspicioso, “tanto para a efetiva classe média quanto para quem se julga classe média”. Ele situa em outro pólo a sensação de proletarização da classe média, tal qual ocorre atualmente nos países ao sul da Europa como Portugal, Espanha e Grécia, o que é um fator gerador de tensões sociais.
Estanque concordou com a avaliação de que no Brasil a narrativa sobre a emergência da “nova classe média” é utilizada como ferramenta de marketing, criando a ilusão de que os pobres estão a caminho da classe média. O que, em sua opinião, eleva o endividamento das famílias e fortalece comportamentos negativos como o individualismo e a despolitização. Afirmou, no entanto, que os protestos de junho mostraram ao país que os jovens estão mais interessados na construção de políticas públicas coletivas.
Mesmo considerando a grande heterogeneidade dos movimentos e as frequentes demonstrações de individualismo e narcisismo político entre os manifestantes, formados majoritariamente por franjas da classe média tradicional. “Os progressistas não devem hostilizá-los, mas aprender com eles”, concluiu.
Reconstruir as utopias – Quando a fala foi aberta aos demais participantes, o editor do Le Monde Diplomatique, Silvio Bava, perguntou aos autores se a construção da “nova classe média” não seria capaz de fortalecer o sentimento conservador na sociedade, com a soma do conservadorismo dos setores que se julgam classe média ao tradicionalismo característico da classe média tradicional. Cristiane Uchôa respondeu que sim, na medida em que as pessoas da classe trabalhadora que aumentaram sua renda e hoje se julgam classe média tenham a tendência a se agarrar com força as suas conquistas. Já Waldir Quadros atribui o fortalecimento do conservadorismo às derrotas acumuladas pela esquerda nas décadas de 1980 e 1990. “Nós achávamos que nos anos 2000 ia virar, mas não aconteceu por falta de projeto político. Os setores críticos já estavam quase todos cooptados, acomodados, mais pragmáticos, mais realistas ou mesmo cínicos”, disse.
Sônia Fleury aprofundou a análise dizendo não ter dúvidas de que, mais de uma questão de marketing, a emergência da “nova classe média” está envolta numa disputa de poder econômico pelos fundos públicos. “O mercado se deu conta de que precisa do Estado para ampliar o consumo. Essa foi a sacada da globalização do capitalismo, que agora disputa não só o mercado desregulado, mas também os fundos públicos”.
Para Elísio Estanque, o quadro ainda é de difícil compreensão pelo fato de que estamos tentando analisá-lo usando esquemas mentais que já estão desatualizados. Para o autor, o socialismo não morreu, mas precisa de novos atores para reinventar seu projeto em contraponto à dominação dos grandes grupos econômicos. “Nós precisamos de utopias, mas antes as utopias precisam ser reconstruídas”, concluiu.
Direitos e cidadania – A segunda mesa de debates foi dedicada aos autores que escreveram artigos pautados pelo eixo “Direitos e cidadania: alcances, falhas e benefícios de um projeto político”. Cândido Grzybowski, diretor do Ibase, abriu a discussão com uma série de indagações, a primeira delas repete o título de seu artigo: “Que Brasil estamos construindo? Que Brasil queremos? Que Brasil o mundo precisa? Minha perspectiva é como radicalizar a democracia, como fazer da luta de classes uma força construtiva, como usá-la para ampliar direitos”. Mesmo reconhecendo mudanças significativas no cotidiano do país com os governos do PT, o autor afirmou que os ganhos em justiça social na última década não foram capazes de alterar o “projeto burguês” para o Brasil. “Pelo contrário, foi o preço que se pagou para viabilizar este projeto, criado no governo Geisel, mas então inviabilizado porque era muito selvagem e agressivo. O PT se prestou a viabilizá-lo, com políticas desenhadas não para gerar direitos, mas para criar consumidores. (...) Foi o preço que o PT pagou para chegar ao Poder”.
Para o autor, a chegada do PT à presidência da República promoveu um realinhamento político do país, afastando-se da “elite intelectual” e cooptando um enorme eleitorado da classe trabalhadora que antes tinha um voto conservador. O que não deve ser confundido, em sua opinião, com a ascensão de uma nova classe média. Pois, como afirma em seu artigo, “a cesta de consumo mudou, mas de jeito nenhum a condição de classe”.
A oradora seguinte foi Lígia Bahia, professora da Faculdade de Medicina e do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, que em parceria com o professor Cláudio Salm, do Instituto de Economia da UFRJ, escreveu o artigo “Tênis, bermuda, fone no ouvido... Vai saúde e educação também?”. Para ela, o que chama de “o ciclo das commodities” foi uma “sorte histórica para o Brasil, porque nós tínhamos qualificação para os postos de trabalho que foram criados. Mas dizer que isso foi o surgimento de uma nova classe média é fruto de uma sociologia de araque. Não é classe média. É média das classes”, disse a autora.
Para a autora, a alteração da pirâmide ocupacional gera grandes desafios de compreensão, com impactos diretos sobre fatores estruturais, como saúde e educação. “Não é nova classe média nem precariato. São novos trabalhadores, pura e simplesmente. Todos querem boa saúde e educação. É uma ironia que a privatização destes setores tenha se acentuado no governo do PT, pois esta não foi uma demanda deste segmento que emerge”, comentou a autora. Para ela, as manifestações de junho trouxeram um reflexo deste quadro ao evidenciar a defesa da saúde e da educação públicas e de qualidade. Pois, como já havia dito em seu artigo, “ao invés de prosseguirmos na construção de um Estado capaz de prover o bem estar social (...) prefere-se subsidiar com recursos fiscais toda e qualquer demanda dita social através do mercado. E tudo cabe no mesmo saco das políticas sociais redistributivas ou progressistas”.
Para a socióloga e feminista Nina Madsen, autora do artigo “Entre a dupla jornada e a discriminação contínua”, o grande problema trazido pela mudança da narrativa governamental acerca da estrutura de classes é que, por considerar que a extrema pobreza foi eliminada e que metade da população está consumindo, o governo está deixando de falar em pobreza para falar apenas de consumo e nova classe média. “A quem interessa esse projeto que tanto cede ao mercado?”, questionou a autora. Para ela, é importante resgatar a discussão sobre a pobreza numa perspectiva multidimensional, considerando todas as carências que estão além do consumo, como forma de reposicionar as políticas públicas focadas em segmentos como as mulheres, os negros e os jovens. Grupos que, não por coincidência, são fundamentais para alavancar a “nova classe média”.
Ao fim das exposições, o mediador Dawid Bartelt questionou: “Temos um novo sujeito de transformação? Como aproveitá-lo? Como canalizar sua energia positiva para um novo projeto de sociedade?” Nina Madsen reforçou que esta construção tem que ser feita a partir da perspectiva dos direitos. Pois mesmo reconhecendo que existe uma disputa sobre estas concepções no interior do governo, ela acredita que a narrativa da “nova classe média” está prevalecendo sobre o da redução das desigualdades. Já Lígia Bahia defendeu que o protagonista social do momento é a classe média tradicional que foi para as ruas em 1968, na década de 1980 e na campanha das Diretas, apresentando como diferença a desvinculação com os partidos políticos. “Outras pessoas foram para as ruas, mas o que predomina é a classe média tradicional com suas reivindicações tradicionais: transporte, saúde e educação pública de qualidade”, disse. Por fim, respondendo ao questionamento do mediador, Cândido Grzybowski afirmou: “Os sujeitos sociais se fazem na luta por direitos. Novas trincheiras democráticas estão sendo abertas. Cabe a nós aprender a enxergá-las”.
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- o livro também é distribuído gratuitamente. Os interessados que residem no Rio de Janeiro, devem buscar o exemplar no escritório da Fundação, que fica na Rua da Glória, 190/701. Glória. Rio de Janeiro. Para os que residem fora da cidade, é preciso fazer uma solicitação por email: info@br.boell.org.
Foto: Christiane Uchôa da UFF, Marilene de Paula da Fundação Heinrich Böll, Elísio Estanque da Universidade de Coimbra e Sonia Fleury da FGV