Pesquisa analisa evolução das milícias no Rio de Janeiro entre 2008 e 2011

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Desde 2008, quando foi concluída a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), o Poder Público intensificou as ações de repressão aos grupos armados que controlam comunidades inteiras na Baixada Fluminense, na Zona Norte e, principalmente, na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Indícios apontam que os milicianos, embora enfraquecidos, continuam em atividade nestas regiões. Mas pouco se sabia sobre o que mudou na forma de atuação das milícias desde a prisão de seus principais líderes.

Para buscar compreender esta nova realidade, o Laboratório de Análises da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-UERJ), com apoio da Fundação Heinrich Böll, realizou extensa pesquisa que resultou na publicação “No sapatinho”: a evolução das milícias no Rio de Janeiro (2008-2011).

A preocupação da Fundação Heinrich Böll com a questão das Milícias no Rio de Janeiro é antiga. Antes mesmo da instalação da CPI das Milícias, a Fundação convidou o vice-coordenador do LAV-UERJ, professor Ignacio Cano, para realizar um estudo sobre esse fenômeno. A iniciativa gerou uma parceria entre Justiça Global, LAV-UERJ e Fundação Heinrich Böll, que publicaram, em 2008, a pesquisa “Segurança, Tráfico e Milícias no Rio de Janeiro”.

A pesquisa de 2008 foi importante porque ajudou a desenvolver o conceito de milícia, aplicável à época, baseado em cinco traços centrais que devem ocorrer simultaneamente para caracterizar a existência de uma milícia:
a) controle territorial e populacional de grupos armados irregulares;
b) coação contra moradores e/ou comerciantes locais;
c) motivação de lucro individual dos integrantes do grupo;
d) discurso de legitimação em oposição ao narcotráfico e à desordem social;
e) participação aberta de agentes públicos em posições de comando.

Esse estudo foi pioneiro e amplamente divulgado em fóruns, organizações de direitos humanos e em comunidades. Sendo a Fundação Heinrich Böll uma organização internacional com sede na Alemanha, a pesquisa também foi divulgada fora do Brasil, inclusive através de uma tradução completa para o alemão.

Embora a questão das Milícias seja central na discussão sobre segurança pública no Rio de Janeiro, até hoje a produção sobre o tema é bastante limitada. Assim, no intuito de atualizar o debate e analisar as mudanças no cenário, a Fundação convidou, novamente, o professor Ignacio Cano para continuar a pesquisa e analisar a evolução das Milícias entre 2008 e 2011, que agora é divulgada.

Em ambos os trabalhos, os pesquisadores utilizaram o banco de dados do Disque Denúncia, compilações de matérias publicadas sobre o assunto na imprensa, e depoimentos de pessoas que moram ou trabalham em áreas controladas por milícias, além de autoridades públicas, como juízes e delegados, envolvidos na repressão aos grupos milicianos.

A nova pesquisa mostra que este perfil sofreu alterações significativas. Para entender o que mudou, é preciso analisar o tema em perspectiva.

A origem – As milícias surgiram como uma evolução dos grupos de extermínio e de “polícia mineira” que existem na Baixada Fluminense e na Zona Oeste do Rio desde a década de 1960, formados por pequenos grupos de policiais. Na década de 1990, estes grupos assumiram nova configuração, estendendo a proteção por eles oferecida – e, consequentemente, a cobrança de taxas – aos moradores das comunidades, com o objetivo declarado de impedir a disseminação do narcotráfico. Logo esses grupos assumiram as feições de organizações dedicadas à extorsão, controlando várias atividades capazes de render lucro, como a distribuição de gás, internet e TV a cabo, transporte ilegal e o monopólio sobre a comercialização de alguns produtos. Após estabelecer o controle territorial das comunidades, as milícias buscaram legitimar seu poder dominando as associações de moradores e elegendo vereadores e deputados.

A virada – Em um primeiro momento, diversos atores participantes do debate público mostraram tolerância e, inclusive, apoio a estes grupos, considerando-os como um “mal menor” em comparação ao narcotráfico. O prefeito da cidade na época definiu estes grupos como “autodefesas comunitárias”. Outras autoridades públicas se manifestaram em termos parecidos.
O fenômeno, no entanto, atingiu um ponto de inflexão em maio de 2008, quando um grupo de repórteres do jornal “O Dia” foi torturado por milicianos da comunidade do Batan, na Zona Oeste. Se até aquele momento havia alguma dúvida sobre sua natureza, a partir daí as milícias passaram a ser consideradas como parte do crime organizado.
Naquele cenário, a ALERJ criou a CPI das Milícias. A Comissão teve acesso a documentos oficiais de diversos órgãos (Polícia Civil, COAF, Ministério Público, etc.) e abriu um canal de denúncia para a população, o Disque Milícia, que recebeu 1.162 denúncias. A CPI recebeu também depoimentos de policiais, promotores e acadêmicos que tinham pesquisado ou investigado o tema, bem como de pessoas acusadas de pertencerem às milícias, de favorecê-las ou de serem favorecidos por elas.
O relatório final da CPI descreve minuciosamente as estruturas criminosas encontradas em cada local, apresenta uma lista de indiciados e, ao final, faz uma série de recomendações a respeito das medidas a serem tomadas.
O sistema de justiça criminal adotou medidas convergentes em diversas esferas, o que levou os líderes das milícias a perder seus cargos – no caso dos parlamentares – e serem presos.
Novo contexto – “No sapatinho” avalia a evolução do fenômeno das milícias entre 2008 e 2011, buscando identificar mudanças na sua composição e estrutura, na sua abrangência territorial, na sua capacidade de gerar lucro, no seu modo de operar, na sua legitimidade e na sua relação com as comunidades.

Para avaliar o efeito da repressão estatal sobre as milícias, o estudo observou principalmente as seguintes fontes:
a) entrevistas semiestruturadas com pessoas que moram ou trabalham em áreas controladas por milícias;
b) compilação de matérias jornalísticas publicadas em “O Globo” e “O Dia” sobre milícias de jan/2006 a abr/2011;
c) denúncias registradas pelo Disque-Denúncia entre jan/2006 e jun/2011;
d) denúncias registradas pelo Disque Milícias da ALERJ, entre jul e nov/2008;
e) entrevistas semiestruturadas com autoridades estatais que participaram diretamente da ação repressiva contra as milícias, incluindo delegados e promotores.

Os dados quantitativos possibilitam visualizar a distribuição geográfica das milícias e acompanhar as oscilações das denúncias e reportagens mês a mês. Com eles podemos perceber que a atuação das milícias atingiu seu ápice em 2009, caindo pela metade em 2010, mas voltando a se intensificar em 2011. Mas são as informações qualitativas, principalmente as entrevistas, que permitem avaliar o quadro com mais clareza para perceber as mudanças no modo de ação das milícias.

Conclusões – A conclusão tirada deste conjunto de informações é que a repressão contra as milícias entre 2008 e 2011 conseguiu reduzir o fenômeno, mas está longe de conseguir sua erradicação. Pois os dados revelam que as milícias continuam operando normalmente em amplas áreas da Zona Oeste e, em menor medida, na Zona Norte e na Baixada Fluminense.

De qualquer forma, as mudanças no cenário externo provocaram alterações na atuação das milícias ao longo desse período. Dentre os cinco elementos que caracterizavam as milícias em 2008, três se mantiveram praticamente inalterados: o domínio territorial de grupos armados irregulares sobre pequenos territórios; a coação sobre moradores e comerciantes; e a motivação de lucro individual.

A mudança mais marcante da operação das milícias diz respeito à crescente discrição e sigilo das suas atividades, que contrastam com a ostentação de anos atrás. “No sapatinho” é a expressão mais utilizada pelos entrevistados para se referir ao novo estilo. Esta menor visibilidade moderou a voracidade econômica exibida por estes grupos no passado e reduziu sua capacidade de gerar renda.

Paradoxalmente, a menor visibilidade dos grupos de milicianos, longe de diminuir o temor que provocam, aumentou a intimidação sobre as comunidades. Os pesquisadores relatam que encontrar entrevistados foi ainda mais difícil do que em 2007 e que os discursos estão permeados pelo temor.

Todos os moradores entrevistados relatam histórias sobre assassinatos de pequenos criminosos e de pessoas que contrariaram os “donos do poder”. Mas segundo diversos informes, as milícias estão matando menos e, sobretudo, estão sendo mais discretas nos seus homicídios, recorrendo ao desaparecimento de pessoas como alternativa. Os registros oficiais de desaparecimentos parecem confirmar uma tendência ao aumento de casos em locais e momentos em que a milícia está mais presente.

Praticamente sem suporte político e com a mídia contra, as milícias abandonaram o discurso de legitimação. O que não significa que tenham deixado de atingir certos níveis de legitimação dentro das comunidades. Principalmente na medida em que muitos moradores, na ausência de alternativa melhor, calam e consentem com os milicianos, temendo o vácuo de poder que pode ocorrer com o desbaratamento dos grupos.

A participação aberta de agentes públicos nas milícias, também se modificou. Os policiais e outros agentes do Estado continuam desempenhando funções de comando, mas já não expõem sua condição publicamente. Percebe-se, no entanto, que hoje as milícias dependem muito mais de civis, recrutados localmente, para preencher posições subalternas, como a vigilância e a cobrança de taxas. O que permite preservar os policiais que comandam a organização, além de dificultar as investigações. Esse processo está relacionado à mudança no tipo de controle exercido sobre o território, menos dependente da ostensividade e mais inclinado a uma intervenção reativa, quando os grupos são acionados pelos moradores. Afastam-se, portanto, do modelo de domínio territorial exercido pelo tráfico, voltando a se aproximar do controle aplicado pelos grupos de extermínio, que intervém de forma discreta, embora extremamente violenta.

Como afirmam os pesquisadores na seção final da publicação, “em 2008, as imagens biológicas que surgiram sobre as milícias eram a de um câncer ou de uma doença autoimune, de forma que as células que deveriam proteger o corpo social se dedicavam a ameaçá-lo. No momento atual, a nova imagem biológica da milícia é a de um vírus, que apresenta mutações constantes para se adaptar às novas condições e, dessa forma, evade as vacinas e os remédios desenhados para combatê-lo”.

Ao fim, a principal conclusão do estudo é a necessidade de criar formas para eliminar “o controle social autoritário e ilegal que existe secularmente nas comunidades de baixa renda no Rio de Janeiro, sob diversos nomes, e sobre o qual as milícias edificam o seu domínio”.