Prisão, políticas públicas e religião

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Penitenciária Lemos de Brito, Salvador (BA) Foto: Carol Garcia / AGECOM CC BY 2.0

 

O presente artigo tem como objetivo explorar as questões das políticas públicas relativas à reinserção social e o papel dos grupos religiosos e da religiosidade no sistema carcerário, considerando as recentes mudanças na legislação penal brasileira.

Marcada por denúncias de violações aos direitos humanos, a imagem do sistema penitenciário brasileiro junto à opinião pública se assemelha mais a um “depósito de gente” destinado à punição de criminosos do que a um conjunto de unidades para ressocialização de homens e mulheres.

No Brasil, quase 496 mil detentos compõem a crescente população carcerária, terceira maior do mundo depois da China e dos Estados Unidos.[1] De acordo com as estatísticas, 95% são pobres ou muito pobres; 65% são negros e pardos; e 65% cometeram crimes que não envolveram violência.[2] O índice de reincidência após o cumprimento da pena, de acordo com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Cezar Peluso, chega a até 70%, sendo um dos mais elevados do mundo. Portanto, a ideia de reabilitação se tornou o principal objetivo na gestão carcerária brasileira – ao menos é o que se diz no discurso oficial. [3]


A condição precária do sistema prisional no Brasil foi objeto de críticas internacionais. Um relatório da Anistia Internacional, publicado em 2010,  afirmou que os presos são “mantidos em condições cruéis, desumanas ou degradantes”.[i] Fica o alerta, pois o artigo 5º da Constituição Federal, inciso XLIX, define a integridade física e moral dos presos com princípio básico para a garantia da dignidade humana entre os muros do cárcere.

 

Porém, problemas como  superlotação e escassez de vagas; falta de equipamentos, saneamento básico e atividades recreativas e educacionais; pífios recursos e ausência de assistência médica, apoio psicológico e jurídico adequados, entre outros fatores, impossibilitam que haja condições dignas para o cumprimento da pena e favorecem a perpetuação de violações dos direitos fundamentais, como é amplamente e frequentemente documentado nos relatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de entidades da sociedade civil.

 

Políticas públicas e reincidência

A falta de políticas públicas eficientes e o uso indevido e ineficiente dos recursos financeiros  estão na base da gestão inadequada nos diferentes níveis administrativos, gerando o já conhecido problema da “crise do sistema judiciário”, no qual se destaca o despreparo dos órgãos de segurança, administração e justiça no papel de prevenção, identificação e execução dos processos.

 

Dentre os diversos exemplos decorrentes desta “síndrome da incompetência”, são  notórias as dificuldades relativas à educação, estando esta área diretamente relacionada ao alto índice de reincidência. Isso porque a falta de programas de capacitação e alfabetização dentro de um universo de pessoas educacional e profissionalmente desqualificadas cria um círculo vicioso, reduzindo-se as perspectivas de melhoria em todas as escalas.

Atualmente, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), apenas 8% da massa carcerária tem acesso a atividades educacionais no país e 70% destes não conseguem emprego quando deixam a prisão, abrindo espaço para o retorno ao crime e perpetuação de sua condição socioeconômica e cultural.

Como alternativa que demonstra uma predisposição favorável à contestação desta realidade, a Lei nº 12.433[4] foi um grande avanço. Aprovada em 2011, ela prevê a remissão da pena por via do estudo ou trabalho. Isso porque além do benefício da redução do tempo de reclusão, o preso resgata a si próprio, qualificando-se e aumentando sua autoconfiança, o que acarreta uma redução do total da população carcerária e da taxa de reincidência.

A vinculação desta lei ao programa “Brasil Alfabetizado”, do Ministério da Educação, leva em conta a grande porcentagem dos presos sem ensino fundamental completo, reavivando um direito já previsto na Lei de Execuções Penais e no Plano Nacional de Educação. Neste contexto, cabe lembrar que 17,4% do total são crianças e adolescentes com menos de 18 anos, com reincidência de 70%[5]. Portanto, fica a dúvida sobre a eficiência das penas aplicadas, trazendo consigo a questão de se considerar penas alternativas. De acordo com uma pesquisa do Grupo Candango de Criminologia, da Faculdade de Direito da UnB, os réus que receberam suspensão condicional têm um índice de reincidência de 24,2%, enquanto os condenados a regime semi-aberto, 49,6%, e regime fechado, de 53,1%.[6] 


Lançado em novembro do  ano passado, o Programa Nacional de Apoio ao Sistema Prisional prevê a construção de novos presídios, disponibilizando R$ 1,1 bilhão da União para reduzir a superlotação. Porém, de acordo com o defensor público de São Paulo e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça, Carlo Weiss, iniciativas recentes comprovam que a saída para a crise carcerária não está na construção de novos presídios, mas sim na agilidade dos processos que pode e deve ser fomentada por meio da informatização, acarretando maior eficiência, rapidez e seriedade de todo o sistema.

Quanto à superlotação,
também deve ser notado que o número de presos no Brasil tem aumentado significativamente ao longo dos últimos dez anos. Considerando ainda que, atualmente, um detento está custando aproximadamente entre R$ 1.000,00 e R$ 1.300,00 mensais ao Estado[7], a solução da superlotação não  é apenas a redistribuição dos presos em novos cárceres ou a informatização, mas também a diminuição da população carcerária no longo prazo.


Direito à maternidade e o papel da mídia


A violação aos direitos humanos no sistema penitenciário também atinge as mulheres de forma particular. Apesar de representarem apenas 7% da população carcerária brasileira, elas sofrem com a ausência de garantia de direitos no ambiente prisional. Evidentemente, é um sistema carcerário não-sustentável e desumano, como se faz notar no caso da separação de mãe e filho, que ocorre frequentemente após os seis meses de vida nas unidades de maternidade e repercute negativamente na qualidade da saúde mental dos dois.

Denúncias da Pastoral Carcerária sobre detentas que deram à luz em situações impróprias, algemadas em hospitais em São Paulo, demonstram/reafirmam a completa inadequação das práticas relacionadas à saúde das mulheres, estando à margem das condições básicas às quais têm direito.[8] Tais relatos, feitos em novembro de 2011, causaram desconforto nas autoridades responsáveis. O secretário estadual de Administração Penitenciária, Lourival Gomes, afirmou desconhecer o uso de algemas no parto: "Não acredito nisso. É um absurdo!” [9]

Apesar da aparente indignação, o desconhecimento de tal situação demonstra a falta de interesse e acompanhamento da autoridade responsável pelo monitoramento de irregularidades que violam direitos básicos. Três meses depois, no começo de fevereiro de 2012, o Jornal da Record publicou um vídeo mostrando uma presa algemada no pós-parto.[10] Em 11 de fevereiro, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB) decidiu  proibir o uso de algemas durante e após o parto. [11]

 

Com isso, ilustra-se também um dos papéis relevantes que a mídia desempenha: cada reportagem criteriosa, não sensacionalista, que contextualize a marginalização e a injustiça por parte do Estado é um avanço para a conscientização da opinião pública, pois a imprensa tem o potencial de atrair a atenção do público e questionar a devida funcionalidade dos órgãos de segurança, administração e justiça (ir)responsáveis.

No cinema, filmes como o documentário “Leite e Ferro” (2010), da cineasta Cláudia Priscilla, também contribuem para a problematização da condição da mulher no sistema penitenciário. Tendo como foco a maternidade no cárcere, especificamente no CAMHMP (Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa) em São Paulo, o filme evidencia a fragilidade delas e a completa ineficácia das políticas públicas em providenciar condições dignas.

Apesar da abordagem do cinema e da cobertura pelos veículos de imprensa para denunciar descasos, os meios de comunicação também podem trabalhar os assuntos de modo sensacionalista, como foi o caso da ¨loira perigosa¨ [12], contribuindo para a perpetuação de preconceitos e a banalização do conteúdo. Em outro exemplo de espetacularização, uma reportagem do jornal O Globo, de outubro de 2011, noticiou sobre presas que aproveitaram uma entrega de pizza para fugir[13], sem questionar por que só uma agente carcerária cuidava de 33 detentas numa cela superlotada. 

 

Assistência religiosa no sistema carcerário

No Brasil, a assistência religiosa consiste no entendimento da religião como um direito humano. No cárcere, é garantida pela Lei de Execução Penal que estabelece as regras necessárias para sua prestação. O Ministério da Justiça padronizou tais normas através da resolução nº 8 de 9 de novembro de 2011 sobre a assistência religiosa nos presídios do território nacional. Anteriormente, esta responsabilidade ficava por conta da gestão local e que, por falta de regulamentação, era fortemente criticada.

Chamou-se, assim, “parceria entre Estado e religião”, no qual o grupo religioso passa a ser mais que mero prestador de serviço, exercendo também um poder político na gestão carcerária. [14]  Exemplo disso é a existência de celas destinadas aos presos evangélicos em várias prisões, o que é um privilégio.A nova regulamentação sobre a assistência religiosa possibilitou novos direitos e acesso às prisões. De acordo com o advogado Marcello Dantas, assistente jurídico da Arquidiocese do Rio de Janeiro, “a norma do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária não restringe a assistência religiosa nos presídios. Apenas regulariza atos e comportamentos com abrangência entre todas as religiões, e se estende aos presos que não têm religião. ¨[15] Algumas religiões encontravam dificuldades em atuar dentro dos presídios, como aquelas de matriz africana. Nesse sentido, foi regularizado o atendimento individual aos presos sob sigilo das conversas e proporcionalidade entre representantes e presos da unidade.

Um ponto particularmente aplaudido pelos grupos religiosos diz respeito à suspensão da revista íntima para seus agentes. Isso era bastante criticado por conta de denúncias de humilhações dos agentes religiosos na entrada de algumas prisões. Ophir Cavalcante, presidente da OAB, diz-se a favor da suspensão da revista nos estabelecimentos que possuem equipamentos de detecção, mas vê com preocupação a livre circulação que os religiosos terão por todos os espaços onde os presos estão.  “Quanto menos pessoas puderem circular, melhor para a segurança (...)há pessoas de más intenções infiltradas em todos os segmentos da sociedade.” E continua: “Acredito que deveríamos ser mais ponderados nesse ponto.” [16]

Conforme o presidente do Sindicato dos Agentes Penitenciários de São Paulo, João Rinaldo Machado, a maior parte das drogas e armas chega com a conivência dos agentes penitenciários e outros funcionários, não só pelos familiares.


Os diferentes papéis da religião

Como mostra o caso das detentas dando à luz algemadas em hospitais em São Paulo, neste regime fechado do sistema prisional, os presos e as presas estão entregues ao que o Estado estabelece e executa na prática.

Dentro desta ambiguidade entre a realidade em si e a legislação vigente, a religiosidade e a atuação de grupos religiosos desempenham um papel complexo, e até mesmo controverso. A presença da religião nos cárceres brasileiros é visível em muitos aspectos dentro do sistema prisional, refletindo um processo de crescente influência, que se replica na realidade externa a grades e muros.

Sendo a religião o conjunto de doutrinas e práticas institucionalizadas, é evidente o caminho trilhado pelas igrejas, que se constituíram historicamente como o canal de manifestação da religiosidade. Entretanto, devemos reconhecer que nem sempre a religiosidade se manifesta por meio de religiões institucionalizadas. [17]

Portanto, destacam-se os diferentes papéis pelos quais as diversas religiões são vistas no exercício de suas atividades dentro dos cárceres. De um lado, conforme relata Laura Ordonez Vargas, da Universidade de Brasília, “grupos religiosos constituem um mecanismo de controle indireto, mas efetivo, sobre a massa carcerária”. [18]

Isto leva à instrumentalização da religião dentro dos muros da prisão, que serve como “remédio” para tranquilizar os detentos, ajudando na recuperação do preso e, consequentemente, reduzindo a criminalidade.

Por outro lado, na visão do preso, a religião pode significar um refúgio e a religiosidade, um mecanismo de sobrevivência dentro do cárcere. [19]Conforme Heidi Cerneka, da Pastoral Carcerária, o rezar tem particularmente um grande significado para as mulheres presas.


“Quando uma mulher está presa, não pode cuidar de sua família, de seus filhos, assim o rezar torna-se veículo de cuidar rezando...”. A adesão religiosa também pode dar acesso aos dogmas religiosos, como a ideia de perdão e salvação, oferecendo a possibilidade para rever os equívocos realizados, limpando seu `estigma criminoso´”. [20] No caso da conversão às religiões evangélicas, o preso assume uma outra identidade em sua percepção através da submissão às regras rígidas da religião, deixando de fazer parte do mundo do crime.


Grupos religiosos

Os grupos religiosos atuantes nas prisões são vários. Dentre eles, destaca-se a Igreja Católica, a mais tradicional, representada internamente pela Pastoral Carcerária. Além da prestação da assistência religiosa, a entidade tem como característica a fiscalização do Estado através da atuação de agentes que prestam serviços sociais, jurídicos e psicológicos, promovendo a justiça social. Eles também atuam por meio de denúncias pontuais (como no caso do relatório sobre tortura de 2010).

Porém, há outras religiões. Durante os anos 1990, a Igreja Evangélica apresentou um expressivo crescimento. De acordo com Edileuza Santa, doutora em antropologia pela PPCIS/UERJ, o movimento crescente dos evangélicos se refletiu nas prisões e sua militância tem provocado algumas transformações no cotidiano das penitenciárias.  [21]É a Igreja Evangélica também que está mais presente (94%) nas unidadas socioeducativas atualmente. [22]

 

Questões e expectativas

Concluindo, a diversidade do sistema prisional brasileiro, com seus diferentes estabelecimentos, atores e necessidades, torna difícil qualquer generalização. Porém, o perfil dos presos mostra que grande parte dos detentos que ingressam no sistema penitenciário incorporam sua fragilidade social que, consequentemente, está relacionada à negligência por parte do Estado, provocando um desenvolvimento contrário ao qual é oficialmente o objetivo do sistema de punição.

Em vez de reintegração, há um aumento da reincidência, revelando um sistema prisional ineficiente. Há uma grande urgência de debelar as barreiras existentes para garantir dignidade aos presos e presas, como foi o caso recente de mulheres dando à luz algemadas, exemplo de violação das resoluções dos direitos humanos nacionais e internacionais.

Ainda assim, o papel que os veículos de comunicação desempenham torna-se cada vez mais importante para alertar e cobrar dos órgãos responsáveis o cumprimento efetivo de seus papéis institucionais. Isso também faz parte do papel da sociedade civil laica e de alguns grupos eclesiásticos. Porém, percebe-se que poucos grupos trabalham com a questão do sistema prisional, e menos ainda com a questão da mulher. 

 

A modernização do sistema penitenciário e a expansão dos programas socioeducativos são vetores necessários para garantir justamente que a dignidade e o respeito humano possam ser contemplados e vivenciados, abrindo novas oportunidades que futuramente permitirão a realização plena e efetiva das obrigações legais do Estado.

Imprescindível como direito fundamental no âmbito da prestação da assistência religiosa, a atuação desses grupos no sistema prisional é caracterizada pela diversidade das crenças existentes, refletindo as dinâmicas de dentro e fora das prisões. Porém, tal incidência também é ambígua.

De um lado, garante um direito constitucionalmente estabelecido dentro de um Estado laico que deveria dar espaço a todas as religiões igualmente, dependendo da demanda dos crentes encarcerados. Por outro, o domínio e o favorecimento de algumas religiões, em tudo aquilo que vai além da prestação da assistência religiosa, resultam na chamada parceria entre Estado e religião, seja para prestar outras assistências ou na influência na gestão local.  A submissão completa dos presos é altamente preocupante e exige uma melhor fiscalização assim como estudos.

Fica a expectativa sobre como a nova regulamentação da assistência religiosa ajudará a equilibrar e regular a influência das religiões na gestão carcerária, mas também a atuação dos grupos entre si mesmos, reduzindo conflitos e concorrência.

Entretanto, como dogma de salvação, “controle moral”  dos presos (algo bem visto pelas autoridades), ou papel de denúncia de injustiça social, a religião é um fator essencial pouco percebido, mas que cada vez mais ganha influência e notoriedade no preenchimento de lacunas que o Estado deixa em aberto, como feridas que dificilmente se cicatrizam com o tempo.


* Alena Pachioni cursa Ciências Humanas na Birkbeck University of London.

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[1] http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRNN.htm, acessado em 03.12.2011

http://bandnewsfm.band.com.br/Colunista.aspx?COD=82&Tipo=Poder,%20cotidiano,%20moda%20e%20celebridades (Estado deve pagar indenização aos parentes de detento assassinado em presídio paulista do dia 14/02/2012), acessado em 15.02.2012

 

[18] seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/download/2757/2027 (p.33), acessado em 13.12.2011

[19] seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/download/2757/2027 (p.33), acessado em 13.12.2011

[20] seer.ufrgs.br/debatesdoner/article/download/2757/2027 (p.33), acessado em 13.12.2011