Ato em repúdio aos crimes homofóbicos na Parada LGBT de São Paulo Foto: Marcel Maia CC BY-NC-SA 2.0 (2009)
As discrepâncias à primeira vista, sem dúvida, são marcantes. Apesar dos avanços jurídicos recentes e da visibilidade bastante elevada, tanto no âmbito político como midiático, a população LGBT enfrenta, ainda, muitos desafios na luta pelos seus direitos, por um país além do (heteros)sexismo e da violência letal. Comparada com outros países do mundo, a dimensão dos crimes de ódio por motivos trans ou homofóbicos continua sendo muito preocupante no Brasil.
Um olhar panorâmico sobre os movimentos sociais no país não pode mais deixar de fora os movimentos LGBT. Organizados por grupos em vários estados e municípios há anos, estão entre os mais expressivos, e visivelmente conseguiram formular reivindicações de direitos nos escalões mais altos da República. Neste sentido, a convocação da primeira Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, em junho de 2008, pode ser vista como um marco histórico. Em reunião de cerca de dez mil participantes, o ex-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, inaugurou um espaço do Estado que, até hoje, não tem par em outros países. Por meio de 559 propostas aprovadas, as demandas da plenária abriram caminho a vários eixos da atuação atual, abrangendo tanto mudanças legislativas e judiciárias como formulações de políticas públicas, imersão na produção de conhecimento acadêmico e apropriação dos campos da arte e da mídia.
Por meio destes processos ainda recentes, constata-se, enfim, uma transformação de um movimento, que achou novas dinâmicas de efeito. Ou seja, o movimento homossexual – conhecido sob este termo ainda nas décadas de 70 e 80, delineando uma iniciativa das “margens” da sociedade – transformou-se no movimento LGBT. Isto não se restringe apenas às representações midiáticas, mas também aponta as mudanças da função dos ativistas, ou seja, do trabalho desenvolvido por eles. Muitas vezes, a incorporação por instituições do Estado fez com que atuassem como advogados políticos mais do que como perturbadores da ordem pública.
Aliás, as etapas de conquistas pelo movimento LGBT, vivenciadas nos últimos meses, remete-nos a espaços de atuação bastante dinâmicos. Além das iniciativas lúdicas como as Paradas do Orgulho Gay - que em São Paulo atraem uma multidão de até três milhões de participantes - precisa-se também considerar os avanços legislativos. A aprovação da união estável entre pessoas do mesmo sexo no Supremo Tribunal Federal (STF), em maio de 2011, bem como a autorização do matrimônio civil de um casal de duas gaúchas pelo mesmo órgão, em outubro de 2011, são talvez os exemplos mais importantes. Comparada às práticas jurídicas anteriormente existentes, a união estável ancora, em nível federal, os direitos à declaração conjunta do Imposto de Renda para parceiros homossexuais, à colocação do parceiro como dependente em planos de saúde e – por meio de um contrato suplementar – à herança. Quanto à questão da adoção, será permitida a inclusão do nome do companheiro homossexual, ainda que só um dos indivíduos do casal gay possa efetuá-la.
Mas, resumidamente, constata-se uma mudança decisiva da lógica jurídica: o casal gay agora é reconhecido como unidade familiar. Não precisa mais se esconder sob a expressão “sócios econômicos”, típica das decisões jurídicas anteriores. Ora, cabe ressaltar que este avanço também tem as suas ambiguidades. A criação da família homoafetiva é parcialmente bem acolhida pelas forças conservadoras cristãs porque combina com a ideia de que a família representa a base da sociedade. Ironicamente, então, a instituição da “nova” união estável pode servir até como referência legitimadora da continuidade dos discursos moralizadores sobre qualquer tipo de prática afetiva que acontece fora da parceria consagrada. Sob esse ângulo, pode-se dizer que a transformação das relações de gênero dominantes por essas novas leis relativas aos direitos homossexuais ainda será pauta no futuro.
Uma diagnose semelhante pode ser formulada a partir da dimensão da indústria cultural da “causa gay”. No Brasil, a mercantilização da identidade gay possivelmente é mais elevada do que em qualquer outro país do mundo. Segundo a socióloga Regina Facchini (“Sopa de Letrinhas?”, 2005), esta tendência foi incentivada, sobretudo, pelo mercado GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes). Surgido na década de 90 como um novo segmento, esse nicho está vivendo uma nova onda agora. Na cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, o município criou, em 2011, uma Secretaria Especial da Diversidade Sexual que dentre suas atribuições, junto com a Empresa Municipal de Turismo (Riotur), propagandeia o Rio como a cidade mais gayfriendly do mundo. Neste sentido, seu clipe, sob o título Come to Live the Rio Sensation, apresenta-nos um paraíso turístico de lazer: cheio de corpos bonitos, praias idílicas e caipirinhas geladas, fim de tarde no lounge do hotel cinco estrelas.
Essas imagens, aliás, combinam com aquilo que a TV Globo está divulgando por meio de suas telenovelas. A emissora lançou várias personagens gays, sobretudo na novela Insensato Coração (2011), que se passa, também, no Rio de Janeiro. A trama se desenrola no mesmo cenário da Rio Sensation. Desta vez, um quiosque na praia de Ipanema é o ponto de encontro favorito de um grupo de homens gays. O que chama a atenção a partir desses exemplos é que, por um lado, há uma alta visibilidade da população gay (muito mais do que em países europeus, por exemplo) e que, por outro, esta mesma visibilidade é marcada claramente por uma classe social de poder aquisitivo bastante elevado. Neste espelho aparece, enfim, o que Facchini já chamava de mercado GLS: uma postura que parte da ideia de que a conquista da cidadania é garantida pelo consumo.
Mas, a telenovela brasileira sempre conta muito mais sobre a “vida real” do que representa à primeira vista. Ao longo dos últimos episódios da novela mencionada, foi retomado, também, o tema da violência, confrontado com a homofobia e seu vínculo com os crimes de ódio. Esse capítulo da realidade brasileira lamentavelmente não é novo, mas, na verdade, atraiu mais a atenção da opinião pública nos últimos anos. Basta lembrarmos das cenas dos ataques homofóbicos do ano passado em São Paulo e no Rio de Janeiro para nos dar conta - como mostram os estudos do GGB (Grupo Gay da Bahia) - de que o Brasil continua sendo um dos países do mundo com maior índice de crimes de ódio e homicídios trans e homofóbicos. Segundo as pesquisas da TGEU (Transgender Europe), entre janeiro de 2008 e dezembro de 2010, 227 pessoas trans (transexuais, transgêneros e travestis) foram assassinadas por motivo de ódio somente no Brasil. Este número absurdo clama urgentemente por leis e políticas de Estado que assegurem ativamente os direitos da população trans, já que essa sofre de forma mais grave com a ausência de assistência médica e a negligência da polícia na investigação de casos de violência letal.
Aliás, a violência não se limita aos ataques na rua. Ela também atua por palavras. Aparece, sobretudo, nas polêmicas da bancada evangélica e de grupos religiosos contra as políticas e o movimento LGBT. Prova disso foi o discurso da presidente da República, Dilma Rousseff, que suspendeu, sob forte pressão dos religiosos no governo, o material de ensino sobre diversidade de gênero e sexualidade do Ministério da Educação (MEC), o chamado kit anti-homofobia, em 2011. Acuada pelas acusações ao então ministro da Casa Civil, Antonio Palocci, ela vergonhosamente referiu-se ao estranho medo de tal material educativo promover a homossexualidade entre crianças. Assim, a bancada religiosa saiu triunfante, garantindo a continuação legal da discriminação da população gay.
É neste contexto, também, que a reivindicação do movimento pela criminalização da homofobia tramita no Congresso Nacional desde 2006. A atual relatora do projeto de lei, a senadora Marta Suplicy (PT-SP), apenas conseguiu um acordo caro, selado a partir da alteração do texto que prevê a criminalização, em dezembro de 2011. O medo de retaliações por parte de evangélicos e católicos levou a uma tentativa de conciliação com a bancada religiosa. O resultado foi a inclusão de um trecho que isentaria pastores e evangélicos do crime de homofobia em suas pregações. Isso porque os cultos entrariam na classificação de “manifestação pacífica de pensamento decorrente da fé”. Desta maneira, caso seja aprovado na volta à Câmara, crimes por motivo de trans ou homofobia poderão ser penalizados, mas apenas parcialmente. O substituto do texto inicial, como destaca também Toni Reis, presidente da ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais), não vai criminalizar a homofobia como foi proposto. Os discursos abertamente homofóbicos do bastião cristão continuarão, agora legalizados.
Enfim, a “hora da causa gay”, aqui brevemente esboçada, aponta para processos que estão se desenvolvendo em direções diferentes, às vezes contraditórias, mas simultâneas, e assim, sempre imbricadas. A visibilidade elevada - que a população LGBT vive atualmente no Brasil, ligada aos mecanismos de consumo e às mudanças no sistema judiciário - é certamente resultado da luta de um movimento, que conseguiu metamorfosear-se, ao longo dos anos, em conjunto com a transformação social do país. Como vimos, isso abriu caminho para avanços importantíssimos no âmbito dos direitos humanos, e, parcialmente, no reconhecimento social da diversidade sexual e de gênero.
Porém, vale lembrar que a violência continua sendo um problema estrutural grave na sociedade, sobretudo em relação àqueles assuntos ligados a relações de gênero: sejam discursos velados pela fé religiosa ou ataques físicos e até letais. Dessa forma, os desafios para os movimentos e políticas LGBT no Brasil permanecem grandes, principalmente porque se trata de combater valores e atos da sociedade contrários aos interesses dos(as) marginalizados(as). A atuação prioritária, enfim, deveria consistir em intensificar e incentivar o debate sobre como pensamos e vivemos não só sexualidades, mas relações de gênero em geral. Quer dizer, os modelos de convivência, o papel do gênero na vida cotidiana e institucional e, finalmente, a força das palavras para quem não cabe no quadro oficial da nossa sociedade. Isso tornaria possível não só uma representação da população LGBT mais inclusiva e menos normativa, mas também um caminho para combater as raízes da violência.
* Nicolas Wasser é mestre em Estudos Latino-americanos com foco em Estudos de Gênero pela Universidade Livre de Berlim (Freie Universität Berlin), e doutorando em Sociologia e Antropologia da UFRJ